Cobertura de Folha e Estadão em geral prioriza a versão oficial dos conflitos, destacando sempre os supostos vínculos entre o tráfico de drogas e os mortos pela polícia. Os jovens da periferia assassinados aparecem sem rostos e muitas vezes sem nomes. Para o professor da PUC-SP Silvio Mieli, mídia incentiva a cultura da “militarização do cotidiano”, herança da ditadura militar.
Rodrigo Giordano, Carta Maior
São Paulo – Repleta de preconceitos e omissões, a cobertura dos dois jornais de maior circulação em São Paulo, Folha e Estadão, sobre a onda de violência na cidade, iniciada há quase três meses, reafirma uma posição elitizada que não contribui para explicar o problema. Essa é a avaliação do jornalista e professor da PUC-SP Silvio Mieli, ao ser apresentado a um levantamento, feito pela própria Carta Maior, sobre as reportagens publicadas pelos dois periódicos.
Os textos, colhidos entre 28 de maio e 10 de agosto, em geral priorizam a versão oficial dos conflitos, como quando destacam os supostos vínculos entre o tráfico de drogas e os mortos pela Polícia Militar (PM). Os jovens da periferia assassinados aparecem sem rostos e muitas vezes sem nomes, apenas alimentando a estatística de um suposto conflito entre criminosos e autoridades de segurança.
Segundo Mieli, a praxe de amplificar o discurso oficial através da mídia é uma herança da ditadura militar. “Foi implantada uma ‘militarização do cotidiano’, uma cultura desejada pela classe dominante brasileira e que foi posta em prática a partir de 1964, sendo a PM uma das vertentes desse processo. Ela está baseada evidentemente no uso da violência para com os mais fracos, para os que vivem na periferia, para os movimentos organizados e contra todos aqueles que se insurgirem contra o monopólio e a hegemonia dessa violência”, disse o professor.
Ao longo das reportagens, percebe-se a tentativa permanente de construção discursiva de dois lados em conflito. Aos leitores, resta decidir quem apoiar. As notícias ora demonizam o Primeiro Comando da Capital (PCC), ora demonstram os equívocos da polícia, mas sempre reproduzem a versão oficial dos fatos violentos.
Para Mieli, isso evidencia que a mídia foi contaminada por um hiper-realismo ultraviolento, ao afirmar que “sob o pretexto de reportar a violência que nos cerca, o tom da cobertura vai na linha ‘Tropa de Elite’”. “Simplesmente descreve-se a violência praticada por quem quer que seja, e fica só nisso. Em comum a todas essas formas de realismo, está a incapacidade de aprofundar as ações violentas, contextualizá-las, verticalizá-las”, diz o professor da PUC-SP.
Suspeitos e bandidos
Um aspecto obscuro na cobertura empreendida pelos diários trata-se da não identificação dos mortos ou responsáveis por crimes. Os termos “suspeitos” e “bandidos” são utilizados massivamente, como nas matérias das manchetes: “Dois homens são mortos pela Rota após perseguição na zona leste” (Folha, 03/07) e “Rota mata mais dois suspeitos” (Estado, 18/07).
Não obstante, há textos nos quais os periódicos nem sequer identificam as vítimas, omitindo nome, idade, profissão e até mesmo se elas possuíam algum envolvimento com o crime, como nas reportagens: “SP e Poá têm 9 mortos em menos de 12 horas” (Estadão, 27/06); “São Paulo tem a terceira chacina em 4 dias” (Folha, 27/06); “Capão Redondo tem 11 homicídios desde sexta-feira” (Folha, 28/06).
Um caso emblemático é o sumiço de dois jovens do bairro Presidente Dutra, em Guarulhos. Ambos os jornais noticiaram o protesto feito pelos moradores da região para lembrar os cinco dias que os adolescentes estavam desaparecidos, mas depois abandonaram o caso.
Em seguida, o portal R7 trouxe a notícia de que dois policiais haviam sido presos suspeitos de envolvimento com o sumiço dos jovens. E, dias depois, o mesmo veículo informava que foram conseguidas imagens de uma viatura da PM que estaria envolvida com o desaparecimento.
Desigualdade
A morte do empresário Ricardo Prudente de Aquino, 39, é paradigmática na cobertura dos jornais analisados. Só a partir desse caso, mais matérias passaram a ser feitas questionando os procedimentos da PM de São Paulo. No dia 22/07, a Folha citou pela primeira vez o método Giraldi, no qual os policiais deveriam basear suas abordagens e que não teria sido seguido no caso de Ricardo.
No entanto, pelo que se pode perceber das próprias matérias anteriores (“Rota mata 4 na mesma avenida em dois dias” – Folha, 04/07), esse foi apenas mais um caso de uma abordagem padrão que vem sendo utilizada pela polícia: é dada uma ordem para parar o veículo, esta não é acatada, há perseguição e troca de tiros, o “suspeito” é morto e nenhum policial é ferido.
No mesmo dia da morte do empresário, um jovem chamado Bruno, de 19 anos, envolveu-se em uma perseguição com a PM e foi morto com um tiro na cabeça, após o veículo em que estava ser alvejado por 25 tiros. Um caso muito semelhante ao de Ricardo, mas que não mereceu o mesmo destaque por parte de Folha e Estado.
Outro aspecto da cobertura dos diários é a falta de relação dos atuais acontecimentos com os crimes de maio de 2006, quando conflito entre polícia militar e PCC gerou mais de 500 civis mortos. Em 2011, foi apresentado o relatório “São Paulo sob achaque”, elaborado pela ONG Justiça Global e a Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard, o qual indica que a corrupção policial fora o estopim para os ataques. Movimentos como as Mães de Maio, surgidos após o episódio e que lutam contra a violência policial, têm sido ignorados na cobertura midiática.
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