Por Ismael Machado, Diário do Pará/ Agência Pública
Cleude, com medo, tenta pegar na mão de Deus
Não é fácil encontrar Cleude Conceição. É preciso enfrentar a poeira e os buracos da rodovia Transamazônica, saindo de Marabá e indo em direção a Itupiranga, municípios ao sudeste do Pará. São 27 km vencidos com dificuldade até se alcançar um travessão que liga à localidade de Jovem Creane. A partir daí são mais 22 km em uma estradinha de terra estreita e tortuosa, marcada por pequenas pontes.
Quando a reportagem chega ao pequeno vilarejo, quase quatro horas depois de ter saído de Marabá, precisa esperar ainda por Conceição, que está pescando. Ela chega uma hora mais tarde, trazendo duas pequenas piranhas e um surubim, resultado da pescaria. Aos 30 anos, é uma mulher magra, pequena, negra, de natureza desconfiada.
Cleude Conceição já escapou de tiros, já viu companheiros tombarem. Junto ao pai Marcos Gomes, ela coordena um grupo de 70 famílias que ocupavam duas fazendas em Itupiranga. Tanto a fazenda Bandeirantes como a Potiguar são consideradas terras públicas da União, e estão em processo de arrecadação pelo Incra.
É um litígio que já dura nove anos. As fazendas são contíguas e juntas alcançam 700 alqueires. A intenção dos trabalhadores rurais era dividir a terra em 10 alqueires para cada família. Assim, cada família começou a produzir nas áreas ocupadas. As fazendas, até então, haviam sido consideradas improdutivas pelo Incra.
A reação dos proprietários foi imediata. Pistoleiros apareceram nas ocupações e iniciaram as ameaças. Barracões foram incendiados e famílias despejadas sob a mira de armas. A Justiça Federal de Marabá determinou que o Incra pagasse as benfeitorias que os fazendeiros supostamente haviam feito nas terras. O Incra recorreu e o caso ainda segue os trâmites judiciais.
Sem definição a esse respeito, a Justiça Federal determinou o despejo das famílias ocupantes, que protestaram e ameaçaram enfrentar os oficiais de Justiça e a Polícia Militar. Os fazendeiros mostraram então que não estavam dispostos a ceder. No dia 29 de janeiro de 2011, pistoleiros assassinaram a tiros a principal liderança dos posseiros, o agricultor Pedro Sacaca. A acusação de ser o mandante do crime recaiu sobre o fazendeiro João Ricardo, mas o inquérito segue a passos lentos. Ainda não houve julgamento.
Assim Marcos Gomes e a filha, Cleude Conceição, assumiram a liderança do movimento. As famílias decidiram acampar a sete quilômetros das fazendas. O acampamento de barracas de lona não durou muito tempo, devido às dificuldades encontradas pelos trabalhadores rurais. “Era muita pulga, seu moço”, resume Cleude Conceição.
Dificuldades fazem parte da vida de Conceição. Com dez anos de idade participou da primeira marcha com integrantes do MST, acompanhando a mãe, Domingas da Conceição. Com 22, fez parte da ocupação da fazenda Cabaceiras, em Marabá, mas não conseguiu um pedaço de chão para si. Ouviu de um pistoleiro à época que só conseguiria terra debaixo dela.
A mãe Domingas separou-se do pai. E, com Marcos Gomes, Conceição partiu em busca de terra nas fazendas Bandeirantes e Potiguar, sempre tendo o medo como companheiro. “Não tem como não ter medo. A gente viu o Pedro Sacaca tombar. Me deu um ‘belo belo’ quando vi o corpo dele cheio de bala”, diz. ‘Belo belo’ é uma expressão usada para definir mal estar, tremedeiras, nervosismo.
“Na época era muito tiro, os capangas dos fazendeiros andavam armados, intimidando. Já pensou, a pessoa matar o outro? Dentro de casa, nós fica é com medo pelo tanto que já sofremos”, diz.
No centro do vilarejo onde as famílias aguardam uma decisão definitiva, sobram histórias de luta pela terra. É uma luta protagonizada por mulheres. Muitas ‘marias’, como Maria Lúcia e Maria da Ajuda. “A gente tem esperança de ter um pedaço de chão nosso”, diz Maria da Ajuda.
Junto ao pai, Cleude Conceição passou a sofrer ameaças. “Já veio recado dizendo que todas as lideranças estavam na mira”, revela. O processo que vai definir a situação das fazendas ainda está correndo na Justiça. Por três vezes os agricultores ocuparam a terra e foram despejados. “Uns desistem, outros não. A gente continua lutando. É difícil e eu vou dizer, não tem como pegar na mão de Deus quando a bala manda recado”.
Foto: Antônio Cícero
Nicinha e o sindicato rural dirigido apenas por mulheres
Zuldemir dos Santos de Jesus, a ‘Nicinha’, guarda com cuidado uma pasta já antiga. Nela estão mais de 20 folhas de papel. São cópias de boletins de ocorrência policial, declarações e atas de atendimento encaminhadas ao Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. Resumem a luta de ‘Nicinha’ para se ver livre das ameaças contra sua vida, recorrentes desde que assumiu um papel de liderança no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Rondon do Pará, no sudeste do estado.
Aos 52 anos, ela acumula as funções de vice-presidente e diretora de Políticas Sociais do sindicato. Vive assombrada, não sem motivos. No dia 29 de janeiro desse ano, um vizinho ouviu o barulho de um carro. Passava das 23 horas. O vizinho ouviu passos em direção ao portão da casa de Nicinha e viu quando um homem tentou forçar a entrada. O vizinho de Nicinha acendeu uma lanterna e o desconhecido recuou, indo embora no carro.
Em outra ocasião, dois anos antes, a janela da casa de Nicinha foi riscada com faca. Em outubro de 2012 estava em casa quando percebeu que alguém forçava a janela de um dos quartos. Nicinha sabe que as ameaças podem ser concretizadas. Já viu duas lideranças do sindicato serem assassinadas. Não quer ser mais uma a engrossar a lista.
Não era o que ela esperava em 1996, quando ingressou no Sindicato dos Trabalhadores Rurais, de forma até prosaica. Seis anos antes procurara o sindicato buscando acelerar o processo de aposentadoria da mãe, que vivera como lavradora. Gostou do que viu, se interessou pela luta por reforma agrária. Conheceu Maria Joel Dias da Costa e José Dutra, o ‘Dezinho’, presidente do sindicato, que viria a ser assassinado na porta de casa em 2000.
Zuldemir passou a trabalhar no sindicato como secretária. Em 2002 se tornou dirigente sindical, sob a influência de um grande amigo, o diretor sindical Ribamar Francisco dos Santos, assassinado em 2004. “Esse foi um dos maiores choques da minha vida”, diz ela. A partir daí Nicinha afirma que não teve mais sossego. Ao ir para a linha de frente das lutas sindicais, passou também a receber a sanha dos adversários.
“Ligavam para minha casa sem se identificar, diziam que iam matar eu e minha família toda. Foram momentos muito difíceis, fiquei desesperada”, lembra.
As ameaças surgem de maneiras improváveis. “Houve o episódio de um suposto advogado que me procurou dizendo que queria conversar comigo em casa e não no sindicato. Eu sei que é costume matarem sindicalistas em suas casas. Esse advogado pegou o meu telefone com a secretária do sindicato, depois se apresentou como funcionário do Instituto de Terras do Pará, o Iterpa, e que estava em um carro sem identificação e de vidros fumê. Essa pessoa ligou para mim, se dizendo advogado de Marabá, mas não se identificou. Eu disse que não poderia falar com ele em casa, mas o receberia no sindicato. Ele não apareceu”.
Em outra ocasião, quando haveria uma reunião em um acampamento que enfrentava uma ordem de despejo, uma pessoa a alertou para não ir à reunião, pois a estariam esperando na estrada, com a intenção de matá-la. Por precaução, Nicinha não foi à reunião, mas se dirigiu a casa da presidente do Sindicato, Maria Eva dos Santos Dias. As duas viram um motoqueiro com uma arma na cintura na frente a casa de Eva. Nicinha acredita que o desconhecido a seguira até ali.
Também foi suspeita foi a presença de quatro homens numa caminhonete, que foram ao Sindicato assuntar pelo endereço de Nicinha. A sindicalista prefere não citar nomes, mas diz também receber ameaças de uma pessoa que está presa por ter assassinado o coordenador de um acampamento. “Essa pessoa já avisou que assim que sair da prisão vai fazer um massacre no sindicato”, diz.
No dia 23 de outubro de 2011 Nicinha recebeu uma ligação de Brasília. Nem ela sabe explicar como, mas os rumores das ameaças de morte chegaram à capital federal. O Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, manifestou preocupação com a sua situação. Cinco dias depois, doze policiais chegaram a Rondon do Pará. Fariam a proteção a Nicinha. “Só não me avisaram que seria apenas por três meses”, diz ela. Ao fim, a proteção foi estendida por mais três meses. Agora, Zuldemir está desamparada de proteção policiai desde abril de 2012. “No momento em que a situação estava mais tensa, mais complicada, com a luta pela regularização de terras sendo feita de forma mais acirrada e ameaça de confrontos, a proteção foi embora”.
Segundo ela, a situação de Rondon do Pará é delicada. “Acredito que as ameaças são do mesmo grupo que assassinou o Dezinho e o Ribamar, tesoureiro do sindicato. Hoje a prefeita da cidade é filha de um dos fazendeiros do grupo de ameaçadores, os que nunca foram punidos”.
A vida de Zuldemir é agitada. O marido não suportou a pressão e se separou dela. Um golpe a mais para quem vive entre a família, o sindicato e a assistência a assentamentos.
O sindicato atende em torno de 2.500 famílias assentadas, que se sustentam da venda do que produzem. E, fato curiosamente trágico, devido aos assassinatos, os homens não quiseram assumir nenhum cargo diretivono sindicato. Toda a executiva é composta por mulheres. “Tem dia que fico pensando que vou sair de casa, mas não irei voltar. Nos fins de semana, quando fico sozinha em casa, não durmo, porque fico observando cada movimento. Duas vezes já tentaram abrir a porta de minha casa. Viver com tranqüilidade é algo que desaprendi a fazer”.
Foto: Antônio Cícero
Graciete carrega na carne a bala dos assassinos de seu pai
Graciete Souza Machado não lembra de ter ouvido o estampido. Sentiu apenas um formigamento quente nas costas. Aos poucos o sangue começou a escorrer, empapou a rede e o lençol onde embalava o filho de três anos de idade. O relógio da parede marcava 22 horas do dia 11 de outubro de 2010. Nessa noite, a bala, que tinha outro endereço, tornou-se inquilina incômoda e indesejável no corpo de Graciete. Ainda está lá, a dois centímetros da coluna vertebral, como a lembrar sempre do risco, das ameaças, da violência.O projétil que quase inutilizou Graciete Machado tinha como o alvo o pai, Francisco Alves de Macedo, assassinado cinco meses depois por pistoleiros que continuam em liberdade.
Graciete Machado mora no município de Breu Branco, a 419 km da capital Belém, no sudeste paraense. É um município relativamente pequeno, com menos de quatro mil quilômetros quadrados de área, segundo levantamento feito pelo IBGE em 2010. Em Breu Branco moram pouco mais que 55 mil habitantes, também segundo o IBGE. A maioria, migrantes.
O que motivou a tentativa de assassinato de Graciete e a posterior emboscada contra o pai dela foi a ocupação de uma fazenda abandonada nos arredores da cidade. A fazenda, chamada Castanheira, é hoje um pequeno bairro de periferia, feito de casas pequenas de tijolo sem reboco. Em 2010, um grupo de 1.500 famílias ocupou a terra. Francisco Macedo, um agricultor que nos anos 90 saiu de Cacoal em Rondônia para tentar a sorte no Pará, participou da ocupação. E viu de perto a ação violenta de pistoleiros que queriam tirar as famílias da fazenda.
“Meu pai não era líder de nada, mas sempre tentava ajudar as pessoas, porque tinha esse dom de não suportar injustiça. Naqueles dias os pistoleiros mataram três pessoas e o meu pai se revoltava contra isso”, diz Graciete Machado, sentada no sofá simples da casa sem reboco, sob o olhar atento do marido. Graciete mora a cerca de 200 metros da fazenda ocupada.
As retaliações violentas a mando dos proprietários da fazenda improdutiva fizeram com que Francisco Macedo fosse prestar queixas na delegacia local diversas vezes. Quase sempre sem resultado efetivo. “As pessoas procuravam meu pai para que ele ajudasse, e ele ia defender as pessoas”.
Três anos antes de ser morto, Francisco Macedo foi alvo da primeira tentativa de assassinato. O tiro não o acertou na escuridão da noite, quando voltava para casa. Macedo procurou a Polícia Federal e denunciou a emboscada. Acabou sendo ele o detido por reclamar que a polícia nada fazia nessas horas.
Finalmente os posseiros entraram no acordo com os donos da fazenda, intermediado pelo Incra. Cada família pagaria um valor pelo lote. Mas o acordo foi quebrado pelos proprietários da terra, que queriam negociar a terra com uma construtora de condomínios. Aí sim, Macedo tomou a frente da luta, reivindicando o direito das famílias. As ameaças de morte se multiplicaram.
Graciete acompanhava o pai em algumas das reuniões. Percebia o perigo que rondava Francisco Macedo. Na noite em que foi baleada, ela estava na casa do pai. Deitara na rede dele com o filho. Três homens chegaram num carro escuro. Um deles aproximou-se da janela e disparou em direção à rede. Mas Francisco não estava em casa; dessa vez, a vítima foi Graciete.
A filha do agricultor praticava atletismo. Era maratonista, chegando a ganhar algumas competições no sudeste do Pará. Também treinava caratê. Atualmente, com 26 anos, mal consegue colocar o filho nos braços. Sente dores constantes nas pernas, não pode fazer nenhuma atividade que exija mais força, nem cuidar da casa onde mora.
Depois da morte de Macedo, a mãe de Graciete se mudou para o município vizinho de Tucuruí. As ameaças não cessaram. Por buscar justiça contra os assassinos do pai, Graciete passou a ser alvo. Quase não vai mais à igreja, e às 18 horas fecha toda a casa. O marido, José, trabalha como soldador em projetos como o da hidrelétrica de Belo Monte e chega a passar cinco meses fora. “Quando dá para levar a família a gente leva, mas na maioria das vezes não dá, então peço pros meus familiares ficarem com ela”, diz.
Graciete não conta com nenhum benefício social, não conseguiu se aposentar. A imagem da bala em uma radiografia é uma lembrança constante. Desde o episódio não quis se envolver mais nas questões da ocupação da fazenda. Tenta viver cada dia de uma vez. Só quer que os autores do assassinato do pai sejam presos. “A notícia que tenho é que estão soltos. Isso assusta a gente. Eu e minha família só queremos viver em paz”.
Foto: Ney Marcondes