Espécies de menor valor comercial, porém fundamentais para a cadeia alimentar marinha, como as sardinhas, por exemplo, são as que mais sofrem com a sobrepesca e a piscicultura, porque são “intensamente capturadas para produção de rações”. Cortez esclarece que “um terço da captura mundial de peixe é desperdiçado na produção de ração animal, sendo que as rações preparadas a partir de peixes representam 37% (31,5 milhões de toneladas) do total de peixes retirados dos oceanos a cada ano, e 90% das capturas transformam-se em farinha e óleo de peixe. Em 2002, uma parcela equivalente a 46% de farinha de peixe e óleo de peixe foi utilizada como alimento para a aquicultura (piscicultura), 24% para alimentar porcos, e 22% para a alimentação de aves”.
Segundo Cortez, a sobrepesca é resultado da captura insustentável e, além de pôr em risco uma série de espécies pesqueiras, aumenta o desperdício de alimentos. “Três em cada dez peixes são mortos pela captura por ‘engano’ e são jogados de volta à água. Todos os anos, 250 mil tartarugas são mortas pelos ganchos destinados aos peixes-espada. Mais de 70% dos estoques populacionais de peixes da Europa progressivamente são empobrecidos pelo uso excessivo das redes”, aponta. A pesca inadequada também gera problemas sociais, como o agravamento da crise alimentar, já que “cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos se perdem ou são desperdiçados a cada ano, o que corresponde a um bilhão de dólares. Um terço dos alimentos produzidos no mundo para o consumo humano é desperdiçado ou perdido, assim como os recursos naturais utilizados para sua produção”, informa na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Henrique Cortez é jornalista, ambientalista, cientista social formado pela USP, com especialização em gerenciamento de riscos ambientais pela Northwest University, EUA, além de consultor e coordenador do Portal EcoDebate. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Você afirma que o relatório da FAO “The State of World Fisheries and Aquaculture 2012” foi bastante noticiado mundialmente, mas no Brasil a reação foi mínima. O que afirma esse relatório e por que ele é impactante?
Henrique Cortez – Esta nova edição do relatório é surpreendentemente completa, precisa e bem fundamentada. É um preocupante diagnóstico da situação da pesca no planeta. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação – FAO, o mundo consumiu cerca de 128 milhões de toneladas de peixes em 2010. O dado é considerado um recorde para a FAO, que estima que, em 2011, o consumo tenha ultrapassado 130 milhões de toneladas. Isso equivale a 19 quilos de peixes por pessoa/ano.
A China tem sido responsável pela maior parte do aumento no consumo mundial de peixe per capita, devido ao aumento considerável em sua produção de peixes, incluindo a aquicultura, sendo que a participação da China na produção mundial de pescado aumentou de 7% em 1961 para 35% em 2010. Isso é até natural, considerando o imperativo de garantir a segurança alimentar de sua grande população.
Captura irresponsável
O problema é que os estoques pesqueiros estão à beira do colapso. Ainda de acordo com o relatório, 30% dos peixes do mundo são superexplorados e podem desaparecer, e outros 57% estão próximos do limite da pesca sustentável. O relatório da FAOreafirma que a pesca comercial em grande escala já captura 80% de todas as espécies oceânicas, além de sua capacidade máxima de reposição e que a sobrepesca continua a crescer.
Basicamente, a sobrepesca é um resultado da captura insustentável, da ineficiência do processo de produção e do desperdício de alimentos. Três em cada dez peixes são mortos pela captura por ‘engano’ e são jogados de volta à água. Todos os anos, 250 mil tartarugas são mortas pelos ganchos destinados aos peixes-espada. Mais de 70% dos estoques populacionais de peixes da Europa progressivamente são empobrecidos pelo uso excessivo das redes.
IHU On-Line – A crise ecológica impacta também a situação dos mares? É possível também conexões entre a crise energética e a pressão sobre os estoques pesqueiros?
Henrique Cortez – A crescente produção de combustíveis fósseis (petróleo e gás) em plataformas off-shoretambém contribui para ampliar o problema. Não apenas pelos vazamentos e derrames acidentais como também pela própria presença física das plataformas em ecossistemas marinhos sensíveis.
Se considerarmos a expansão deste tipo de exploração de hidrocarbonetos e somarmos à exploração do pré-sal e do Ártico, num futuro próximo estaremos potencializando o que já é um grave risco à biodiversidade marinha.
IHU On-Line – A ONU possui um ‘Código de Conduta para a Pesca Responsável’, porém esse código é violado. Quais são os principais abusos cometidos?
Henrique Cortez – Isso foi demonstrado no estudo “Not honouring the code” [Nature 457, 658-659 doi: 10.1038/457658a] e aqui cabe uma severa crítica à negligência da ONU e dos mais diversos países em relação à regulação e fiscalização da indústria pesqueira. O código de conduta da ONU, por exemplo, que hoje é de adesão voluntária, deveria ser obrigatório e, evidentemente, severamente fiscalizado.
Hoje, a maioria dos países já aderiu ao código de conduta, mas pouco fazem além disso. Daí até a atividade insustentável e irresponsável da indústria pesqueira em relação à forma e intensidade da captura é um passo. É o que acontece. O código é um consenso oco e nada mais do que isso.
IHU On-Line – Paralelamente ao esgotamento dos estoques pesqueiros cresce a piscicultura comercial. Essa alternativa apresenta riscos ou pode ser uma saída para o consumo?
Henrique Cortez – A piscicultura precisa alimentar os peixes ao máximo, no menor tempo possível, para que atinjam tamanho e peso com valor comercial. Para isso ela usa rações e óleos produzidos a partir de pequenas espécies como sardinha. Essas pequenas espécies, que são de fundamental importância na cadeia alimentar marinha, também estão sob imensa pressão de sobrepesca e a piscicultura é uma das razões.
As pequenas espécies, que, aparentemente, têm pequeno valor comercial, são intensamente capturadas para produção de rações. Um terço da captura mundial de peixe é desperdiçado na produção de ração animal, sendo que as rações preparadas a partir de peixes representam 37% (31,5 milhões de toneladas) do total de peixes retirados dos oceanos a cada ano, e 90% das capturas transformam-se em farinha e óleo de peixe. Em 2002, uma parcela equivalente a 46% de farinha de peixe e óleo de peixe foi utilizada como alimento para a aquicultura (piscicultura), 24% para alimentar porcos, e 22% para a alimentação de aves.
Além disso, existe o problema da piscicultura de espécies exóticas potencialmente invasoras e os danos aos ecossistemas, como ocorre frequentemente com a criação de camarões e com os danos aos mangues. No Brasil já são incontáveis os casos relatados.
IHU On-Line – Afirma-se que um novo componente de ameaça aos ecossistemas marinhos vem do crescimento de consumo dos suplementos alimentares à base de ômega 3, um tipo específico de gordura encontrada mais frequentemente em peixes. O que isso significa?
Henrique Cortez – A cada dia lemos mais artigos, reportagens e documentos de recomendam o aumento do consumo diário de peixes, tendo em vista os seus benefícios para a saúde. Todavia, isso pode ser insustentável diante da crescente sobrepesca. É o que afirmam dois estudos: o “Are dietary recommendations for the use of fish oils sustainable?”, publicado no Canadian Medical Association Journal e “Fish, human health and marine ecosystem health: policies in collision”, publicado no International Journal of Epidemiology.
A comunidade médica insistentemente recomenda o consumo de peixes, reconhecidamente mais saudável do que o consumo de carne vermelha. Diversas pesquisas comprovam os benefícios do consumo de peixes, principalmente em razão dos ácidos graxos ômega 3. No entanto, os autores dos estudos destacam que os estoques marinhos estão decaindo rapidamente, com potenciais riscos à segurança alimentar das comunidades costeiras dos países mais pobres.
Por exemplo, a sardinha é considerada uma excelente fonte dos ácidos graxos ômega 3, o que aumentou a sua demanda. Mas a sardinha a também é utilizada como insumo em outra pescaria, como, por exemplo, pela frota industrial atuneira de vara ou como isca-viva para captura de outras espécies.
Krill: a nova busca da indústria pesqueira
Diante da redução dos estoques pesqueiros, a indústria agora busca o krill [1] como fonte do ômega 3, o que pode complicar ainda mais a situação. O krill está na base da cadeia alimentar oceânica e, de acordo alguns autores, a sua biomassa sofreu uma redução de 80% nas últimas décadas. Ou seja, a indústria de óleos ômega 3 encontrou uma “solução” para a redução dos estoques pesqueiros que, ao longo do tempo, irá reduzir ainda mais estes estoques.
A captura do krill é de tal forma uma ameaça à cadeia alimentar nos oceanos que os EUA, desde 12-08-2009, impuseram uma norma proibindo a pesca comercial do krill na zona econômica exclusiva das costas dos estados da Califórnia, Oregon e Washington. A norma definiu que 12 espécies de krill foram incluídas na lista das espécies de captura proibida em toda a zona econômica exclusiva. Um dos argumentos está no fato de que ele é a base da cadeira alimentar de várias espécies de peixes, aves e mamíferos marinhos listados como espécies ameaçadas de extinção, protegidas nos EUA pelo Endangered Species Act.
O pior de tudo, porém, é que esta sobrepesca não ocorre pelos peixes como alimento ou como fonte de proteína, mas essencialmente para a produção do ômega 3 como suplemento alimentar.
IHU On-Line – No caso brasileiro, quais são os principais fatores que pressionam os estoques pesqueiros?
Henrique Cortez – No Brasil, os problemas são essencialmente os mesmos, mas com o agravamento pela trazido pela nossa tradição nacional pela ineficiência e desorganização. Se não fosse o suficiente, ainda há a pesca intensiva realizada pelas frotas pesqueiras internacionais, com destaque para os navios de pesca do Japão.
IHU On-Line – A pesca artesanal pode ser uma alternativa para o setor?
Henrique Cortez – A pequena pesca pode produzir o máximo anual de capturas necessárias para o consumo humano, consumindo 1/8 do combustível utilizado na pesca industrial. É o que afirma um estudo da University of British Columbia – UBC. No estudo da UBC, a pequena pesca se caracteriza pela produção através de pescadores que operam em barcos de 15 metros ou menos.
O estudo demonstra o montante dos subsídios que a pesca em grande escala, a pesca industrial, recebe em relação à pesca em pequena escala, principalmente a pesca costeira. Por exemplo, em média global a pesca industrial recebe subsídios de combustível equivalentes a 200 vezes do que recebe o pescador de pequena escala. No entanto, a pesca em pequena escala é maior em termos de geração de emprego e renda, utiliza menos combustíveis e a captura é mais seletiva, o que reduz a sobrepesca e o desperdício. A pequena pesca utiliza técnicas mais seletivas e muito menos destrutivas. Como resultado de pesca indesejada, ela descarta pouco peixe e quase a totalidade das suas capturas são utilizadas para o consumo humano.
Tipicamente, a pesca em larga escala, por outro lado, captura várias espécies sem valor comercial, não selecionadas para consumo humano e descartam uma estimativa de 8 a 20 milhões de toneladas de peixes, o que reduz, a cada ano, mais de 35 milhões de toneladas de peixe para a sua captura anual.
IHU On-Line – Quais são as principais iniciativas que precisam ser tomadas desde agora para que as gerações futuras também tenham acesso à alimentação de peixes?
Henrique Cortez – A regra é a mesma, para tudo que se relaciona às gerações futuras: sustentabilidade. Em primeiro lugar, precisamos urgentemente compreender que nosso “planetinha” é limitado e, portanto, nosso consumo precisa de limites. Se o atual padrão de consumo persistir, o mundo terá de elevar sua produção de alimentos em 60% até 2050 em relação aos níveis de 2005-2007, a fim de alimentar uma população que deve saltar dos atuais sete bilhões para nove bilhões, segundo a FAO.
Em segundo lugar, é imperativo eliminar o atual desperdício de alimentos, peixes incluídos. Cálculos do movimento Save Food, apoiado pela FAO, informam que cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos se perdem ou são desperdiçados a cada ano, o que corresponde a um bilhão de dólares. Um terço dos alimentos produzidos no mundo para o consumo humano é desperdiçado ou perdido, assim como os recursos naturais utilizados para sua produção.
“Se apenas um quarto dos alimentos que atualmente são perdidos ou desperdiçados em todo o mundo for recuperado, seria suficiente para alimentar as 900 milhões de pessoas que têm fome no mundo”, diz Robert van Otterdijk, chefe da Equipe da Save Food. No entanto, eles seguem um padrão diferente de desperdício. Nos países mais pobres ou em desenvolvimento, a maior parte dos alimentos é perdida durante o processo de produção e transporte. Já nas nações mais ricas, a maior parte do desperdício acontece quando os alimentos já foram comprados pelos consumidores. Ainda segundo a FAO, nos países ricos muitos alimentos vão para o lixo antes mesmo de expirar a data de validade.
As médias de desperdício per capita também são muito maiores em países industrializados. Na Europa e América do Norte, cada pessoa desperdiça entre 95 a 115 quilos de alimentos por ano. Na África Subsaariana, a média per capita é de seis a 11 quilos. O risco à segurança alimentar no futuro está diretamente ligado ao inacreditável desperdício do presente. As próximas gerações terão o futuro que fizermos por merecer hoje.
NOTA
[1] Krill: nome dado a um conjunto de espécies de animais invertebrados semelhantes ao camarão. Estes crustáceos são importantes organismos do zooplâncton, porque servem de alimento a baleias, jamantas, tubarões-baleia, entre outros. O termo krill é de origem norueguesa, sendo derivado do neerlandês kriel, que designa peixes acabados de nascer ou em fase juvenil. O krill é constituído por crustáceos com exosqueleto quitinoso dividido em dois ou três tagmata: a cabeça, o tórax e o abdômen, aparecendo os dois primeiros fundidos num só, formando o cefalotórax, como é típico dos crustáceos. A maioria das espécies de krill vive em grupos, com densidades e tamanhos bastante variáveis, dependendo da espécie e da região. No caso de Euphausia superba, existem registros de aglomerados com dez a trinta mil indivíduos por metro cúbico. A formação destes grandes aglomerados funciona como um mecanismo de defesa coletiva, confundindo os predadores menores que prefeririam selecionar as presas individualmente.
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