Para ativistas dos direitos indígenas, a omissão do Estado é a grande responsável pelo aumento dos conflitos com povos à espera de demarcação de terras
Por Carol Nunes, da Redação Página 22
Na madrugada do dia 3 de setembro, um índio tupinambá foi encontrado morto em uma comunidade próxima a Ilhéus, sul da Bahia. Foi a primeira vítima fatal de um conflito entre grupos indígenas e produtores rurais no município de Buerarema que a Força Nacional está tentando conter desde meados de agosto. Há alguns meses, índios ocuparam diversas fazendas da região, como forma de exigir do governo federal a conclusão da demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença.
Cinco meses antes, índios brasileiros haviam sido responsáveis por uma imagem que impressionou o Planalto Central e o País: centenas deles invadiram o plenário da Câmara dos Deputados em protesto contra a formação de uma comissão especial que analisaria um dos projetos de lei considerados mais ofensivos aos seus direitos.
As duas situações extremas ilustram a gravidade da batalha que povos indígenas têm enfrentado para defender o direito à terra, tanto no campo jurídico e legislativo, quanto na vida real.
Batalha legal
De acordo com o artigo 67 da Constituição Federal de 1988, todas as Terras Indígenas (TI) deveriam ter sido demarcadas até 1993. No entanto, o processo permanece inacabado, com uma alta concentração de TI na Amazônia. Enquanto isso, em áreas de fronteiras agrícolas, como Mato Grosso do Sul, povos indígenas vivem em territórios diminutos e de alta concentração demográfica ou aguardam os vagarosos processos de demarcação de TI serem concluídos. Para o pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (USP), Spensy Pimentel, o processo avançou pouco fora do domínio da Amazônia porque “a resistência e o poder político real dos interesses contrariados é muito grande”[1].
O aprimoramento e aceleração dos processos de demarcação e manutenção de TI poderiam ajudar a minimizar os conflitos, indenizando os proprietários de terra e garantindo aos povos indígenas a integridade dos territórios dos quais dependem sua sobrevivência e cultura. Entretanto, a realidade observada é bem mais cruel.
Durante um ciclo de debates sobre direitos indígenas no espaço Matilha Cultural, em São Paulo (SP), Verena Glass, do Movimento Xingu Vivo, e André Takahashi, da Rede Causa Comum, engrossaram a crítica de Spensy à ausência do Estado na mediação de conflitos envolvendo territórios indígenas. Segundo eles, o Estado não tem se mostrado presente nem no âmbito local – devido à influência dos interesses econômicos regionais – nem no federal, que pouco tem se pronunciado, muito por conta do programa de governo que estimula exportação de matéria-prima e grandes obras de infraestrutura. “Esse governo está com uma postura de lavar as mãos, em uma renúncia de seu dever de proteger essas minorias, o que seria um dever legal”, critica Spensy.
A outra face do desamparo legal são os projetos tramitando no Congresso Nacional, considerados pelas organizações de defesa de direitos indígenas verdadeiras ofensivas da bancada ruralista. Uma delas é a PEC 215, que pretende retirar do Poder Executivo a competência exclusiva de conduzir o processo de homologação de TI. Dada a distorção de representatividade entre empresários do agronegócio e grupos indígenas no Congresso Nacional, conclui-se que a medida enfraqueceria ainda mais os processos de demarcação [2].
Outra proposta polêmica é o PLP 227, cuja aprovação apontaria novas exceções para o direito exclusivo ao uso da terra por indígenas, garantido na Constituição Federal, passando a incluir atividades de mineração e construção de grandes empreendimentos de infraestrutura, sob a alegação de atendimento ao interesse nacional.
Além dos projetos que tramitam no Congresso, o próprio Governo Federal demonstrou interesse em modificar os processos de demarcação de TI, incluindo órgãos como Embrapa e Ministério do Desenvolvimento Agrário na elaboração de estudos que guiam a delimitação dos territórios, hoje exclusivamente desenvolvidos pela Funai. “Há muito tempo, sabíamos que a posição da Funai era delicada por conta da ‘judicialização’ dos processos de demarcação. Mas pedíamos que houvesse um fortalecimento da Funai, e não um esvaziamento”, alega Márcio Sotilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental. A ‘judicialização’ é atribuída ao fato de as partes interessadas na demarcação (ou não) de Terras Indígenas estarem recorrendo a outras instâncias de decisão, como o Poder Judiciário e novas leis, devido à omissão do Executivo.
Outra iniciativa criticada é a portaria 303 da AGU, que determina a extensão das condicionantes usadas na decisão do Supremo Tribunal Federal contra a demarcação da TI Raposa Serra do Sol às demais TI. Entre outras medidas, decreta que as TI podem ser ocupadas por unidades e postos militares, malhas viárias e empreendimentos hidrelétricos e minerais “de cunho estratégico” sem consulta aos índios às quais as terras pertencerem.
Verena lembra que essa medida confronta a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Ela impõe a obrigação do Estado de consultar os povos tradicionais antes de qualquer decisão sobre a ocupação de suas terras.
Mais recursos para a Funai
Sotilli acredita que o tom de iniciativas como o projeto do Governo Federal e a portaria da AGU põe em xeque a competência da Funai e comunica claramente a indisposição em cooperar com os processos de demarcação.
Na opinião de Spensy e Sotilli, a Funai precisa de mais recursos e cooperação para conseguir demarcar TI e gerí-las adequadamente, a fim de solucionar conflitos e invasões. “A Funai é deficitária em recursos e pessoas”, declara Sotilli. Ele explica que muitas negociações pelo País estão paradas por não haver recursos para pagamentos de indenizações de proprietários rurais, por exemplo. Além de a quantidade de funcionários para cobrir as responsabilidades de demarcar e administrar Terras Indígenas ser muito baixa.
Spensy ressalta a necessidade de haver mais mecanismos de repasse de recursos do Governo Federal, à semelhança do que as unidades da federação recebem da União: “Nós estamos falando de possivelmente 30% do território brasileiro (totalidade de áreas que poderiam ser TI) que não têm algo equivalente aos fundos de participação dos estados e municípios, e o orçamento da FUNAI é muito baixo para gerir essas terras”. Sotilli completa a lista de dificuldades citando a falta de cooperação e força política do órgão, que acaba atuando de forma isolada. “A Funai tem muita dificuldade para obter dados sobre as terras. Nesse sentido, se houver mais apoio de outros órgãos, ela pode ficar mais ágil e qualificada.”
Minoria política
Do lado mais fraco da balança estão os indígenas, que deveriam ser protagonistas da discussão. Eles são uma minoria não só em número, mas também em força política. Spensy lembra que, até hoje, o Congresso Nacional só contou com um representante indígena: Mário Juruna, deputado federal eleito pelo Rio de Janeiro em 1983. Apesar disso, tanto o pesquisador quanto Sotilli concordam que o movimento civil em defesa dos direitos indígenas é crescente, assim como a politização de representantes das etnias. “Os povos indígenas estão aí, cada vez mais cientes de seus direitos, e reivindicando justamente os espaços de conversa”, afirma Sotilli.
O desenvolvimento desses espaços depende da ampliação da voz política das minorias, incluindo não só indígenas, mas também quilombolas, comunidades extrativistas, entre outros afetados pelas atividades da economia brasileira. “É necessário aprofundar esse debate sobre como, nesse modelo de desenvolvimento econômico, os povos indígenas têm voz. Elas (as vozes das minorias) são abafadas porque questionam as certezas dos investimentos do poder público.”
A falta de diálogo entre as partes leva à ideia de dicotomia entre a necessidade de respeitar os direitos de povos tradicionais e promover “o desenvolvimento da nação”. “É uma estratagema da ofensiva (contra os direitos indígenas) colocar índios como opositores do modelo de sociedade civilizada” – afirma Sotilli – “é possível construir algo que concilie as duas coisas”.
A falsa dicotomia
No caso da disputa de terras com o agronegócio, seus representantes argumentam que a demarcação completa de Unidades de Conservação e Terras Indígenas implicariam em prejuízos à economia por conta da supressão de áreas agrícolas [3]. Spensy questiona essa linha de defesa em plena era da mecanização e aumento da produtividade: “Anos depois de um ministro da Agricultura afirmar que não era necessário derrubar uma árvore sequer para aumentar a produção de alimentos, retorna essa discussão (de expansão da fronteira agrícola sobre áreas preservadas), facilitada após a revogação do Código Florestal e a hegemonia do discurso desenvolvimentista do governo”.
Defensores dos direitos indígenas afirmam que a preservação dos recursos naturais de TI é – além de um direito básico desses cidadãos com fortes ligações culturais e de sobrevivência com a terra – importante para o País como um todo, incluindo o próprio agronegócio. “Interessa ao conjunto da humanidade que esses povos disponham de condições mínimas para assegurar a integridade de seus territórios ao longo prazo”, explica Spensy.
Do ponto de vista ambiental, as florestas em áreas de TI sequestram quantidades altas de carbono e outros gases de efeito estufa e, se destruídas, representariam um grande prejuízo climático. Nesse sentido, a compensação de indígenas pelos serviços ambientais prestados seria uma ferramenta para garantir a preservação dessas áreas, mas também para alocar recursos que instrumentalizassem a demarcação e manutenção de Terras Indígenas. Como defende o pesquisador: “o mundo tem que pagar para que essas áreas continuem íntegras”.
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[1] Isso não significa que TI na Amazônia estejam isentas de pressão sobre seus territórios. Veja atlas completo desenvolvido pelo Instituto Socioambiental com o mapeamento dos riscos às Terras Indígenas da Amazônia Brasileira.
[2] Esse é o argumento defendido por entidades contrárias à PEC, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Veja carta de repúdio aqui.
[3] Em estudo apresentado pela senadora Kátia Abreu (PSD-TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura, é citada a estimativa de “perda” de mais de 200 bilhões de reais no PIB até 2018 caso o ritmo de marcação de UCs e TI seja mantido o mesmo da era FHC e Lula.