Especial Blog – Quando o oprimido vira opressor: Racismo, preconceito e violência em Santo Amaro, Bahia

Tania Pacheco

A posição deste Blog sempre foi de total defesa em relação às violências sofridas pela população da Santo Amaro da Purificação, Bahia. Denunciamos a falta de ação das autoridades e acompanhamos cada movimento em relação à  contaminação pelo cobre, que continua a atingir e a causar inclusive mutações genéticas em habitantes da cidade. Hoje mesmo, separamos para comentar notícia postada por Ney Didãn, do MOPSAM, sobre a descontaminação do Rio Subaé. No entanto, é com grande tristeza que deixo essa informação de lado para postar outra, que acabo de ver no Youtube, seguindo a dica de Oluandeji Nkosi e do blog Religiões Afro Brasileiras e Política. São diversos vídeos mostrando parte do povo de Santo Amaro praticando atos de racismo, preconceito, discriminação e da mais pura violência.

As diversas versões da história têm só um ponto em comum: o dono de um lava a jato teria cobrando uma dívida de R$10,00 de um cigano. Aí a continuação muda, indo desde a notícia de que o cigano o teria assassinado, até a de que o teria deixado no local onde estavam e ido em casa buscar o dinheiro. O que não muda é o que aconteceu a seguir: o acampamento cigano foi totalmente destruído. Enquanto as casas eram saqueadas e incendiadas, eletrodomésticos mais pesados, como geladeiras e fogões, eram amassados e arrebentados. A maioria das pessoas olhava. Grande parte filmava com celulares, muitas fazendo comentários de vitória. Outras riam e pareciam comemorar. Ninguém tentou evitar a violência. 

Nos vídeos do Youtube, títulos, comentários e descrições são mais que expressivos: “Após um cigano matar a tiros uma pessoa que tinha prestado serviço de lavagem de carro que custava R$10,00, a população colocou fogo em todos os barracos da ciganada!!!!”, é a descrição deste que publicamos. Outro, com o título “Fora Ciganos Revolta”, tem como descrição “finalmente teremos paz”. Numa filmagem feita por um celular na horizontal, mostrando as imagens deitadas, as comemorações são aos berros e gargalhadas, a cada barraco incendiado e tombado. E o comentário não poderia ser mais revoltante: “botamos a ciganada para correrrrrrrrrrrrrrrr kkkkkkkk”.

A maioria absoluta das pessoas que destruíam as moradias, filmavam, comemoravam ou apenas olhavam eram negras. Gente que com toda a certeza deve ter enfrentado histórias de racismo, preconceito, discriminação e violência em suas vidas. Gente que enfrenta, diuturnamente, as consequências do racismo ambiental da COBRAC. Gente que em nenhum momento das filmagens se manifestou de forma a procurar impedir o que acontecia.

Wladimir Herzog escreveu, um dia: “Quando perdemos a capacidade de nos indignar contra as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados”. Toda a solidariedade deste Blog aos ciganos de Santo Amaro da Purificação. Todo nosso repúdio aos vândalos racistas que os atacaram, não importa a cor de suas peles.

Comments (6)

  1. Abaixo de Deus, devemos temer a três coisas: água de moro abaixo, fogo de moro a cima e a fúria da população.
    Sou filha de Santo Amaro, e posso-te dizer que fiquei supressa com o que vi sobre esse caso.
    Porém que te digo que o ato da população não foi por causa de preconceito com ciganos, mas sim pelo que já vinha acontecendo, muitas vezes os ciganos eram favorecidos perante as várias situações por serem ciganos, alguns praticam agiotagem (porém não obrigam a ninguém tomar emprestado dinheiro na mão deles), cobram juros altíssimos, quando não acham o dinheiro ele quer outras coisas em troca. E por ninguém nunca relata isso.
    A população de santo amaro, não aquentou mais. Eu não estou te dizendo que estar certo, pois nada justifica o fato. Mas vocês param para pensar que por causa R$ 10,00 uma vida foi perdida, um pai de família não pode acompanhar a criação de seus filhos, uma mãe está sem o seu filho nos braços? E pq não se fez justiça? E pq não perderam o cigano?
    Por quietação da população o nosso país está assim, vidas não vale mais nada, educação péssima qualidade, meios são justificados de formas erradas, corruptos cada vez mais safados, etc.
    Devemos nos sacudir, devemos nos mobilizar, deixamos por muito tempo a confiança depositada na mão dos políticos e eles não fizeram nada. Vi vai deixar que a violência chegasse à sua casa? Ou vc vai começa a agir.
    Obs: Se sacudir e se mobilizar, não significa vandalismo e nem destruição.

  2. Se a cada assassinato uma comunidade inteira fosse incendiada viveríamos num mar de cinzas. Nada nesse mundo pode justificar o ocorrido. Há muito tempo aprendemos a diferenciar o crime de uma pessoa, dos crimes de seu povo. Ninguém julgaria Santo Amaro um antro de assassinos pela simples existência de um assassino entre eles (e como comunidade é pobre, já devem ter havido vários…). No entanto, esse privilégio não é concedido aos ciganos.

    Há pouco tempo muita gente se revoltou com a França por deportar os ‘seus’ ciganos, mas, ainda hoje não vemos os ‘nossos’. São os invisíveis entre os mais invisíveis e quase nada sabemos deles (apesar de estarem entre nós a séculos).

  3. Sim, sem dúvida! Você faz um trabalho excelente neste sentido, aliás!:) Parabéns! E, se algo me dá fé no futuro, é a atuação da blogosfera engajada, como um todo. Tenho visto mais e mais pessoas reagindo ao que consideram injusto e desumano e até gente deixando de ser egoísta, como meia dúzia de amigos meus que, de tanto me ouvirem falar de textos e documentários e política e direitos humanos, refletiram sobre suas posturas e estão mais sensíveis. A internet é extraordinária por isso! Aqui, você pode desenvolver este ótimo trabalho e nós podemos discutir, eu posso me expressar, sem ter a leve impressão de que estou “criando caso”. E outros também se expressam. Aí, percebemos que somos mais numerosos do que imaginávamos. E isto é uma grande coisa!:)

  4. Concordo plenamente com você, tanto quanto às causas, quanto em relação à consequências. Por isso inclusive iniciei o título falando de quando os oprimidos viram opressores, coisa que infelizmente acontece com bastante facilidade. Bem mais corriqueiro é o caso do marido que é super humilhado pelo patrão e – tenha a cor de pele que tiver, novamente – chega em casa e espanca a mulher, “para descontar”. Mas penso que parte da nossa ação quanto a isso deve ser sempre denunciar, inclusive como forma de convidar as pessoas a refletirem e a mudarem a forma como respondem às injustiças que sofrem. O oprimido de hoje não pode e não deve transformar-se no opressor de amanhã, em nenhuma circunstância.

  5. Oi Tania! Antes de mais nada, obrigada por ter respondido ao meu comentário sobre o texto do Militão dos Santos (há décadas atrás, nem sei se você se lembra) e desculpe por não ter agradecido antes!
    Eu não consegui ver o vídeo até o final. Há tanto a dizer e lamentar e, ao mesmo tempo, dá vontade de não fazer nenhum dos dois! Infelizmente, vivemos numa sociedade que distribui privilégios e constrói hierarquias baseadas em critérios que nada têm a ver com mérito legítimo e caráter. Tudo é superficial e ilusório. Isto destrói a empatia e a solidariedade entre as pessoas. E eu tenho ficado cada vez mais apreensiva diante desta falta de empatia e solidariedade e também da banalização da violência. Maldade e violência não têm cor, principalmente se partem dos tais privilégios e hierarquias que mencionei. Os ciganos sempre sofreram discriminação de qualquer pessoa, acho que principalmente pelo fato de se organizarem de modo diverso. O estilo nômade deles é extremamente condenado, suas moradias são tidas como malocas e eles mesmos são vistos com desconfiança e desdém. Porque “não se adequaram”, como nós. Eu mesma, negra (mestiça), fui ensinada pelo meu pai (branco) a não ver os ciganos de modo simpático. Pra desespero dele, na adolescência, conheci a música cigana e me apaixonei, pesquisei sobre os ciganos e passei a vê-los com respeito e afeto! Mas, percebe? Este péssimo costume de maltratar ciganos, porque eles são nômades e “não se adequam”, faz parte, infelizmente, de muitas sociedades. Não estou justificando absolutamente nada, só dizendo que os negros de Santo Amaro são, sim, negros, com certeza sofrem discriminação e são, também, pobres, pelo que observei (ou seja, dupla discriminação). Mas, mesmo assim, se sentem superiores aos ciganos. São os tais privilégios. Eles têm o privilégio de fazer parte da sociedade e se comportar, mais ou menos, do modo como todos esperam, não são “os diferentes”. Não sei se me explico. Como negra, me sinto envergonhada pelo que vi, é uma lástima, não vi o vídeo inteiro, mas, e a polícia?? Onde estava?? E outra: não sei se houve assassinato ou não (por causa de R$ 10,00!), mas, a reação do povo não me surpreendeu. Sim, me chocou, mas é comum, infelizmente, no Brasil, o povo reagir de maneira ultra violenta, diante de qualquer um que seja suspeito ou tenha cometido um crime, antes mesmo de ser levado a julgamento! Não sei o que acontece. Nem por que acontece.
    Barbárie, maldade, esta situação mostra os monstros que a sociedade gera, ao atribuir critérios de distinção, entre os seres humanos, que não têm nada a ver com o caráter e ao desumanizar completamente os “marginais” (ou “aqueles que não funcionam como a maioria”). A última coisa que passou pela cabeça dos agressores, foi que os ciganos também são seres humanos, que sentem na pele a dor do preconceito e da violência, como os negros! Os agressores viram um grupo mais vulnerável que eles e discriminado pela sociedade, por ser diferente. Simples. Monstruoso, mas simples. Vejo cenas assim o tempo todo, não tão extremas, mas, vejo. Gente que usa meia dúzia de privilégios e oprime vulneráveis, por mais em desvantagem que também esteja, como um mendigo, uma vez, na João Mendes, ofendendo pesado uma prostituta, querendo humilhá-la, mesmo. Ele não pensou que também é um ser humano e também está em situação de desvantagem. Pensou que é um homem, portanto, “tem privilégios”. Triste! Acho que só uma educação que privilegie os direitos humanos (e ambientais) pode mudar isto.

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