Para baixar – Mil Quatrocentos e Sessenta Dias no Império do Sol, por Roberto Malvezzi (Gogó)

Roberto Malvezzi (Gogó)

Roberto Malvezzi (Gogó)*

Estou lançando em forma digital o livro “Mil Quatrocentos e Sessenta Dias no Império do Sol” (4 anos na seca e nas CEBs do sertão), que escrevi de 1980 a 1984, vivido naquela grande seca, no município de Campo Alegre de Lourdes, sertão da Bahia. É um livro de crônicas, registrando os fatos do cotidiano há 30 anos. A segunda parte é uma reflexão sobre o que vivíamos.

Era uma época fantástica na Igreja e na sociedade e nós éramos uma equipe vinda do sudeste para o sertão. Portanto, uma visão de quem chegava de fora. A grande ebulição das comunidades eclesiais de base, a Teologia da Libertação, a Igreja encarnada, o fim do regime militar, as greves do ABC, o surgimento do PT na Bahia a partir do sertão, o andamento das obras faraônicas do regime militar (Barragem de Sobradinho), as lutas sindicais, o deslocamento de 72 mil pessoas, área de segurança nacional, tudo faz parte de seu conteúdo.

Mas, principalmente, o registro da crueldade humana, da sede, da fome, das migrações, das frentes de emergência, da mortalidade infantil, da manipulação das pessoas em função do poder, enfim, da reação do povo desesperado pela falta dos elementos básico da vida: água e comida.

Esse livro teve apenas uma edição pelas Paulinas em 1985 (Paulus) e nunca foi reeditado. Entretanto, nos últimos anos, vários sites, sobretudo em inglês, colocam o livro como “Best buy” (indicação de um bom produto a ser comprado), só que o livro não existe mais. Então, graças às novas tecnologias e a boa vontade de um filho, foi digitalizado e convertido em PDF.

Para quem está vivendo a seca atual, sobretudo para os interessados na questão do semiárido, está aí o que vivemos naquela época. Dá para entender o que superamos, o que ainda estamos longe de vencer. Para ilustrar, transcrevo o registro de um saque na cidade de Campo Alegre, em Dezembro de 1984.

Agora, em formato de PDF, o livro “Mil Quatrocentos e Sessenta Dias no Império do Sol” ficará hospedado no site do Portal EcoDebate. A divulgação e o uso são livres. Para acessar e/ou fazer o download do livro, no formato PDF, com 1,45 Mb, clique aqui.

*Articulista do Portal EcoDebate, possui formação em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais. Atua na Equipe CPP/CPT do São Francisco.

Excerto do livro “Mil Quatrocentos e Sessenta Dias no Império do Sol”

O SAQUE

As atitudes do homem do sertão parecem contraditórias, mas são extremamente lógicas. Como o sertanejo é capaz de votar massivamente no governo e um mês depois invadir a cidade, prensar seus políticos em suas casas e saquear seus armazéns? Mas é uma contradição apenas aparente, já que a lógica do sertanejo não é ideológica nem política, mas a lógica da sobrevivência. Ele vive da mão para a boca, do pão de cada dia. Não acumula e nem possui futuro. Não por deliberação própria, mas por imposição de sua condição hu­mana. Ele vota em um partido para ganhar o pão daquele dia e depois saqueia seus armazéns para adquirir o pão desse novo dia. Ele vive de cada passo, pois o próximo pode ser a migração, a doença e a morte.

A fome vem se acumulando nos três últimos anos. Esta­mos no pique da seca. Não resta mais água nem mantimentos. Não chove e por isso desaparece qualquer perspectiva para o próximo ano. Mas ninguém esperava pelo saque, pelo menos, no estilo em que se deu.

Havia uma reunião marcada para o sindicato, às nove da manhã. Eu estranhara a viagem que fizera de Remanso a Campo Alegre no dia anterior. É uma distância de 114 km. Os amigos de equipe haviam ficado em Remanso. Ao entrar em Angico, primeiro povoado do município de Campo Alegre, muitas mulheres começaram a entrar no ônibus. Assim foi durante todo percurso de 36 km até a sede do município. O ônibus chegou abarrotado. Como eu conhecia muitas pes­soas, elas foram contando sua condição. Muitos familiares migrando para S. Paulo, Brasília, arretirando-se para as margens do S. Francisco. Muitas famílias estão se alimentando à base de coroatá, mucunã, calango assado, etc… Uma das mulheres disse que todas iriam para a cidade e o atendimento das autoridades sairia por bem ou por mal. Falou com firmeza, como quem não tem nada a perder. Contou ainda que os homens marchariam a pé, saindo às 8 da noite para chegar em Campo Alegre pela madrugada. Só daquele re­canto de Campo Alegre viriam mais de oitenta homens a pé.

Chegamos em Campo Alegre às 7 da noite. Não havia nada em casa. Apenas alguns trabalhadores vieram pedir pousada.

Mas, por um acaso, cruzei com o prefeito eleito do PDS na rua. Conversamos. O assunto foi o povo. Ele disse que estavam se esforçando para conseguir frente de serviço. Ouvi o que ele disse e falei o que tinha para falar. Foi uma conversa tranqüila. Fui dormir e, para o horário do sertão, levantei tarde, às 7:30h. Quando olhei, vi que não havia mais um trabalhador em casa. Saí na calçada e, para surpresa total, o saque já havia acontecido. O primeiro foi às 6h da manhã e o segundo se realizava naquele momento.

O saque foi surpreendente. Os trabalhadores se reuniram cedo, chegando das caatingas. O pessoal dos arrabaldes da cidade somou com os caatingueiros. E o saque teve uma conotação política, mas legítima. Saquearam em primeiro lugar o armazém do prefeito da cidade. Pelo sábado haviam chegado três caminhões de mantimentos e ele se recusara a entregá-los ao povo. Seu armazém foi o primeiro a ser saqueado. Com alavancas de madeira rompiam as barras de ferro das portas e atacavam feito loucos. Arroz, feijão, carne granulada, bebida, enxada, enxadão, machado, junções de bicicleta, papel higiênico, veneno, etc… O veneno caiu pelas ruas. Os bodes e vacas lamberam e ali morreram. Algumas pessoas ficaram intoxicadas e precisaram de socorros médicos. Alguns trabalhadores afirmaram que um dono de armazém espalhou veneno sobre os alimentos para que o povo comesse e morresse. Outros diziam que era apenas uma desculpa para amedrontar o povo. Mas no armazém saqueado não sobrou uma agulha. Conta-se que mulheres fracas foram vistas carregando dois sacos de açúcar nas costas. Outras com papel higiênico, caixas de óleo, carne granulada, etc…

Depois foram à casa do prefeito. Queriam saquear sua casa. Os trabalhadores disseram, posteriormente, que esse homem chorou como uma criança. Por incrível que pareça, seus eleitores é que foram saquear sua casa. Gritavam que o tinham eleito para cobrá-lo com mais autoridade. No desespero, pediu que, ao contrário de saquear sua casa, saqueassem o armazém do secretário da prefeitura. Não precisou segunda ordem. A massa humana, a essas alturas mais de 3 mil pessoas, disparou na direção do armazém. Parecia mais uma manada de animais famintos. Arrebentaram as portas e saquearam absolutamente tudo. Teve aproveitadores da cidade no meio. Alguns levaram demais, a maioria não adquiriu bem algum. Dirigiram-se a um terceiro armazém, mas estava vazio.

Então ameaçaram saquear um armazém particular. Os donos postaram-se nas portas e choravam como bebê de colo. Alguns trabalhadores tomaram a frente e pediram aos demais para respeitar o que era alheio. A consciência do sertanejo é mesmo delicada. Não saquearam. Os que tinham bens saqueados dos armazéns anteriores, partiram para suas casas. Enquanto alguns partiam pelas estradas com os sacos nas costas, outros chegavam. Os políticos e comerciantes da cidade se rebolaram e contataram com Juazeiro, Salvador, etc… Veio promessa de recursos. O povo cessou os saques.

Fizeram reunião no sindicato. A promessa era que caminhões de mantimentos chegariam pela tarde. Numa demonstração extremamente pacífica de suas ações, os trabalhadores decidiram esperar até às 4h da tarde. Nesse horário, pousou um avião de um deputado do PDS baiano, agora eleito deputado federal por essa região. Estava muito pálido. Começou sem saber o que falar.
Estava com medo. Então aconteceu uma cena extremamente trágica e emocionante. Milhares de flagelados ergueram silenciosamente os sacos vazios no ar. Eram milhares de pedintes, esmolecos governamentais. Ele começou a prometer. Mais uma vez a lógica do sertanejo se fez presente. Uma parte do povo aplaudiu freneticamente o deputado. Quando se viu apoiado, ganhou moral.

Elogiou o povo, falou de sua fidelidade ao povo, criticou os agitadores e subversivos. Nas ruas se comentava que o cabeça era o bispo, a equipe paroquial, as comunidades, o PT. Alguém se trancou em uma casa do centro da cidade, ergueu um alto-falante no volume máximo e acusava o bispo sem que ninguém pudesse identificar quem gritava. Mas o deputado continuou falando que os caminhões de alimentos viriam pela noite ou pela madrugada. Ao mesmo tempo viriam as fichações para as frentes de serviço a todos os necessitados. Mais uma vez o povo decidiu esperar.

Já era na boca da noite. Em nossa casa secaram o poço e a caixa. Não havia alimento. Todos os armazéns fechados e era impossível comprar um pão. Durante todo o dia não houve praticamente o que comer. Os comerciantes decidiram distribuir ao povo todas as rapaduras e bolachas da cidade. O povo comeu. Mas o estado era de necessidade. O povo não partiu, decidiu passar a noite pelas ruas, esperando pelos caminhões. Em nossa casa, no centro social, nos fundos, alpendres, havia pessoas esticadas no chão. Nas ruas da cidade viam-se cenas inimagináveis. As pessoas deitadas nas calçadas, umas ao lado das outras, com os pés esticados para a rua. Eram milhares de flagelados estirados nas sarjetas. Foi impossível dormir. As portas da casa do centro social ficaram abertas a noite toda. As pessoas entravam e saíam a todo momento. Às 4h da manhã os trabalhadores que dor­miram em nossa casa foram para a rua. Pela madrugada chegou um ônibus com policiais de Juazeiro. Os caminhões com alimentos chegaram tarde, às 10 h da manhã. A fichação foi prometida para ser realizada nos povoados. Mas nesse dia havia mais pessoas que no dia anterior. Cerca de 4 a 5 mil pessoas abarrotavam a pequena cidade. Chegaram dois caminhões com emblemas da empresa do deputado, o que é muito significativo. O povo fez as filas com ordem. Cada um recebia uma ração de mantimentos suficiente para uma família passar um dia ou dois. Obviamente era um álibi para dispersar os trabalhadores e evitar novos saques. Então, por horas a fio, homens e mulheres tomavam as estradas da caatinga com suas rações nas costas. Mas eles querem mesmo é a frente de serviços. Partiram nessa esperança imediatista.

Por enquanto os ânimos serenaram. Não se pode gene­ralizar, é evidente, mas ninguém pode estar seguro em rela­ção aos famintos nordestinos, nem mesmo os políticos por eles eleitos. Aquele que é tido como amigo, amanhã poderá ser considerado inimigo. Depende do momento, assim como impõe a lei da sobrevivência.

http://www.ecodebate.com.br/2012/08/31/mil-quatrocentos-e-sessenta-dias-no-imperio-do-sol-por-roberto-malvezzi-gogo/

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