Cynara Menezes, Carta Capital
Os índios do Parque Nacional do Xingu descobriram o facebook. Procure lá por Ikpeng, Juruna, Yawalapiti, Kuikuro, Mehinaku, Kalapalo, Kamaiurá… Quase todos os índios jovens da reserva de 27 mil quilômetros quadrados, a maior do mundo, possuem um perfil na rede social, embora vivam praticamente igual ao que era 51 anos atrás, quando o parque foi criado: em ocas comunitárias e alimentando-se basicamente de peixe assado e beiju de tapioca.
À primeira vista, parece que o tempo não passou por ali. O chão de terra batida, crianças correndo peladinhas, mulheres agachadas preparando o beiju. Aí você repara melhor e vê algumas antenas parabólicas, placas de energia solar, volta e meia uma motocicleta circulando. O contraste entre o ancestral e o moderno faz pensar que o Xingu encarna literalmente a “aldeia global” que previu Marshall McLuhan nos anos 1960, justo quando a reserva estava sendo criada.
Estamos na aldeia Yawalapiti, uma das 16 etnias que habitam o parque, onde aconteceu no último fim-de-semana o kuarup (cerimônia fúnebre) em homenagem ao antropólogo, escritor e político Darcy Ribeiro, que completaria 90 anos em 2012. Nas ocas, tem energia elétrica e televisão, mas não tem telefone nem pega celular. Com 300 habitantes, a aldeia é abastecida por geradores elétricos, mas um sistema de captação de energia solar está sendo implantado com a ajuda da Fundação Darcy Ribeiro. As primeiras placas estão em fase de teste e moradores são treinados para fazer a manutenção do equipamento. Se der certo, a ideia será replicada em outras aldeias do Xingu.
Embora as crianças da aldeia estejam desnudas como sempre, durante a festa alguns dos homens adultos preferem usar cueca por baixo da (pouca) roupa. As índias jovens já não têm tantos filhos quanto suas mães, com oito, nove rebentos. Muitas meninas são mães em tenra idade, mas têm apenas uma criança. Contam usar pílula anticoncepcional. Em vez de andarem despidas, preferem usar vestido de elastex tomara-que-caia. Todas usam o mesmo modelo de vestido, prático na hora de amamentar os filhos.
No ponto de cultura Yawalapiti, onde é possível conectar-se à internet, é que os índios conversam no facebook com gente de todo o País. Como em qualquer parte, há entre os jovens um certo fetiche pelos gadgets eletrônicos. Mesmo sem sinal para fazer ligações, os celulares são utilizados para fazer fotos. No Kuarup, Munuri, vestido a caráter para a festa, não larga de seu tablet. “Sempre gostei de aparelhos, mas de qualidade boa. Não gosto de coisa ruim. Fotografo, filmo, escrevo textos. Faço tudo aqui no meu tablet”, diz Munuri, que transmite o que aprendeu às crianças da aldeia.
Pela primeira vez um kuarup foi inteiramente documentado pelo Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico Nacional), desde o começo da preparação, dez meses atrás. Dos pequis sendo colhidos para a bebida fermentada que é distribuída na cerimônia, até as centenas de quilos de polvilho que são acumulados durante o ano para o beiju que será consumido no kuarup, tudo foi filmado por uma equipe com o apoio do índio cinegrafista Collor –isso mesmo, ele ganhou o nome em homenagem ao ex-presidente. Nasceu há 22 anos, quando o futuro “impichado” por corrupção acabara de tomar posse.
Além de filmar, Collor também dança e luta huka-huka, a batalha que na manhã do domingo 19 levará cerca de mil guerreiros de várias tribos do Xingu ao centro da aldeia. Ele se diz autodidata: aprendeu a filmar observando. A câmera, ganhou de “um francês”. Grava todas as festas mais importantes entre os Yawalapiti e guarda tudo em seu notebook. Pergunto onde gostaria de trabalhar. “Eu queria ficar aqui, registrando nossa cultura. Nunca pensei em sair”, diz Collor. A mesma frase é repetida por outros jovens índios. Querem sair só para estudar e voltar à aldeia.
Na tarde do sábado, Collor está sentado detrás do local onde foram colocados os três troncos representando as almas dos homenageados do kuarup – além de Darcy, duas índias. “Até na morte Darcy está rodeado de mulheres”, alguém brinca. Todos receberam adornos e são pintados com tintura de jenipapo e urucum para a festa. Os guerreiros que vão lutar o huka-huka fazem a sangria: têm os braços raspados por um instrumento rudimentar, a arranhadeira, feito com dentes de peixe-cachorra, para ganhar coragem.
As mulheres são mais tímidas e não falam bem o português, mas uma mistura de dialetos, como a maioria dos índios do Xingu. Entre os Yawalapiti apenas 12 pessoas falam a língua original da etnia. Existe um projeto para reviver a língua ao qual a ministra da Cultura, presente ao Kuarup, promete empenho. Ana de Hollanda, porém, causa constrangimento geral ao se recusar a receber o documento preparado pelos índios em protesto a usina de Belo Monte e à portaria 303 da AGU (Advocacia Geral da União) sobre o uso de terras indígenas. O cacique Aritana, chefe dos Yawalapiti e considerado a maior liderança do Xingu, protestou na hora, mas, pacificador, preferiu não criticar a ministra publicamente.
Enquanto cânticos eram entoados, familiares dos mortos choravam em volta dos troncos enfeitados, durante toda a noite. A família de Darcy Ribeiro, que não teve filhos, compareceu em peso: 46 pessoas, entre sobrinhos e sobrinhos-netos do antropólogo, vindas em sua maioria da terra natal do antropólogo, Montes Claros (MG), se revezavam a cada 40 minutos ao redor de sua “alma”. Sobrinho de Darcy, Paulo Ribeiro lembrava que, ao lado dos irmãos Villas-Boas, ele foi um dos idealizadores do parque. “Darcy e o antropólogo Eduardo Galvão fizeram todo o levantamento da área”, explicou Paulo.
Observando a cerimônia sob o inacreditável manto de estrelas, o índio Kamalurré Mehinaku assombrava os brancos com lendas sobre o Kuarup. “Esses troncos são perigosos. Não pode olhar muito. Se olhar e ver gente nele, passando três dias, morre. O pai de Aritana viu e morreu. Teve outro que ouviu o tronco respirar, chorou aos pés dele, mas não adiantou. Dois dias depois morreu. É por isso que o pajé sopra fumaça do cigarro no tronco, para acalmar o espírito.”
No final da tarde de domingo, os troncos-almas são levados para o rio Xingu. É a última parte do Kuarup. Significa que o luto acabou e daqui para a frente todos podem sorrir novamente. As fotos já estão no facebook.