Uma dívida secular

Marisa Duarte e Samira Zaidan

A aprovação pelo Senado, no início deste mês, da obrigatoriedade de reserva de 50% das vagas existentes em instituições federais de ensino superior para alunos que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas reacende o debate sobre as cotas. Marisa Duarte e Samira Zaidan, professora e diretora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), respectivamente fazem uma análise da questão. Elas consideram as cotas um avanço, mas afirmam que a correção das injustiças no acesso ao ensino superior federal passa por medidas de muito maior profundidade e que, não necessariamente, estão na área de educação.

Diante das enormes desigualdades socioeconômicas de nosso país, uma sociedade que se mobiliza para ampliar direitos coloca em discussão um conjunto de iniciativas e, dentre elas, estão as decisões adotadas nos últimos dois anos para o sistema federal de educação superior que têm por lógica o desenvolvimento de ações e medidas que contribuam para o reconhecimento de injustiças e sua redução. Dentre essas estão as cotas, bônus, enfim, medidas que distinguem segmentos da sociedade e promovem seu ingresso na educação superior. Ao estabelecer um tratamento diferenciado, essas ações reconhecem um problema que tem sua raiz na organização da nossa sociedade e procuram enfrentá-lo. Os dados do Censo 2010 indicam a relevância do projeto de lei aprovado neste mês pelo Senado que estabelece a reserva de 50% das vagas nas instituições federais de ensino superior para alunos que tenham cursado todo o ensino médio em escola pública.

Nos últimos dois anos, ocorreram mudanças importantes no sistema federal de educação superior no Brasil. Para as relembrarmos. Em 2010, a Conferência Nacional de Educação (Conae), organizada pelo Ministério da Educação, promoveu debates em inúmeras cidades brasileiras em torno do Plano Nacional de Educação. Seu documento final indicava a urgência de criar mecanismos que garantissem o acesso e a permanência de populações de diferentes origens étnicas em todas as áreas e cursos da educação superior. Especialmente nessa conferência, a representação de grupos e movimentos sociais organizados reivindicou e reivindica a voz ativa no trato das questões relativas aos sistemas de educação básica e superior.

Ainda em 2010, o Ministério da Educação instituiu o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) para seleção de candidatos a vagas em cursos de graduação nas instituições públicas. Atualmente, estão no Sisu 42 universidades federais, 13 instituições estaduais e 39 institutos federais de educação profissional, que ofertam mais de 100 mil vagas públicas e gratuitas neste processo seletivo unificado. Em 2011, foi lançado o programa Ciências sem Fronteira, dirigido aos alunos de graduação de melhor desempenho acadêmico e que prevê a utilização de até 101 mil bolsas em quatro anos para promover intercâmbio de jovens cursando a educação superior no exterior. O programa propõe observar critérios de excelência para selecionar os alunos, como a nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a premiação em programas de iniciação científica e tecnológica, olimpíadas e concursos temáticos, bem como a excelência de sua universidade de origem.

Em maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) rechaçou, em ação direta de inconstitucionalidade, as alegações de afronta aos princípios da igualdade, da isonomia, da não discriminação ao argumento de que vagas no ensino superior fossem reservadas com base na condição socioeconômica do aluno ou em critério racial ou de suas condições especiais. E agora, em agosto, o Senado aprovou projeto de lei que determina às universidades e escolas técnicas federais a reserva de 50% das vagas para quem tenha feito o ensino médio integralmente em escola pública. Além disso, haverá a distribuição de bolsas de estudos entre negros, pardos e indígenas em número proporcional à composição da população em cada estado. Essa política de cotas tem validade de 10  anos, a contar de sua sanção pela presidente da República e publicação no diário oficial.

Que relações essas mudanças estabelecem entre o sistema de educação superior e a sociedade brasileira? A resposta nos remete às coletividades múltiplas existentes no país que se diferenciam por especificidades socioculturais refletidas na língua, nas crenças e modos de agir e, especialmente, nas injustas desigualdades socioeconômicas. As políticas de educação superior são produzidas desde os fóruns de consulta, passando pelas decisões das autoridades públicas e pelo complexo jogo de negociações e constrangimentos dos atores locais. A interação desses diversificados polos de influência pressupõe que, de modo consciente ou não, esses atores compartilhem algumas escolhas conduzidas por valores ou normas. E, por essa razão, procuramos os valores que atribuem sentido a essas medidas.

O Censo demográfico de 2010 reiterou um fenômeno conhecido de todos nós, apontando que a pobreza no Brasil tem cor, ou seja, a renda média da população que se declara branca é quase o dobro da renda média da população que afirma ser parda. A pesquisa repete também que a população que se declara preta, parda ou indígena concentra rendimentos médios mais baixos (R$ 510) e que o maior número de pessoas sem rendimento ou aferindo os mais reduzidos encontra-se entre a população que se reconhece como parda. As características completas da população brasileira quanto à educação em 2010 não estão ainda disponíveis, mas dados iniciais, quando analisados com cautela, são um dos indicadores do que ainda temos a fazer a este respeito. Em 2010, 2,8 %, ou seja, quase 480 mil jovens brasileiros entre 20 e 24 anos – idade em que deveriam estar frequentando a educação superior – não eram alfabetizados. Entretanto, dentre esses, o maior número era entre jovens que declaravam como parda a cor da pele.

Se o maior número de jovens não alfabetizados declaram-se como pardos, o percentual da população de jovens indígenas brasileiros nessa condição é mais elevado. Esses números adquirem significado importante quando analisamos medidas governamentais que buscam atingir de modo diferenciado parcelas importantes da população brasileira.

Por outro lado, medidas como a implementação do Sisu promovem um tratamento mais homogêneo para o ingresso na educação superior pública. Jovens, em diferentes situações, enfrentam exames equivalentes e, especialmente, todos os inscritos passam igualmente a disputar uma entre as mais de cem mil vagas ofertadas pelas instituições federais de educação superior. Aqui temos subjacente a ideia de equidade vinculada ao acesso a posições e/ou cargos abertos a todos em condições de igualdade de oportunidade e para o máximo benefício possível dos membros da sociedade que se encontrarem na posição mais desfavorável. Não se trata somente de uma igualdade legal de oportunidades, e sim de assegurar um ponto de partida igual para aqueles que têm talentos e capacidades semelhantes e estão similarmente motivados a empregá-los.

Tem estado ausente, e agora se ressalta a urgência dessa iniciativa, uma política para o ensino médio de incentivo à melhoria das condições de trabalho dos docentes, de diversificação dos projetos pedagógicos para atender às diversidades requeridas pela juventude e que tenha estrutura e tecnologia para incluir a todos. Esta sim poderá fazer a diferença na formação do jovem para a vida universitária e para a formação geral.
Diante de tudo isso, para que se possa assegurar um ponto de partida mais homogêneo são necessárias instituições e políticas capazes de neutralizar, tanto quanto possível, as contingências sociais e culturais. Isso implica reduzir as vantagens herdadas, tanto de riqueza quanto de meios para a obtenção das qualificações mais valorizadas, e combater os efeitos da discriminação étnica e de gênero praticada de forma sistemática. O acesso ao ensino superior pode ser um fator social decisivo para confrontar a injustiça social e econômica. Portanto, há que se instituir um sistema de educação superior pública acessível a todos que o desejarem e com recursos suficientes para contrabalançar desvantagens socialmente herdadas.

Mas não estão sendo abandonadas as medidas que levam em conta o mérito individual, como as bolsas de estudo para intercâmbio. Essas requerem que uma equidade de oportunidades tenha sido atingida, pois não há mérito individual se não forem levadas em conta as contingências sociais. A injustiça é reposta quando as regras decisórias funcionam de modo a negar a algumas pessoas, erroneamente, a possibilidade de participar como um par, com os demais, na seleção a ser estabelecida. O que obriga a seleção neste caso é a insuficiência de recursos e o critério de mérito que orienta a escolha deve ser compartilhado e publicizado.  Neste caso, a igualdade de oportunidades deve estar disponível aos quase um milhão e 500 mil jovens matriculados nas instituições públicas de educação superior.

O número de instituições federais de educação superior cresceu nos últimos 10 anos e passaram de 67 em 2001 para 99 em 2010. Ou seja, foram criadas 32 instituições nesse período e, destas, 19 universidades federais e 20 institutos ou centros federais de educação tecnológica. Essa expansão possibilitou o ingresso de mais 130 mil jovens nas instituições públicas federais de educação superior nesse período.  No entanto, todo esse crescimento e as medidas de discriminação positiva, como os sistemas de cotas, são insuficientes se não forem acompanhados do fortalecimento das instituições que recebem sujeitos em situação de desvantagem social e que sejam capazes de contrabalançar injustiças socioeconômicas.

* Marisa Duarte é socióloga, doutora em Educação, autora do  livro Recursos públicos para escolas públicas e professora da Faculdade de Educação da UFMG

* Samira Zaidan é graduada em matemática, doutora em educação e diretora da Faculdade de Educação da UFMG.

http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar-e-agir/2012/08/25/interna_pensar_e_agir,47903/uma-divida-secular.shtml. Enviada por José Carlos.

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