Por Maurício Brum, em Desacato
Eles sempre se lembrariam da dor, dos flagelos e das ameaças a cada hora do dia, dos homens taciturnos que percorriam os corredores escuros à cata do próximo escolhido para virar estatística. Sempre se lembrariam, com pudor, da urina nas calças quando foram pegos pela patrulha de carabineiros, sem saber o que seria da vida e da morte dali em diante.
Mas, com o passar dos anos, a memória dos presos políticos começaria a pregar peças, guardando apenas os momentos de terror maior. Muito do cotidiano daquelas semanas se perdeu diante da assombrosa realidade de todo o resto, permanecendo, talvez, a exceção de um único detalhe recordado pela maioria dos antigos detidos – os objetos subitamente sem dono que apareciam pelas arestas da cancha.
Num virar de horas, os companheiros que não retornavam para o local de detenção se tornavam apenas um amontoado de itens abandonados. Mortos na tortura ou liberados sem que os demais soubessem, deixavam para trás, normalmente, um par de sapatos e um cobertor já sem uso, que viravam moedas de troca preciosas na dura rotina da prisão. Mais de um sobrevivente contaria, depois: “o Estádio Nacional é puro concreto – no chão, no teto, nas paredes. Em qualquer época do ano, faz um frio de gelar a alma”.
Aquele setembro de 1973 foi particularmente cinzento e congelante, como para dar uma metáfora acertada para o golpe que havia acolhido. Fazia um frio constante, enquanto os militares racionavam cobertores. Não que eles estivessem em falta: as caçambas dos caminhões continuavam cheias de mantas doadas aos desabrigados do último terremoto, ocorrido dois anos antes. A distribuição não acontecia para impor uma punição a mais. Nos primeiros dias em que o estádio recebeu presos, a média era de uma coberta a cada cinco detidos.
Para tentar se aquecer, os prisioneiros buscavam ficar juntos, aglomerados – algo relativamente fácil para aqueles mantidos nos vestiários, apertados cubículos de 25 metros quadrados com mais de cem pessoas dentro. O espaço havia se tornado tão exíguo que os homens de baixa estatura procuravam algum conforto dormindo nas prateleiras onde os jogadores de futebol colocavam as chuteiras.
Quem mais sofria com as temperaturas reduzidas eram os prisioneiros das escotillas, nome das entradas que davam acesso às arquibancadas do Estádio Nacional. Com portões constituídos por barras de ferro, suficientes para conter homens, mas sem oferecer barreira para o vento, as escotillas viravam verdadeiros túneis de ar gelado todas as noites. Ali, um cobertor podia valer até três pães – valor elevadíssimo para a maioria dos detidos, que costumavam receber um pão e uma caneca de café por dia. O frio, que podia matar em uma madrugada, assustava bem mais que a fome.
Assim, quando alguém desaparecia dos vestiários e das escotillas, seus pertences viravam uma espécie de poupança para os companheiros de cela, que tratavam de escondê-los, conservá-los e oferecê-los aos presos recém-chegados. Às vezes por caridade, noutras tantas em uma permuta. Um jornalista uruguaio capturado sob a acusação de pertencer à guerrilha dos tupamaros chegou descalço ao estádio e, quando tirou do bolso uma carteira de cigarros, sentiu a aproximação de um tipo já curtido pela prisão:
– O que houve com os teus sapatos?
– Foram os carabineiros. Eles tiraram de mim quando me prenderam.
– Qual o teu número?
– Quarenta e um.
– Vamos fazer assim: se você me der alguns cigarros, eu te arranjo um sapato.
E arranjava mesmo. Em troca do fumo – cinco cigarros, mais precisamente –, o preso antigo voltou com um calçado do tamanho certo.
– De onde tu tiraste isso? – questionou o uruguaio.
– Não te preocupa, que o dono não vai mais precisar deles.
* * *
Apenas os homens habitaram os vestiários e as escotillas do Estádio Nacional. Todo o complexo esportivo ganhou uma nova geografia durante os dois meses em que foi convertido em cadeia. O Estádio em si estava reservado aos prisioneiros do sexo masculino, muito mais numerosos; o Velódromo seria destinado aos interrogatórios; e, por fim, as Piscinas e seus vestiários foram destino das mulheres.
Muitos casais foram mantidos presos a poucos prédios de distância, sem nunca chegar a se encontrar. Outros se reencontraram, sim, mas de modo infeliz: uma tática eficaz para arrancar confissões era torturar as esposas diante de seus maridos, que assinavam um papel admitindo ter cometido quaisquer barbaridades que os fardados quisessem.
Isoladas na praça aquática, elas raramente apareciam na cancha de futebol, apenas em momentos escolhidos. Umas poucas foram colocadas em vestiários por algumas horas, numa tentativa infrutífera de acrescentar aos presos a acusação de estupradores. “Uma das descobertas mais surpreendentes que fiz durante minha estadia na prisão foi inteirar-me de que, pelo simples fato de ter parado ali, os militares nos consideravam uma escória da pior espécie”, escreveu o professor de castelhano Adolfo Cozzi Figueroa no livro Estadio Nacional.
Mas os prisioneiros políticos não eram delinquentes. Quase todos eram trabalhadores, desde operários analfabetos até professores universitários, sem qualquer motivo para serem privados de liberdade em tempos normais. As mulheres corriam mais riscos nas mãos dos próprios militares do que nas dos detidos, e a maioria delas só aparecia no estádio, mesmo, nas tardes em que eram levadas para tomar sol. Estavam lá quando os homens se despediram da cancha e foram carregados até o campo de concentração de Chacabuco, e surpreenderam-nos cantando em coro Run run se fue p’al Norte, música de Violeta Parra sobre a partida de seu amado para a zona setentrional do Chile.
E o fato é que, em meio à escuridão dos dias finais de 1973, uma fresta se abriu para o amor no Estádio Nacional. Fugidio, subterrâneo, mas presente. Oito anos antes, o músico comunista Víctor Jara havia escrito uma letra em que narrava os enamoramentos de dois operários que se encontravam no curto intervalo de suas fábricas:
Son cinco minutos
la vida es eterna
en cinco minutos
Suena la sirena
de vuelta al trabajo
y tú, caminando
lo iluminas todo
Los cinco minutos
te hacen florecer
Para os casais que se encontraram acidentalmente num dos caminhos do estádio, os cinco minutos eram um hiato que recobrava as forças para resistir. Foi assim com Luis Alberto Corvalán Castillo e Ruth Vuskovic, pais de um menino de oito meses que ficou para trás e só sobreviveu graças à solidariedade de amigos e vizinhos.
Os dois terminaram na prisão muito mais pela proeminência de seus pais, embora também tivessem atuação política. O velho de Luis Alberto, que tinha o mesmo nome do filho, era secretário-geral do Partido Comunista Chileno. Pedro Vuskovic, pai de Ruth, havia sido Ministro de Economia de Salvador Allende entre novembro de 1970 e o mesmo mês de 1972.
Luis e Ruth foram carregados de casa com um intervalo de poucos dias, e ambos terminaram no Estádio Nacional. Ela, claro, nas piscinas. De alguma forma, ele soube que a esposa estava no complexo. Só não imaginava que em uma dessas tardes surgiria a oportunidade do encontro. Os militares precisavam de voluntários para carregar cobertores e colchonetes a outro setor. Luis não sabia, mas a carga tinha como destino o centro de natação.
Alguns de seus colegas, porém, tinham a informação privilegiada e tramaram-lhe uma bondosa surpresa. Geralmente os prisioneiros se candidatavam rápido para as missões convocadas pelos militares: essas saídas eram a chance de pegar fresco, ganhar um pão a mais e obter alguma informação nova sobre o que se passava além das suas escotillas. Mas naquele dia todos pareceram esperar que Luis Alberto fosse o primeiro a se voluntariar. Ele relatou a experiência em Viví para contarlo, seu livro-denúncia sobre a prisão política:
Ainda ignoro o destino desta primeira viagem. Iniciamos a marcha em sentido contrário ao Estádio. Vejo o companheiro que me colocou nessa operação e em seus olhos leio a picardia de quem sabe o destino e guarda uma surpresa. Já caminhamos o suficiente para compreender que nos dirigimos às piscinas. O coração brinca de alegria e quero ir mais rápido que a escolta. Dou-me conta de que poderei ver minha companheira.
No recinto da piscina há uma guarda especial, uma sentinela cuida a porta de entrada, outros guardam as cercas. Uma das escoltas mostra o passe e abrem o portão. Fazemos fila pelo caminho de britas que conduz aos vestiários da piscina. A cem metros se divisam as mulheres detidas. Quando estamos a trinta metros e os rostos se tornam familiares, uma delas sai correndo na direção dos vestiários do setor oposto ao que estamos chegando, e vai gritando o nome da minha esposa. Meus olhos seguem sua corrida com ansiedade. […]
Então vejo Ruth. Vem com sua característica flor no cabelo e seu sorriso de marfim. Compreendo que está inteira, de pé e combatendo. Que importam os sentinelas e seus fuzis! Abro meus braços para receber seu aroma e dar-lhe minha força!
– Nós vamos descarregar e avisamos vocês quando estiver pronto.
– Vem, vou te mostrar onde durmo.
Entramos nos vestiários da Piscina. São igualmente gelados como os nossos. Ao menos agora terão um colchão que separe seus corpos dos azulejos gelados. Aperto os punhos e sigo pensando em silêncio: seriam capazes as mulheres deles de sobreviver um só dia nestas condições? […] Aperto a cintura da minha companheira e acaricio seu cabelo. Deixaram-nos sozinhos em um entendimento tácito. Miro seus olhos profundos que me contam de seu terno amor, vejo neles a resposta militante das mulheres do povo ante a repressão. Penso que não conseguirão dobrá-las. Pego seu rosto entre minhas mãos e a beijo, com um beijo prisioneiro e clandestino.
– Pronto, companheiro! Apure-se porque chegou um oficial.
Luis Alberto voltou para seu vestiário com a doçura de um beijo roubado embaixo dos narizes dos militares. Como muitos, seguiu do Estádio Nacional para o campo de concentração de Chacabuco. Conforme afirma no título de seu livro, sobreviveu o bastante para recuperar a liberdade e contar o que experimentou lá dentro e registrar seu depoimento em tribunais internacionais de direitos humanos.