Por Ana Alakija*
Estava tudo pronto. O Lagos Black Heritage Festival seria realizado de 4 a 9 de outubro no Freedom Park. Um conjunto arquitetônico recuperado das ruínas de uma antiga prisão da realeza britânica para se tornar um dos mais importantes sítios da Nigéria, o Memorial Nacional, com o objetivo de preservar a memória da história e o legado cultural do povo nigeriano. Mas o convidado principal, o Brasil, não confirmou, a tempo, sua presença.
Acontece que existem “Brasil” e “Brasis”. E é no “Brasis” onde mais se sente na pele a desimportância que o “Brasil” dá às pessoas e aos valores de matriz africana. Nesse sentido o Brasil vem ultimamente dando um show internacional de vergonha.
Começando pela denúncias feitas pelo presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa ao discursar no evento de comemoração do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa realizado pela Unesco em Costa Rica. Na ocasião o ministro Barbosa afirmou que a mídia brasileira é afetada pela ausência de pluralismo o que pode ser percebido especialmente pela ausência de negros nos meios de comunicação e pela pouca diversidade política e ideológica.
O que o ministro Barbosa disse não foi nenhuma novidade. Mas dito pela autoridade suprema da Corte brasileira para os quatro cantos do planeta é o suficiente para que se constituísse um dossiê imprensa e encaminhasse aos órgãos internacionais de Direitos Humanos como uma evidência de violação.
Um parêntese: Desde a Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias correlatas realizada em Durban, 2001, foi deflagrado o debate internacional e nacional sobre as invisibilidades da cor na mídia. No “Brasis” a questão vem sendo há algum tempo debatida por movimentos sociais, e especialmente ganhou fôlego nos fóruns e conferências brasileiras sobre mídia e igualdade racial passando a apontar necessidades de uma política de comunicação inclusiva, visando os segmentos étnicos estigmatizados.
Depois veio o caso dos primeiros médicos e médicas cubanas, participantes do programa Mais Médicos do governo federal brasileiro, contratados para trabalhar em regiões onde falta assistência médica. Esses profissionais de alta reputação internacional foram vaiados e hostilizados com palavras e gestos por médicas e médicos brasileiros num evento, em Fortaleza (Ceará), organizado especialmente para a sua recepção (!), como “usurpadores de vagas” do emprego que o próprio médico brasileiro não dá valor.
Seguido de um show de preconceito racial e social, discriminação e racismo por parte de jornalistas, como a estúpida comparação de médicas cubanas a empregadas domésticas (com todo respeito a essa e qualquer outra profissão) só por serem negros (!). Tudo documentado em fotos publicadas nas capas da grande mídia e por um video que se tornou viral nas mídias sociais (!). O caso está sendo levado à Justiça pelo Sindicato dos das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo – desde a Constituição Federal de 1988 o racismo se tornou um crime inafiançável no Brasil.
Nos últimos dias, o cancelamento do Festival de Arte Negra de Lagos, pela Nigéria, que tinha o Brasil como homenageado. O motivo apresentado pelo comitê organizador foi a falta de apoio do Brasil na formacão de delegações, não confirmadas a tempo de finalizar os preparativos(!). Ainda que o coordenador desse festival fosse o ganhador do Premio Nobel de Literatura em 1986, o escritor nigeriano Wole Soyinka, que esteve pessoalmente no Brasil ano passado, no Mês da Consciência Negra, para convidar e solicitar apoio do Brasil ao evento(!) .
O Festival de Arte Negra de Lagos é inspirado no espírito da proeminência africana e tem como objetivo a celebração da criatividade do continente negro através de diversas linguagens: dança (tradicional e contemporânea), música, pintura, fotografia, teatro, design, cinema, dentre outras expressões artísticas e intelectuais. Para isso, o FAN tem mapeado a presença negra africana no mundo, irradiando essa idéia em séries temáticas, passando a homenagear, a cada edição, uma nação da diáspora africana.
Trabalho que no Brasil foi capitaneado pelo Instituto Yoruba, sediado em Belo Horizonte, tendo à frente seu coordenador, o nigeriano Olú Akínrúlí, que participou incansavelmente de várias reuniões com organizações oficiais brasileiras, federais e estaduais, a fim de garantir a participação brasileira no evento. Esperava-se também incrementar negócios bilaterais entre as duas grandes comunidades, como vinha sendo articulado através do Centro de Negócios, Cultura e Cooperação Nigéria-Brasil, também sediado em Belo Horizonte.
O FAN vem sendo realizado desde 1977 e conta com cinco edições, a última em 2012, quando homenageou a Itália. O Brasil seria o segundo país a ser homenageado pelo FAN. Com o tema As cores africanas do Brasil, o Lagos Black Heritage Festival aconteceria em duas etapas, a primeira em março e a segunda agora em outubro, com a realização de um simpósio. O Brasil não conseguiu atender à primeira chamada, principalmente por conta do falecimento do professor historiador Ubiratan de Castro Araújo. À frente da Fundação Pedro Calmon ele era o principal interlocutor no Governo do Estado da Bahia para as questões da matriz africana e, logo, para a aplicacão de recursos públicos em projetos que contemplam os interesses dessa comunidade.
Por conta da expressividade da cultura afro-brasileira na Bahia, esperava-se, do estado baiano, a participação com a maior delegação no evento do país nigeriano. Nesse sentido, fui testemunha dos esforços feitos posteriormente pela Secretaria da Cultura do Estado da Bahia, através de seus instrumentos – particularmente pela assessora de relações internacionais, Monique Badaró, para compor uma delegação representativa. Contra a maré, foram editais suspensos, cancelados, não editados, envolvendo a Seppir, Ministério da Cultura e Fundação Palmares, coincidentemente no ano em que aconteceria o FAN.
A edição do FAN desse ano faria uma homenagem póstuma ao político, escritor, ator, jornalista e ativista Abdias do Nascimento e teria como convidada de honra, a Iyalorixa Mãe Beata de Iemanjá. de Nova Iguaçú (Rio). Mãe Beata foi iniciada no candomblé em 1956 pela Mãe Olga do Alaketu, na presença dos mais respeitados líderes religiosos da época, como as filhas de Babalaô Bangboshê (Mãe Regina e Irene) e Mãe Arsênia do Bate Folha. Mãe Beata fez seu bori em 1944 com o babalorixa Dionísio Aguiar Pereira, na presença do Pai Eduardo de Igexa. Quem sabe o mínimo da história da religião africana, especialmente sobre o Panteão Yoruba no Brasil, entende que estou falando de altos sacerdotes relacionados diretamente com a linhagem daqueles que trouxeram o fundamento religioso africano para o Brasil.
A desimportância que o Brasil deu ao evento, foi também uma grande desfeita ao Nobel Wole Soyinka, ex-pupilo do romancista, poeta, crítico literário Chinua Achebe, falecido este ano e consagrado como um dos autores africanos mais conhecidos e lidos do século 20. A atitude brasileira demonstra o quanto o Brasil não tem compromisso com a África, seus ícones, seus líderes, como Baba Soyinka, feito Mestre antes mesmo de herdar o cajado de Achebe (para lembrar o velho ditado chinês que diz: quando o aluno está pronto, o mestre aparece).
Atualmente, Soyinka é a maior referência contemporânea viva de “griôs” literários para a Africa e as suas diásporas – a grande Nação Transatlântica. Da qual o Brasil naturalmente faz parte, reconhecido internacionalmente como a diáspora africana mais significativa, e com o maior número e concentração de afrodescendentes.
Que podemos esperar agora de um estudante brasileiro em sala de aula que vê seu Mestre tratado de forma tão desreipeitosa?? Como a lei 10.639/03 que instituiu o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas vai fazer conexão com essa realidade??
Quero relembrar o episódio do Fesman – uma réplica do Festival Mundial de Arte e Cultura Negra (Festac), que desde 1966 e a cada aproximadamente 10 anos se realiza em um país diferente. O evento que também homenageou o Brasil foi realizado em 2010, em Dacar, no Senegal e não contou com a presença do principal convidado brasileiro, o presidente do comitê de honra, o então ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, cujas passagens e acomodações não foram providenciadas a tempo.
Gil havia participado do Festac, em Lagos, em 1977, por conta própria, quando voltou do exílio, em Londres. Abdias, exilado nos Estados Unidos, também estava no Festac e fez um fuzuê para que o simpósio aprovasse a criação de uma comissão internacional para investigar a existência de racismo no Brasil.
Falta de autonomia e equívocos dos próprios órgãos brasileiros que gerem a cultura negra à parte, esse discurso tem endereço certo: vai para as estúpidas mentes que ainda dominam o pensamento da sociedade brasileira. Muitas dessas mentes ocupam setores estratégicos dos governos, tomam as decisões maiores, e ainda não conseguiram incorporar que há 10 anos as ações afirmativas fazem parte da política governamental federal.
As políticas brasileiras de ações afirmativas podem não ser perfeitas, mas constituem modelo para os países latino-americanos emergentes em seus sentimentos de africanolatinidade. Diferenciam até mesmo das políticas similares nos Estados Unidos, em que as ações afrmativas são ancoradas pelo direito individual em relação às oportunidades.
As políticas brasileiras de equiparar e proporcionar as oportunidades para segmentos étnicos (afro-brasileiros e indígenas) requerem um pacto entre todos os setores com o objetivo de fazer uma reparação histórica principalmente a um contingente populacional que descende de nações africanas, cuja maioria de antepassados foi trazida para o Brazil involuntariamente para o trabalho escravo com a tutela governamental. E “libertados” quase quatro séculos depois sem qualquer garantia ou amparo social.
É por carregar essa realidade histórica que a população afro-brasileira, maioria no país (51%) é também ainda a grande maioria excluída da distribuição das riquezas, das salas de aula, dos serviços de saúde, das boas condições de moradia, da posse da terra, do emprego e da distribuição dos recursos públicos para produzir a sua cultura e informação. Principalmente sobre o seu legado, suas verdadeiras origens, estórias de bravura, glórias e resistência – um passado que o próprio Brasil pouco conhece. Ao contrário, o sistema (ah, o sistema!) insiste em produzir e reproduzir, principalmente através da mídia e da educação e de todos os seus aparatos, o estigma da associação da cor da sua pele a pessoas sem importância, sem valor, marginais, serviçais.
Até quando teremos que aturar esse show de ignorância, preconceito e racismo por quem não conhece, não reconhece e não valoriza a história de povos e seus líderes como parte da sua nação? Até quando o Brasil vai estar no topo da classificação como uma nação harmonicamente multiétnica e multicultural sem resolver suas demandas internas baseadas na equidade racial.
*Ana Alakija é editora da alaiONline.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Zoraide Vilasboas.