A diretora Maria Maia sintetiza o ímpeto de Darcy Ribeiro no documentário ‘Darcy, um brasileiro’ (2013), da seguinte forma: “Nesta América Latina, nós só podemos ser resignados ou indignados”. Darcy foi comunista. Mas não conseguiu suportar as agruras da burocracia partidária
Flávio Ricardo Vassoler*
É assim que a diretora Maria Maia sintetiza o ímpeto de Darcy (Che) Ribeiro no documentário Darcy, um brasileiro (2013). Darcy foi comunista. Mas não conseguiu suportar as agruras da burocracia partidária. Ainda assim, o famoso aforismo de Marx arrolado nas teses sobre o filósofo Ludwig Feuerbach (1804-1872) jamais deixou de ser o espectro que rondou o continente de sua vida combativa. “Os filósofos só fizeram interpretar o mundo de diferentes maneiras; trata-se, no entanto, de transformá-lo”.
Em uma entrevista para o programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1995, Darcy afirma ter buscado inspiração em Getúlio Vargas para estabelecer uma síntese tensa entre crítica e práxis. Ilhado pelos mais diversos e encarniçados inimigos políticos; aviltado pela cloaca jornalística de Carlos Lacerda, o porta-voz do reacionarismo brasileiro pré-ditadura, Getúlio se vê premido no Palácio do Catete. Que fazer?
Um golpe iminente não lhe faria voltar ao poder, ainda uma vez, nos braços do povo. Que fazer? Fazer, executar. Sair da vida para entrar na história. Getúlio se oferece em holocausto para se tornar Vargas. O suicídio aglutina os ímpetos do varguismo e dos varguistas contra a direita em seus vários matizes – desde os industriais irrequietos com o aprofundamento trabalhista de João Goulart, então ministro do trabalho, até o capital estrangeiro enregelado pelo modelo estatizante e nacional-empreendedor daquele que sancionara a Consolidação das Leis do Trabalho. O suicídio de Vargas inviabilizou, naquele momento, o ímpeto golpista transformado em mantra pela mídia lacerdista. O holocausto de Getúlio Vargas forneceu a Darcy Ribeiro uma profunda experiência de (tentativa de) conciliação entre a atuação política e a transformação a ser realizada desde já, agora.
Darcy e o indigenismo; Darcy e a escola pública em tempo integral; Darcy e a criação da Universidade Federal de Brasília, a UnB; Darcy, ministro da educação e chefe da Casa Civil do governo João Goulart. Reforma agrária iminente, proibição de terras improdutivas, assinatura da lei de regulamentação da remessa de lucros pelas multinacionais. A lucidez de Darcy bem soube diagnosticar as razões da queda. “O governo do Jango foi derrubado pelas qualidades, e não pelos defeitos”. Como se o então inexistente Jornal Nacional fizesse suas as palavras da Central Intelligence Agency, a CIA: “O Brasil não pode seguir o caminho vermelho. Se falharmos, não teremos outra Cuba, mas outra China no continente americano”.
Darcy tentou resistir aos golpistas, mas acabou tendo que se exilar. “A queda de João Goulart estrangulou o governo que mais seriamente tentou passar o Brasil a limpo”. O Brasil militar não apenas enxotou um grande intelectual. O Brasil se viu sem um de seus mais prolíficos intérpretes, o povo brasileiro se viu menos interpretado – menos reconhecível para si mesmo. Darcy foi percorrer os confins latinos. Coagido a explorar. Em uma cerimônia de homenagem ao intelectual político – Darcy teria dito político intelectual? – que implementou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Luiz Inácio Lula da Silva, outrora retirante, bem soube expressar o sentimento do exílio que Darcy transformou em aprendizagem – e práxis: “Seu mergulho na América Latina se transformou em uma extensão do mergulho anteriormente realizado no interior indígena do Brasil”.
Darcy Ribeiro foi convidado a impulsionar o processo de reformulação da Universidade Oriental do Uruguai. Darcy trabalhou no Chile efusivo de Salvador Allende. Escreveu discursos para o presidente que também foi entoado por Pablo Neruda. O Chile da transformação social. O Chile da esperança (vigiada). O Chile coagido como Darcy. O ethos de Darcy Ribeiro ressoa pelas palavras do combalido Allende diante da tomada iminente do Palácio La Moneda pelas tropas do títere de Richard Nixon e Henry Kissinger, o general Augusto Pinochet: “Eles têm a força, podem nos subjugar, mas não se detêm os processos sociais nem com os crimes e nem com a força. A história é nossa. Ela é feita pelos povos. Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores!” Darcy ecoou os trabalhadores chilenos. “Allende, Allende, el pueblo te defiende!” Mais: Darcy sentenciou que a tomada e a manutenção do poder, lições históricas legadas por Nicolau Maquiavel, não se norteiam senão por princípios que transformem o príncipe despótico na república popular. Do contrário, mais vale a derrota que resguarda a caixa de Pandora na cidade ausente da utopia. Assim falou Darcy sobre Utópolis: “Meus fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.
O último algoz de Darcy foi o câncer. Mas o intérprete do Brasil não subiu ao cadafalso sem antes ditar a obra que coroa seus esforços para refletir sobre o processo civilizatório que ensejou nosso país. “Tudo o que o Brasil pode ser, há de ser – e não é”. Impossibilitado de escrever pelo torpor das metástases, Darcy narra O povo brasileiro como os oradores do Xingu com os quais o indigenista tanto aprendeu. O convívio indígena, a espiritualidade africana e a sabedoria e tecnologia europeias criam e recriam o Brasil. Eis o enorme potencial (revolucionário) de desordem sincrética que tanto clama por um efetivo progresso historicamente “entravado pela classe dominante medíocre que impede o desenvolvimento da civilização brasileira”.
Ao término do corredor polonês de sua vida, Darcy pretende dar um último nome a seu desejo. “Quero dar uma aula”. Todos se prontificam, Darcy dará uma aula magna na UnB. “Não, não: quero dar uma aula para uma criança”. O menino Felipe, de 9 anos, tem o privilégio de singrar o caudaloso rio brasileiro a bordo da jangada de Darcy. É como se o intelectual da mineira Montes Claros voltasse à sua cidade natal para narrar, ainda uma vez, que é preciso beber a poesia do azul de metileno.
Conta um Darcy já arfante que, aos 8 anos (se tanto), o centro de tratamento de água de sua cidade só fazia borbulhar o invisível. Se o Brasil tem tantas cores, por que o líquido da vida deve ser como o zero – incolor, nem par, nem ímpar? Logo o alquimista pré-mirim Darcy Ribeiro liquefaz o azul em metileno que tinge as águas da cidade. Banho-maria azul. Do chuveiro, a água já sai com xampu. O flúor é bom, mas não podemos vê-lo. A água azul veste os dentes e mimetiza, com outra cor do arco-íris, a embriaguez violeta do vinho. Eis a solução de Darcy para a criança que ainda não conhece a natureza noturna da uva. Sua mãe lhe dá uma bela coça – os olhos lacrimejantes de Darcy parecem afagar a memória –, mas o intérprete do Brasil outro já pressentia, desde o princípio, que a utopia não pode ser estancada. O povo brasileiro, por Darcy Ribeiro: Brasil azul de metileno.
*Escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.