Missões evangélicas, acusadas de proselitismo contra indígenas, usam Comissão de Direitos Humanos para pressionar governo e ter acesso as aldeias
por Felipe Milanez, em seu blog na CartaCapital
Nesta quarta-feira 11, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara vai debater o tema da liberdade das almas indígenas. Uma discussão um tanto surpreendente para o Legislativo. O tema é “atuação de instituições religiosas entre os povos indígenas”
Quem propôs o debate é o pastor evangélico Eurico, deputado pelo PSB de Pernambuco. Segundo ele, “entidades governamentais têm impedido a continuidade do trabalho de missões religiosas, especialmente as católicas e evangélicas, nas comunidades indígenas.”
Marcos Feliciano, o polêmico pastor conhecido por declarações homofóbicas e racistas, capo da Comissão, topou, como era de se esperar. Foi convencido pela justificativa de que: “Cabe a esta comissão debater a melhor forma de participação dessas instituições religiosas em detrimento do que permite a legislação brasileira sobre o tema”.
Convidaram a presidenta da Funai, o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado a Igreja Católica, e também o pastor Ronaldo Lidório, “coordenador de pesquisa” do Departamento de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Missões (AMTB), e o pastor Henrique Terena, indígena que é o presidente do Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (Conplei). A AMTB e o Conplei, no caso, representam as agências missionários históricas que querem evangelizar os povos indígenas.
É difícil que o debate esclareça alguma coisa a não ser expor a aliança, nem sempre eficaz, entre missionários evangélicos de igrejas históricas, como presbiterianos e metodistas, com os congressistas neopentecostais. As vítimas, no entanto, são evidentes: as sociedades indígenas e, claro, a humanidade como um todo.
O que está em discussão na Comissão (de “direitos humanos”?) é a conquista das almas indígenas. A determinação bíblica, na crença destes missionários, consta no Evangelho Segundo Marcos. Ele conta que Jesus teria lhe dito para ir a todo lugar e pregar o evangelho para todas as “criaturas”. E quem não for convertido será condenado. É a teoria do pecado original. Os evangélicos históricos querem ter acesso livre para praticar o proselitismo religioso e tentar converter indígenas a partir da metodologia das missões: enviar missionários até os “confins do mundo”, como dizem, para traduzir a bíblia, pregar, converter e construir igrejas entre todos os povos do mundo. E usam os meios de que dispõe para pressionar o governo.
Na visão combativa dessas “missões”, todo empecilho à evangelização deve ser enfrentado. Como o presidente da New Tribes Mission (que integra a AMTB de Lidório), Edward Luz, me disse em um congresso: “Se [o governo] proíbe pregar o evangelho, está proibindo a liberdade da adoração; proíbe o autor do evangelho, o senhor Jesus; e proibiu a Bíblia, proibiu o Deus criador. E nós partimos para um confronto”.
As missões foram expulsas das terras indígenas pela Funai em 1991, durante a gestão de Sidnei Possuelo. Haviam acusações de diversos tipos, como genocídio, escravidão, exploração sexual, e uma conturbada séries de relações com o Estado, principalmente monopolizando o acesso a saúde e a educação, no que decorria um problema fundamental: as missões visam evangelizar os índios, e num estado laico, isso não pode ser permitido.
Desde então, a retórica missionária para buscar alguma legitimidade passou a ser maquiar ou disfarçar o desejo proselitista, a conversão, forçada ou não, a ferro e a fogo ou só na conversa.
A questão do Estado laico no Brasil é urgente e merece extrema atenção. Proteger as sociedades indígenas do ataque religioso não se trata de ações de governo, mas de princípio da Constituição Federal, inscrito no artigo 4, inciso III, de garantir a “autodeterminação dos povos”. E no artigo 5, inciso VI, a proteção aos “locais de culto”, ou seja, os territórios indígenas: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
A retórica missionária protestante prega uma suposta “liberdade de escolha”. Nessa concepção, a possibilidade de escolha se daria, em forma hipotética, é claro, a partir da apresentação das religiões disponíveis. Como se todas as religiões que foram criadas pela humanidade ao longo dos últimos 10 mil anos estivessem em um cardápio. Como não estão, “oferecem” o protestantismo.
Esse argumento desenvolve a determinação bíblica de Marcos de que todos devem seguir a doutrina cristã. Os indígenas, após a leitura da bíblia na sua língua, deveriam tomar a decisão de ser cristão, ou de negar ser cristão. No Brasil, são mais de 180 línguas.
Ser cristão, ou não ser no sentido de negar a ser, é a suposta “liberdade”.
É evidente que se trata de uma falácia retórica que serve, apenas, para justificar o proselitismo. Isso reflete a vontade de impor uma única visão religiosa possível para todos os humanos do planeta. Quem estiver de fora, deve arder no inferno, seja na vida, seja após a morte.
Qual a gravidade disso?
Primeiro, a atuação das missões é etnocida. Provoca o etnocídio entre as sociedades indígenas onde atuam. Segundo o antropólogo francês Pierre Clastres: “O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática de modos de vida e de pensamento de pessoas diferentes daquelas que conduzem a empresa da destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em seus corpos e o etnocídio os mata em seu espírito.”
Depois, o genocídio em si mesmo, a morte total e completa de um povo, o extermínio. Isso aconteceu, conforme denuncia da Funai, entre o povo Zoé no final da década de 1980, por atuação da New Tribes.
Também, o trabalho escravo, quando índios são escravizados para construir templos, pistas de avião, trabalhos domésticos para os missionários – acusações recorrentes entre as agências missionárias. Por exemplo, essa foi uma das justificativas dos Yawanawa, no Acre, para a expulsão da New Tribes de seu território.
Entre outros fatos, igualmente terríveis, como a perversa associação entre missões e o Estado no passado, como o uso do acesso a medicamentos para trocar aspirina e remédios pela conversão. É o que aconteceu, por exemplo, entre os Karajá, na Ilha do Bananal.
A atuação da missão Jovens com Uma Missão – Jocum –, como mostrei há alguns anos aqui na CartaCapital, provocou uma onda de suicídios entre os suruwahá, além da acusação de outro diversos crimes na aldeia – e loucuras, como a de trazer um xamã maori, da Nova Zelândia, para realizar um ritual de exorcismo no meio da Amazônia. Foram expulsos da aldeia pela Funai, sob determinação do Ministério Público Federal do Amazonas, acusados de uma série de crimes que foram compilados em um relatório da Funai, como publiquei.
A corrida pelas almas indígenas visa abastecer um verdadeiro mercado de almas, a custa do etnocídio, conforme reportagem na revista RollingStone publicada em dezembro de 2011.
O valor das almas no mercado das missões evangélicas pode variar muito. As mais caras e valiosas são a de pequenos povos que falam línguas isoladas ou ainda sem gramática traduzida. Nesses casos, o esforço é grande para traduzir a bíblia, e cada alma recebe mais investimentos da agência missionária para ser conquistada.
Os índios considerados “isolados”, que vivem em “isolamento voluntário”, ou então, apenas livres na floresta sem querer se aproximar das sociedades que os cercam, são o grande objeto de cobiça. E nesse caso, como são mais vulneráveis a epidemias, é maior o risco de um genocídio. Como a New Tribes Mission é acusada de praticar com os Zoé.
Nessa disputa de almas, há valores envolvidos. Há dinheiro, poder, controle de territórios, de mercados. A ética protestante, escreveu Max Weber no início do século, pode contribuir para o avanço do capitalismo. No caso das agências missionárias que tentam conquistar almas selvagens (“selvagem” no sentido de Levy-Strauss), as vinculações com capitalistas chegam a ser diabólicas, para fazermos uma analogia maldosa.
Exemplo: foram financiados por Rockfeller no pós-guerra. O milionário americano esperava encontrar petróleo nessa busca cristã por almas. E conseguiu, no Equador. As missões chegaram antes da exploração, converteram, “civilizaram”, e contribuíram para fulminar a resistência que os indígenas tinham aos planos petroleiros em suas terras.
Na região de Santarém, onde missionários da New Tribes Mission haviam sido expulsos dos Zoé, alianças inescrupulosas foram feitas para arregimentar almas ribeirinhas, de castanheiros, quilombolas, e fortalecer a religião entre os way-way e utilizar os way-way como mensageiros da fé. Os agentes missionários em Santarém passaram a ser contratados por madeireiros e sojeiros em disputa territorial contra os povos indígenas (relação parecida aconteceu com os garimpeiros no Amapá, outro exemplo). Em razão de problemas éticos, um deles, o antropólogo Edward M. Luz, filho do presidente da New Tribes Mission (de mesmo nome, Edward Luz, citado acima), foi expulso da Associação Brasileira de Antropologia. Em nota: “A ABA esclarece que o Sr. Edward Luz foi expulso do seu quadro de associados em reunião realizada em Brasilia, no dia 11 de janeiro de 2013. Não corrobora e não considera justas as manifestações deste senhor.” Luz publicou um texto no qual dizia: “não fui expulso da ABA. Pedi para sair ao constatar total compromisso e submissão da ABA ao Movimento Indígena”.
Algumas acusações contra Luz, que faz parte do mesmo grupo da AMTB e da Unievangélica, de Anapolis, constam num relatório feito pelo antropólogo Leandro Mahalem que podem ser acessado nesse link.
A Comissão de Direitos Humanos, a cada dia, segue misturando religião com Estado, rasgando a laicidade, e promovendo violência contra as minorias. Os missionários tentam pressionar o governo para que possam pregar o evangelho nas aldeias, promovendo assim o proselitismo religioso. Querem pregar de forma aberta, pois escondido já o fazem. É o caso, por exemplo, de uma professora municipal, também missionária entre os arawete, na região de Altamira. Ela utiliza o serviço público para praticar o proselitismo. A Funai regional em Altamira abriu processo para a sua expulsão da aldeia. Será que esse caso, que merece investigação, vai ser debatido na Comissão?
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