Por Raul Telles do Valle, do ISA
Na última quinta-feira (23/08) o Ministro Carlos Ayres Britto recebeu em seu gabinete a Reclamação no 14404, apresentada pela Advocacia Geral da União (AGU). Essa ação tenta derrubar a decisão da 5a Turma do TRF da 1ª Região que mandou paralisar as obras da UHE Belo Monte, no Rio Xingu, por considerar ilegal o decreto legislativo emitido pelo Congresso Nacional que autorizou, em 2005, a implantação do empreendimento.
Não será a primeira vez que o STF analisará alguma questão relacionada a Belo Monte. Em 2005 ele teve a oportunidade de se pronunciar na ADI 3573, que questionava justamente a constitucionalidade do Decreto Legislativo 788, por haver sido aprovado sem ouvir qualquer das comunidades indígenas impactadas pela obra, o que afronta o §3o do art.231 da Constituição Federal, que exige consulta prévia aos povos afetados quando do aproveitamento de recursos hídricos em Terras Indígenas.
Na ocasião, apesar da riqueza de provas e da contundência dos argumentos que demonstravam o desrespeito à regra constitucional, extinguiu a ação sem entrar no mérito, por entender que a via eleita pela Procuradoria da República para questionar o decreto – uma ação de inconstitucionalidade – não era a processualmente correta.
Não avaliou, portanto, se é possível, ou não, o Congresso Nacional autorizar uma hidrelétrica em terra indígena sem antes ouvir aqueles que serão diretamente afetados. Com base nessa decisão, o Ministério Público ingressou, já em 2006, com uma Ação Civil Pública na seção judiciária de Altamira, com os mesmos argumentos e pedido. Queria que a autorização fosse declarada nula e os parlamentares fossem obrigados a cumprir com seu dever constitucional de ouvir os índios e entender dos impactos da obra antes de emitir uma nova decisão. À época não havia obra, nem empresa concessionária, nem licença ambiental, nada.
Era possível garantir que o caso, um dos mais emblemáticos de todos os tempos, seguisse os ritos exigidos pela legislação nacional e fosse o exemplo de uma nova forma de explorar os recursos naturais da Amazônia, garantindo os direitos fundamentais das populações locais e levando em consideração suas necessidades na hora de tomar decisões.
O fato é que, após uma muito bem embasada decisão liminar do juiz de Altamira mandando paralisar o processo de licenciamento ambiental até que o Congresso Nacional tomasse uma nova – e fundamentada – decisão, uma mudança de cadeiras na seção judiciária colocou um novo magistrado no caso, que revogou a decisão anterior por entender ser a obra “um verdadeiro ato de superação econômica e social”.
Assim, sem entrar no mérito da necessidade ou não da consulta às comunidades afetadas, baseado unicamente na suposição de que sem essa obra a economia brasileira se paralisaria, decretou que o Congresso Nacional estava certo em tomar uma decisão a toque de caixa, já que a consulta seria, em sua visão, uma mera e irrelevante formalidade. Algo menor diante do imperativo de “desenvolvimento” do país.
No começo de 2007, ainda antes de haver qualquer obra, o TRF da 1a Região reverteu essa decisão. Alegou que “antes de autorizar a UHE Belo Monte o Congresso necessita de dados essenciais para saber a extensão dos danos ambientais e sociais que ocorrerão e as soluções para poder atenuar os problemas que uma hidrelétrica no meio de um grande rio trará”, e que as demandas e angústias daqueles que ficarão na ponta dos impactos – enquanto a imensa maioria dos brasileiros acredita estar na ponta dos beneficiários – são parte desse conjunto de elementos que os parlamentares deveriam levar em consideração para tomar sua decisão.
Pouco tempo depois o caso foi parar novamente no STF, nas mãos da então presidente, Ellen Gracie, por via de uma suspensão de liminar (SL 125) da AGU que buscava invalidar a decisão do TRF. A alegação, como em qualquer medida desse gênero, era a ameaça à economia nacional que qualquer interferência no cronograma de implantação da obra – ainda não licenciada, à época – poderia causar.
A então presidente do Supremo decidiu suspender a liminar que havia sido outorgada, com a justificativa de que, independentemente da questão acerca da necessidade de consulta previamente à autorização legislativa, não se poderia paralisar o processo de avaliação de impacto ambiental levado à cabo pelo Ibama, justamente porque isso atrasaria o cronograma da obra e poderia trazer informações que auxiliassem o juízo sobre a viabilidade do empreendimento.
O pressuposto era que, como o próprio decreto determina, tais informações voltassem ao Congresso Nacional para que uma decisão definitiva quanto à instalação ou não do empreendimento fosse tomada. Algo que não ocorreu até hoje.
Importante notar que a ministra Ellen Gracie assevera em sua decisão que “os relevantes argumentos deduzidos na ação civil pública, no sentido da ofensa ao devido processo legislativo e da ausência de lei complementar prevista no art. 231, § 6º, da CF, porque dizem respeito especificamente ao mérito da referida ação, não podem ser aqui sopesados, tendo em vista o contido no art.4o da Lei 8437/92, mas serão a tempo e modo apreciados”.
Traduzindo: ela deliberadamente não entrou no mérito da ação, ficando apenas nos argumentos de ordem econômica e política, algo inacreditavelmente permitido pela suspensão de segurança.
Portanto, nas duas vezes que o STF teve oportunidade de se manifestar sobre a questão, não entrou no mérito. Ou seja, nunca respondeu se devem ou não os parlamentares ouvirem as comunidades indígenas afetadas antes de tomar qualquer decisão. E agora vem a AGU com uma nova medida judicial alegando que a decisão do TRF “desrespeita” o posicionamento do STF, que já teria dito estar o decreto de acordo com a Constituição.
Para qualquer advogado ou pessoa que entenda minimamente de processo civil a alegação da AGU soa absurda, por induzir a um raciocínio paradoxal. Por duas vezes o STF analisou o caso sem entrar no mérito jurídico, alegando que isso seria feito posteriormente. Quando finalmente uma ação válida questionando a legalidade do decreto chega a seu conhecimento, a AGU quer que ele diga que já se manifestou sobre o assunto e, com isso, suspenda a decisão do TRF.
Mas para quem acompanha o caso a tese ora sustentada pelos advogados públicos não é, infelizmente, a mais desarrazoada por eles já defendida. A campeã é a de que a UHE Belo Monte não irá afetar os povos indígenas da região e, portanto, nenhuma consulta seria necessária. O fato de que vai desviar 80% das águas do rio Xingu no trecho que ele abastece duas terras indígenas (Arara da Volta Grande e Paquiçamba), e que dele dependem para praticamente todas suas atividades econômicas e de sobrevivência, é quase um detalhe para a AGU.
Se essa tese vingar – e a Norte Energia a vem espalhando em diversos materiais publicitários, de pontos de ônibus a terminais audiovisuais em aeroportos de todo o país – um grave precedente será aberto, já que são muitas as hidrelétricas que se pretende construir na Amazônia e boa parte delas não alagará terras indígenas, mas as impactará de forma direta e intensa, assim como a outras áreas protegidas.
O Ministro Ayres Britto, portanto, tem em suas mãos uma oportunidade de ouro. Pode, finalmente, analisar a questão jurídica incidente ao caso, sem ter que julgar se o cumprimento da lei pode atrasar o início de funcionamento da hidrelétrica e, com isso, supostamente atrasar o desenvolvimento econômico do país. Atraso esse, não custa lembrar, que decorreria da renitente recusa do Governo Federal e do Congresso Nacional em decidir à revelia dos que mais serão impactados.
Qualquer que seja a decisão, será histórica, pois influenciará o deslinde não só desse caso, mas de muitos outros que advirão, como é o caso das hidrelétricas do Tapajós. Se, apesar das chantagens travestidas de argumentos econômicos, mantiver a paralisação da obra até que o Congresso Nacional cumpra com seu dever constitucional de ouvir os índios, estará reforçando o Estado de Direito. Se, em mão inversa, ceder à tese do fato consumado, mesmo em um caso tão público, o STF estará cristalizando a ideia de que, no Brasil, só deve cumprir a lei quem não for amigo do Rei. Como em qualquer país desenvolvido, não?
http://www.socioambiental.org/nsa/direto/direto_html?codigo=2012-08-27-155654