Liberdade de expressão na prática

Por Tadeu Breda

Poucas vezes uma cobertura jornalística comunica, ela mesma, sobre o que pretende informar. Quer dizer, é raro ver uma reportagem falar por si mesma — e não pelo texto ou imagens que publica. Foi o que aconteceu nesta semana com a visita extraoficial do relator especial das Nações Unidas para Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, Frank La Rue, e a atenção que lhe foi dada pela mídia brasileira. O guatemalteco veio ao país a convite da Frente Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), encontrou-se com autoridades do governo federal, empresários das telecomunicações, parlamentares, especialistas e entidades que lutam contra a concentração midiática no Brasil.

Assisti à reunião que La Rue manteve com a sociedade civil em São Paulo e, depois, à entrevista coletiva que concedeu à imprensa presente no auditório do Sindicato dos Engenheiros — basicamente, meios alternativos, com a exceção de O Estado de S. Paulo e O Globo. Foram mais de três horas de discussões, e o relator da ONU falou sobre divisão de frequências de rádio e tevê, regulação estatal, monopólio midiático, censura, Argentina, Venezuela, Ley de Medios etc. Defendeu com afinco a ideia de que não existe liberdade de expressão — nem democracia — sem pluralidade de vozes e diversidade de ideias.

E a melhor representação de seu discurso foram as matérias que saíram logo depois. Este foi o destaque dado pelo Estadão, em matéria única e curta: “Imprensa não deve sofrer regulação”, diz relator da ONU; e este, praticamente o mesmo, pelo O Globo, em nota tão sucinta quanto: “Imprensa não deve sofrer regulações”, diz relator especial da ONU.

As notícias não manipulam as declarações de La Rue, mas é interessante compará-las à cobertura oferecida pelos meios alternativos, que conseguiram dar destaque a muitas outras ideias do relator — sem deixar, claro, de ressaltar seus reparos à regulação estatal dos conteúdos midiáticos. Abaixo seguem as três notas que publiquei na Rede Brasil Atual (RBA), que abarcam as críticas de La Rue à Folha de S. Paulo pela censura imposta ao blogue de paródia Falha de S. Paulo e sua proposta de despenalizar o crime de difamação, entre outras.

Relator da ONU defende divisão das frequências de rádio e tevê no Brasil

São Paulo – O relator especial das Nações Unidas para Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, Frank de la Rue, defendeu anteontem (13) em São Paulo, durante encontro com organizações da sociedade civil, a regulação das frequências de rádio e televisão no país como forma de garantir o pleno exercício da liberdade de expressão. “Todo Estado do mundo, inclusive o Brasil, tem a obrigação de regular o uso das frequências audiovisuais como um patrimônio público da nação”, defendeu. “Na América Latina, temos permitido erroneamente que se encare a comunicação social apenas pela ótica comercial. Mas as concessões não podem estar submetidas apenas a critérios de mercado.”

Nesse sentido, o relator da ONU elogiou a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual – conhecida como Lei de Meios – aprovada pela Argentina em 2009. “O Estado deve garantir que a liberdade de expressão seja viabilizada pela diversidade de meios de comunicação e pelo pluralismo de ideias”, defendeu. “Diversidade quer dizer existência de jornais escritos, rádios comerciais, comunitárias, públicas, canais de tevê, internet etc. E pluralismo significa que não deve existir nenhum tipo de monopólio.” Para De la Rue, a sociedade tem direito a ser adequadamente informada a partir de diferentes opiniões e visões de mundo. “É a diversidade que permite ao cidadão construir pensamento próprio sobre as coisas”, opina. “Ninguém pode se dizer proprietário da liberdade de expressão. Ela é de todos.”

Frank de la Rue alertou, porém, que, ao propor a regulação das frenquências audiovisuais, não está sugerindo que o Estado passe a controlar o conteúdo dos meios de comunicação. “Para mim, a imprensa não deve sofrer nenhum tipo de regulação: jornais escritos e páginas na internet devem sofrer apenas as limitações que estão na lei e que protegem os direitos humanos”, distinguiu, reforçando a ideia de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto. “Se um discurso atenta contra os direitos das crianças, por exemplo, não pode ser enquadrado dentro da liberdade de expressão – é, ao contrário, uma violação aos direitos humanos.”

Em contraposição ao discurso de parte da comunidade jornalística brasileira, inclusive dos sindicatos, que defendem a obrigatoriedade do diploma para o exercício regular da profissão, o relator da ONU argumentou que a atividade jornalística não deve submeter-se a nenhum tipo de regulação. “O jornalismo deve ser a carreira mais livre que existe, sem diploma obrigatório nem necessidade de registro profissional”, pontuou. “Não deve supor nenhuma condição.”

Visita

Frank de la Rue está no Brasil “extraoficialmente” a convite da Frente Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que aglutina sindicatos, entidades da sociedade civil e ONGs contrárias à concentração da mídia no país. Ainda assim, o relator da ONU foi recebido em Brasília pelos ministros das Comunicações, Paulo Bernardo, da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, e dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, além de representantes do Itamaraty, da Procuradoria Geral da República e do Congresso. “Fiquei positivamente surpreendido”, comentou, “e propus fixarmos uma data para visitar oficialmente o país, inclusive para acompanhar discussões sobre uma possível lei de regulação audiovisual.”

Na capital, De la Rue se encontrou também com diretores de entidades empresariais de rádio, televisão e jornais, como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e Associação Nacional de Jornais (ANJ). Em São Paulo, o relator recebeu informações sobre a situação da liberdade de expressão no Brasil sob a ótica dos movimentos sociais. “Para mim esse contato com a sociedade civil é o mais importante, porque nossa responsabilidade de mover os Estados no sentido da proteção e promoção dos direitos humanos se faz a partir da informação trazida por vocês”, reconheceu.

E os dados trazidos ao conhecimento de Frank de la Rue foram numerosos. Laura Tresca, representante da ONG Artigo 19, contou que o Brasil encabeça a lista mundial dos países que mais solicita remoção de conteúdo online ao Google, sobretudo no período eleitoral. O relator também ouviu que o índice de assassinato contra jornalistas tem crescido por aqui. “Seis profissionais foram mortos em 2012, dois a mais que 2011, e esse número ainda deve aumentar até a virada do ano”, contabilizou Tresca. “Mortes e ameaças ainda são um instrumento bastante eficaz para interromper o trabalho dos jornalistas.”

Relator da ONU critica jornal Folha de S. Paulo por censura a blogue

São Paulo – Em visita extraoficial ao país, o relator especial das Nações Unidas para Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, Frank de la Rue, criticou anteontem (13) o jornal Folha de S. Paulo e a Justiça brasileira pelas ações judiciais que há dois anos tiraram do ar o blogue Falha de S. Paulo. O site foi criado em 2010, durante as últimas eleições presidenciais, para criticar o que seus autores consideravam uma “partidarização excessiva” do diário mais influente do Brasil.

Ao saber da iniciativa, a direção da Folha não gostou e processou os proprietários do blogue: pediu uma multa de R$ 10 mil por dia em que a página permanecesse no ar. A Justiça assentiu com a sanção financeira, mas a reduziu para R$ 1 mil diários. E concedeu uma liminar ao jornal cassando o domínio da Falha na internet – que desde então, e menos de um mês depois de ser criada, deixou de existir.

“É interessante essa ironia que vocês fizeram com Folha e Falha”, pontuou De la Rue, “porque uma das formas de jornalismo mais combatidas hoje em dia, e que deve ser defendida, é o jornalismo irônico, burlesco.” O relator da ONU comparou as penas judiciais sofridas pelo blogue Falha de S. Paulo, no Brasil, aos ataques que o jornal dinamarquês Jyllands-Posten e seu cartunista, Kurt Westergaard, sofreram em 2006 após publicarem uma charge de Maomé. A caricatura trazia o profeta maior do Islã com uma bomba no turbante, e provocou manifestações violentas em países muçulmanos – inclusive tentativas de assassinato do desenhista.

“Achei a charge bastante ruim, no sentido mais político da palavra: não era um momento oportuno, nem a forma oportuna de provocar”, ponderou, “mas nunca irei censurar uma caricatura ou uma publicação irônica.” Frank de la Rue lembrou ainda que o jornal norte-americano The New York Times já sofreu no passado sátiras semelhantes à Falha (uma página chamada Not New York Times) e não acionou judicialmente seus críticos. “É o mais lógico”, avaliou. “A ironia é uma forma de expressão legítima. Não entendo porque a Folha de S. Paulo se incomodou com a iniciativa nem porque os juízes, pior ainda, aceitaram a ação. É terrível.”

O relator da ONU sobre liberdade de expressão esteve nesta quinta-feira em São Paulo para uma reunião com blogueiros, sindicalistas e entidades que defendem a democratização da comunicação no país. O encontro ocorreu no auditório do Sindicato dos Engenheiros, no centro da capital. De la Rue ouviu relatos sobre abusos praticados por governos, Justiça, empresas e criminosos contra a liberdade de expressão no Brasil. Foi nesse contexto que soube das sanções judiciais contra o blogue Falha de S. Paulo, após intervenção de um de seus idealizadores, o jornalista Lino Ito Bocchini, que havia sido formalmente convidado para a audiência.

De acordo com Bocchini, a Folha embasa sua ação no argumento de que o blogue estaria fazendo uso indevido da logomarca do jornal ao trocar a letra “o” pelo “a”. Na visão da empresa que publica o diário, esse jogo de palavras, inserido numa mesma identidade visual, poderia confundir o leitor. “É apenas uma desculpa”, defende Bocchini. “A batalha judicial agora está na segunda instância, e acreditamos que uma manifestação da Relatoria Especial da ONU pode ajudar os desembargadores do Tribunal de Justiça.” De la Rue prometeu que usaria de suas prerrogativas para fazer uma comunicação formal ao Estado brasileiro sobre o assunto.

“O acosso judicial é uma forma de limitar o trabalho de jornalistas, de censurá-los”, avaliou o funcionário das Nações Unidas. “Ainda que não haja condenação, mover uma ação na Justiça já é uma agressão econômica, porque implica em gastos com advogados e defesa.” O relator classificou como “grave” o fato de que no Brasil haja “dois níveis” de liberdade de expressão: a liberdade dos grandes meios de comunicação, que em geral é respeitada, e a dos meios de comunicação independentes e alternativos, que sofrem restrições maiores. “Um dos princípios que defendo é que a liberdade de expressão, como todos os direitos humanos, deve ser universal.”

Difamação deve deixar de ser crime, diz relator da ONU sobre liberdade de expressão

São Paulo – “Para mim, difamação sequer deveria ser um delito”, defendeu ontem (14) o relator especial das Nações Unidas para Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, Frank de la Rue, durante conversa com organizações da sociedade civil em São Paulo. “Deveríamos despenalizar a difamação e convertê-la apenas em ação civil. E os funcionários públicos jamais deveriam poder utilizá-la para silenciar as críticas, mesmo que sejam críticas mal intencionadas e grosseiras.”

As declarações de Frank de la Rue, guatemalteco que ocupa a Relatoria Especial da ONU desde 2008, vieram junto com críticas ao presidente do Equador, Rafael Correa, que no final de 2010 processou judicialmente, por difamação, um articulista do diário El Universo, maior jornal do país, e seus diretores. Emilio Palacio havia acusado o mandatário de crimes de lesa-humanidade ao deixar-se resgatar por tropas de elite do Exército equatoriano dentro de um hospital de Quito. Correa recebia atendimento médico após ser agredido por policiais amotinados que, armados, não estavam permitindo que o presidente deixasse o local.

“Recorrer ao processo judicial não é forma de uma figura pública responder às críticas”, continua o relator. “A resposta deve vir com argumentos, nunca com censura. A liberdade de expressão e a comunicação são as melhores alternativas, sempre.” No caso equatoriano, Rafael Correa venceu a ação. Emilio Palacio e os diretores do El Universo foram obrigados a pagar uma indenização de US$ 40 milhões – compromisso com o qual obviamente não puderam honrar. Mais tarde, o presidente perdoaria a dívida. Atualmente, o jornalista se encontra exilado nos Estados Unidos. “Os meios de comunicação podem ter posições editorais de qualquer natureza e, ainda assim, devem ser respeitados”, insistiu De la Rue.

De acordo com a legislação brasileira, a difamação é uma modalidade de crime contra a honra e, como tal, está prevista no Código Penal. Também é uma figura jurídica reconhecida pelo Código de Processo Civil. Isso significa que as denúncias de difamação podem ter curso em duas vias – criminal e civil – e redundar em dois tipos de condenação: prisão e indenizações. No país, a proposta de Frank de la Rue não impediria que jornalistas, colunistas ou quem quer que seja fosse processado por difamação. Porém, evitaria que alguém condenado como “difamador” fosse para a cadeia. As indenizações continuariam. Na impossibilidade de pagá-las, o réu perderia seus bens.

http://www.latitudesul.org/2012/12/14/liberdade-de-expressao-na-pratica/

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