11/09: Dia de acertar contas com nossa história, por Leonardo Sakamoto

Neste 11 de setembro, em que relembramos os 40 anos do golpe contra o presidente democraticamente eleito Salvador Allende, no Chile, gostaria de lamentar publicamente a morte do general Augusto Pinochet.

Entendo a alegria de todos os que, durante as ditaduras militares do Cone Sul, foram caçados por ele, chilenos ou não. Mas o passamento dele, ocorrido no dia 10 de dezembro de 2006 (ironicamente, o aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos), ou mesmo de outros açougueiros-ditadores sem que fossem devidamente punidos pelas atrocidades que cometeram, deveria ser um momento de reflexão e de pesar.

Pesar pela incompetência da humanidade que poucas vezes conseguiu fazer com que esses carrascos respondessem pelos crimes que cometeram. De 1973 a 1990, mais de 3 mil pessoas desapareceram pelas mãos da polícia secreta de Pinochet.

Mesmo se eu acreditasse em mitologias, uma morte aos 91 anos de causas naturais não é indício de “justiça divina”. O sujeito passa desta para uma melhor, morando confortavelmente em sua mansão, com a certeza absoluta que tanto o governo chileno quanto o sistema internacional não teriam forças para colocá-lo na cadeia e há quem considere isso como “justiça divina”?

O fuinha viveu quase um século, sendo que 17 anos mandando e desmandando e morreu impune! Passou os últimos anos se justificando pela saúde frágil. Frágil de acordo com a equipe contratada para a sua defesa, claro. Portanto, o céu (nem o inferno) não fizeram justiça. Muito menos nós.

O ditador indonésio Suharto morreu, em 2008, aos 86 anos, em conseqüência de uma falência múltipla de órgãos. Seu governo durou 32 anos, período em que o país viveu um grande crescimento econômico, mas também massacres de seu próprio povo e genocídios decorrentes de invasões militares em Irian Jaya (a parte esquerda de Papua Nova Guiné) e, principalmente, Timor Leste. Suharto morreu sem ter sido julgado.

O coronel Erasmo Dias morreu, em 2010, aos 85 anos. De 1974 a 1979, ocupou o cargo de secretário de Segurança Pública em São Paulo, garantindo a ordem sob as técnicas persuasivas da Gloriosa. Ficou conhecido pela invasão da PUC-SP em setembro de 1977, ao reprimir um ato pela reorganização da União Nacional dos Estudantes. Entendo a alegria de todos os que, durante a ditadura militar, foram atropelados pelos seus cavalos ou torturados sob sua responsabilidade. Mas não deixo de dar meus pêsames pela nossa incompetência, por não conseguirmos fazer com que esse arauto da retrocesso respondesse por tudo aquilo que fez.

Nessas horas, tenho vontade de ser Argentina (e mais ainda Uruguai, desde que tendo o Mujicão como presidente). Pois, quando o ex-ditador Jorge Videla morreu aos 87 anos de “causas naturais”, ele cumpria pena de prisão perpétua no Centro Penitenciário Marcos Paz por cometer crimes de lesa humanidade. O carniceiro comandou o golpe de março de 1976, que derrubou o regime democrático, e coordenou a repressão entre 1976 e 1983 – quando mais de 30 mil pessoas foram assassinadas por questões políticas, e mais de 500 bebês de ativistas foram sequestrados ou desapareceram. Em 2010, foi condenado à prisão perpétua, depois de ter sido condenado e anistiado anteriormente. Videla chegou a confessar que as mortes foram necessárias.

A Argentina pode ter um milhão de problemas. Mas conseguiu lidar com seu passado de uma forma bem melhor do que nós, punindo responsáveis por sua ditadura militar (uma das mais cruéis da América Latina), reformando sua anistia.

Por aqui o governo brasileiro resolveu não mais tentar buscar a reinterpretação da Lei da Anistia. Mais do que punir torturadores, seria uma ótima forma de colocar pontos-finais em muitas das histórias em aberto e fazer com que pessoas tivessem, pela primeira vez em décadas, uma noite de sono inteira. A Presidência da República resolveu investir suas fichas na Comissão da Verdade, criada pelo Congresso Nacional. Mas ela não irá garantir que representantes daquele tempo, como o coronel Brilhante Ustra, deixem de reinventar a História como quiserem sem medo de serem punidos.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu que o Brasil é responsável pelo desaparecimento de 62 pessoas entre os anos de 1972 e 1974, durante a Guerrilha do Araguaia. E que deve, enfim, investigar e punir as mortes por meio da Justiça. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, que vem sendo sensível em decisões sobre a dignidade humana, também deu de ombros e disse que tudo fica como está.

Não acordei com uma sanha justiceira, de maneira alguma. Mas creio que todos os que lutam para que os direitos humanos não sejam um monte de palavras bonitas emolduradas não se sentiram contemplados com o passamento de Pinochet, de Suharto, de Erasmo Dias, de torturadores brasileiros que morrem sem a Justiça, não a vingança, seja feita.

Quero apenas que a Justiça seja mais célere que o tempo. E que, através desse processo de julgamento, as sociedades consigam saldar as contas com seu passado, revelando-o, discutindo-o, entendendo-o, julgando-o e, sim, punindo-o. Como já disse aqui, o impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).

Enquanto não acertarmos as contas com nossa história, não teremos capacidade de entender qual foi a herança deixada por ela – na qual estamos afundados até o pescoço e que nos define. É pedir muito?

pinochet

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