O estadista do século XIX alertou para as cicatrizes que a escravidão nos deixaria e destacou a importância da reforma agrária
Por Diego Viana, no Valor
Joaquim Nabuco é um dos principais atores da formação do Brasil. Por décadas, lutou pela abolição da escravidão, dizendo, profeticamente, que ela permaneceria “por muito tempo como a característica nacional” do país. Depois da queda do Império, fundou com Machado de Assis a Academia Brasileira de Letras e dedicou-se à diplomacia.
Enquanto viveu nos Estados Unidos e no Reino Unido, o autor de Um Estadista do Império foi divulgador da obra de Luís de Camões. Ao fim da vida, produziu as memórias que compõem Minha Formação, republicado agora no Brasil pela Editora 34.
Nas memórias, o componente político e o literário de Joaquim Nabuco se fundem, como assinala Alfredo Bosi na sua apresentação à obra. O paulistano Bosi, que ocupa a cadeira 12 na academia fundada por Nabuco, é professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo e autor da História Concisa da Literatura Brasileira (1970).
Como Joaquim Nabuco, a atuação de Bosi não se restringe a um campo. Coordena o grupo de pesquisa em Cultura e Literatura do Instituto de Estudos Avançados, da USP, onde edita a revista Estudos Avançados. Outro ponto de encontro entre Alfredo Bosi e Joaquim Nabuco decorre de seu livro Dialética da Colonização (1992), em que discute a formação do Brasil desde o padre Anchieta, no século XVI, até a atualidade. O trabalho foi agraciado com o Prêmio Casa Grande e Senzala, conferido pela Fundação Joaquim Nabuco. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: As memórias de Joaquim Nabuco iluminam o personagem histórico? São um documento da época ou devemos nos ater ao caráter literário?
Alfredo Bosi: Minha Formação deriva de uma reconstrução do percurso cultural e militante de Nabuco, com ênfase nas razões do abolicionismo, de que foi um dos mais vigorosos defensores. Há no livro uma coerência de perspectivas políticas, que se podem definir como o limite do nosso liberalismo democrático, oposto ao liberalismo escravista e excludente, que era, no fundo, um conservadorismo renitente. O tom equilibrado dos seus julgamentos produz um efeito de maturidade psicológica e moral que faz bem ao leitor de hoje, agredido pela irresponsabilidade de nossa vida política e de boa parte da mídia.
Valor: Nabuco é uma das grandes figuras na formação do Brasil como nação. Sua atuação vai da historiografia à diplomacia, da política à literatura. Figuras desse vulto pertencem ao passado?
Bosi: Quando nos debruçamos sobre a biografia e a obra de Nabuco e as comparamos com a dos nossos homens públicos, não podemos deixar de sentir uma nostalgia pelo que parece irremediavelmente perdido. Mas, ao longo do século XX, intelectuais progressistas como Caio Prado Jr., Celso Furtado, Raymundo Faoro, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, entre outros, deixaram marcas e discípulos. É nosso dever puxar os fios que atam o passado ao presente, em vez de apenas deplorar as carências de que vem sofrendo a inteligência militante brasileira.
Nabuco e seus inspiradores ou companheiros de geração – Tavares Bastos, André Rebouças, José do Patrocínio, Luiz Gama, Joaquim Serra, José Bonifácio o Moço, Rui Barbosa, Castro Alves… – foram figuras de resistência no contexto político do Segundo Reinado. Mas sua influência intelectual e ética foi breve, pois a Proclamação da República, franqueando o poder às oligarquias estaduais, não levou adiante as propostas mais avançadas daquele liberalismo democrático. Como acontece hoje com a inteligência de esquerda, seu prestígio nos meios intelectuais é considerável, mas está longe de abalar os pilares do nosso capitalismo selvagem.
Valor: Se a luta, hoje, não é pela abolição, persiste uma falha basilar no Brasil quanto aos direitos humanos. Que lições podemos tomar do movimento abolicionista?
Bosi: As exigências formuladas sob o nome de Direitos Humanos prolongam a luta democrática, cujo início pode datar-se das revoluções inglesa, francesa, americana (século XVIII) e dos vários movimentos socialistas e anarquistas desencadeados a partir de meados do século XIX. Nem seria justo omitir a perseverança dos filantropos evangélicos no combate à escravidão: Joaquim Nabuco, ligado à Anti-Slavery Society, muito lhes deve. Quase todos os direitos sociais e políticos foram conquistados ao longo desses dois séculos e meio. Mas as raízes da exploração e da opressão ainda não foram arrancadas do solo econômico e político das sociedades contemporâneas. O Brasil não é, porém, um caso isolado: os conflitos que aqui explodem também ocorrem em outros países, apesar das diferenças de cultura e estilo de vida.
Valor: O senhor cita uma interpretação psicanalítica à alteração na desinência do engenho Massangano(a) no texto de Nabuco e sugere um recalque do lado africano do engenho, ressurgindo em um escravo fugido. Como devemos entender os mecanismos desse recalque?
Bosi: Acho sugestiva a interpretação psicanalítica ou psicossocial que Lélia Coelho Frota deu à ambivalência do nome do engenho em que Nabuco passou a sua infância. A desinência masculina (Massangano) teria a ver, no inconsciente do memorialista Nabuco, com a estrutura escravista do engenho. A feminina (Massangana), com o lado matriarcal e benigno da madrinha do menino, que o criou até os 8 anos, quando ele partiu do engenho e foi morar com os pais no Rio. Não sei até que ponto devo confiar nessa interpretação, mas, “se non è vero, è bene trovato”.
Valor: Nabuco diz que “não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir sua obra”. O que implica esse imperativo, depois de 125 anos?
Bosi: A frase de Nabuco é exemplar e significa: é preciso instituir o trabalho digno do adjetivo “livre” com que se designa o trabalho assalariado. Mas não só: seria preciso apagar os vestígios de injustiça e humilhação que o cativeiro iria deixar, como deixou. Hoje essa tarefa tem aspectos particulares: é preciso defender, a todo custo, as exigências codificadas na legislação trabalhista, ameaçada pelas investidas da desregulamentação neoliberal. E levar a bom termo a reforma agrária, proposta literalmente presente em Nabuco.
Valor: O jovem Nabuco se diz abolicionista para prestar um serviço à “raça generosa entre todas”, ou seja, com fundamento sentimental. Já no texto A Escravidão, ele emprega a argumentação racional do direito à propriedade sobre o corpo. Como conjugar as duas posições?
Bosi: A contradição é aparente. O afeto profundo que a convivência com os escravos de Massangana despertou no menino Joaquim motivou o jovem a lutar pela abolição: são raízes emotivas que tantas vezes ditam a nossa conduta de adultos. Quanto às razões objetivas, Nabuco valeu-se de uma argumentação jurídica, mostrando que a escravidão feria o direito de propriedade do próprio corpo, que era subtraído ao cativo. Ele usou sagazmente um argumento dos escravistas (o “sagrado direito de propriedade”) para derrotá-los no próprio campo retórico…
Valor: Joaquim Nabuco e Machado de Assis foram próximos e fundaram, juntos, a Academia Brasileira de Letras. Se Machado queria uma academia puramente literária e Nabuco, mais generalista, com cientistas e outros intelectuais, pode-se dizer que Nabuco prevaleceu?
Bosi: A proposta de Nabuco, feita em carta a Machado de Assis e aprovada pelos confrades na Academia Brasileira de Letras, era a da inclusão de figuras notáveis da cultura e da vida pública brasileira no quadro da nova instituição. É provável que não fosse esse o ideal de Machado, que, mais de uma vez, se pronunciou pelo caráter prioritariamente literário da vida acadêmica. Mas Machado não discutiu nem resistiu. Tinha “tédio à controvérsia”, expressão da sua personagem, o Conselheiro Aires.
Valor: Joaquim Nabuco é lembrado mais por seu legado político do que pela atuação literária. Qual é o estatuto do Nabuco divulgador de Camões, memorialista, escritor?
Bosi: É difícil distinguir na obra de Nabuco o componente político do literário. Em uma obra memorialista como Minha Formação, o político está presente ao historiar sua luta liberal e abolicionista. Digamos que foi esse o objetivo maior do seu projeto como homem público. Mas a memória não se exprime sem a configuração de imagens penetradas de sentimentos. Imagens e sentimentos são o corpo e a alma da forma literária. No antológico capítulo “Massangana”, encontramos Nabuco escritor, sensível, reflexivo, mas cioso da clareza que aprendeu na leitura atenta dos escritores franceses do século XIX. Nabuco é um escritor excepcional no quadro dos estilistas rebuscados do seu tempo. Tudo nele é transparente.
Valor: Nabuco comenta o conflito entre suas influências europeia e americana. São as duas grandes hegemonias dos últimos séculos, período de formação do Brasil como país periférico. Fala-se, hoje, na ascensão do país como potência autônoma; qual seria o lugar dessas influências nesse quadro?
Bosi: A pergunta recapitula as grandes intersecções que o Brasil viveu desde o Descobrimento. Primeiro, a intersecção com a metrópole portuguesa no período colonial. Depois, a intersecção deu-se com as culturas hegemônicas, francesa e inglesa. Enfim, no século XX, com o estilo de vida e a linguagem americana. Não convém isolar o Brasil desses grandes ciclos culturais. Tampouco a noção de periferia deve cobrir toda a nossa vida pública e privada. Basta analisar de perto a obra de grandes artistas, como Aleijadinho, Portinari e Volpi, ou o romance de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, ou a poesia de [Manuel] Bandeira, [Carlos] Drummond [de Andrade], Cecília Meireles, para libertar-nos do complexo de inferioridade e de eterno “atraso estrutural”. O subdesenvolvimento econômico e a macaqueação dos costumes estrangeiros são fatos que pesam, no Brasil e fora do Brasil, mas não devem impedir-nos de ver nossa capacidade de invenção cultural.
Valor: Nabuco diz também que “o verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade”, no espírito do liberalismo do século XIX. Como seria a releitura dessa frase em tempos de globalização, para manter uma posição de conciliação em meio à costura conflituosa entre o local e o mundial?
Bosi: Os exemplos da resposta anterior atestam a capacidade de interação criativa entre a realidade local e modelos que a globalização cultural está sempre divulgando em um mundo centrado na dinâmica do mercado. Talvez seja um bom começo pensar que o Brasil não só recebe, mas também oferece ao sistema globalizado projetos e produtos concebidos aqui. Esse dar e tomar e esse intercâmbio, que a internet potencia, talvez dissipem, com o tempo, a impressão de que nações e povos estão submersos na indiferenciação global.
Valor: O senhor define a escravidão no tempo de juventude de Nabuco como “fato social total”. O fato social possui também uma dimensão atávica, que se manifestaria na truculência da relação entre o poder e a população no Brasil?
Bosi: Como Nabuco mostra cabalmente, a escravidão investia todos os setores da população, não só os trabalhadores e seus proprietários, mas também o Estado, a Igreja, as relações públicas e privadas. Os atos de violência e de barbárie que estamos presenciando não são fatos isolados ou efeito de conjunturas econômicas locais. Têm a ver com um sistema político pseudodemocrático, baseado na representação precaríssima do cidadão no quadro das instituições legislativas e executivas. Se a democracia representativa é mesmo o melhor dos piores regimes, talvez se deva melhorá-lo um pouco, insistindo na democracia participativa, como a que se tentou em alguns municípios que conseguiram elaborar orçamentos públicos com participação do cidadão.
http://ponto.outraspalavras.net/2012/02/29/inteligencia-militante/