Entrevista histórica com Eleonora Menecucci

Eleonora Menicucci de Oliveira, nasceu em Lavras, Minas Gerais, em 1944, é Professora de Ciências Humanas em Saúde da Universidade Federal de São Paulo, atuou em grupo clandestino durante a ditadura sendo militante da POLOP e da POC. Reside em São Paulo.

Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (1974), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (1983) e doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1990) e Livre Docência em Saúde Coletiva pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Atualmente, é servidora pública da Universidade Federal de São Paulo, lotada como docente no Departamento de Medicina Preventiva da UNIFESP. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Saúde, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos, direitos reprodutivos e sexuais, autonomia, aborto-escolha, violência doméstica e sexual, políticas públicas, avaliação qualitativa e autodeterminação.

Entrevista com Eleonora Menicucci de Oliveira (feita em 14/10/2004, por Joana Maria Pedro em Cárceres, MT*).

Joana: Hoje é dia 14 de outubro de 2004 e nós estamos em Cárceres no evento que se chama Corpo, Sexualidade e Gênero, ou qualquer coisa nessa direção, promovido pela Universidade Estadual de Cárceres, e eu estou aqui conversando com a Eleonora Menicucci. E eu gostaria que tu começasses falando de onde é que tu nasceste, porque o que eu quero mesmo é que tu me contes quando é que tu achaste que tu eras feminista, que é essa a minha discussão, a identificação com o feminismo. Mas eu queria que tu falasses primeiro com que nome tu nasceste, Eleonora Menicucci mesmo?

Eleonora: Eleonora Menicucci de Oliveira. Eu nasci em Lavras, interior de Minas, sul de Minas, no dia 21 de agosto de 1944, no ano do final da Guerra, da Segunda Guerra. Eu sou a segunda de seis filhos, cinco mulheres e um homem (uma morreu ainda pequena), e fui basicamente educada só por mãe porque meu pai morreu quando eu tinha 11 anos. Com 44 anos e minha mãe tinha 35.

Joana: Tu eras a mais nova então?

Eleonora: A segunda de cinco filhos. Sendo quatro mulheres e o mais novo homem. Eu atualmente resido em São Paulo na rua João Moura, 476 apartamento 51 em Pinheiros. Eu atualmente sou socióloga sanitarista, professora livre docente do Departamento de Medicina Preventiva, dedicação exclusiva na Universidade Federal de São Paulo ligada à disciplina de Ciências Humanas em Saúde.

Joana: Faculdade de Medicina, no caso?

Eleonora: Antiga Escola Paulista de Medicina, hoje chama Universidade Federal de São Paulo. E atualmente eu também estou exercendo a vice pró-reitoria de pesquisa na minha universidade.

Joana: É?

Eleonora: É, recentíssimo, há dois meses. Eu sempre fui professora. Lecionei na Universidade Federal da Paraíba.

Joana: Tu começastes no primário, nada?

Eleonora: Eu fiz o colegial, eu fiz o curso normal até então…

Joana: Há é, fizeste o curso normal?

Eleonora: É, em Belo Horizonte. E do curso normal…não, em Lavras. E me formei em 1963 como professora primária, imediatamente depois eu fui pra Belo Horizonte lecionar num colégio de primeiro e segundo grau particular e entrei para o partido comunista.

Joana: Isso era que ano mais ou menos?

Eleonora: 1964, no ano do Golpe. Aí entrei pra universidade neste mesmo ano.

Joana: Sociologia, no caso?

Eleonora: Não, eu fiz Pedagogia. Um mês depois, o partido achou que eu deveria pedir transferência para Ciências Sociais, aí teve um novo vestibular… no mesmo ano, em abril, eu entrei para Ciências Sociais. E lecionava, fiz concurso pra ser professora de escola pública…

Joana: Foi professora de quinta à oitava série.

Eleonora: Em Belo Horizonte, fui professora primária de quinta à oitava série numa favela que chamava Morro do Papagaio. Neste ano, em 1965, também por decisões partidárias, depois do Golpe, eu também fiz vestibular pra Medicina, passei e cursei quatro anos de Medicina junto com Ciências Sociais. Por isso que eu estou na Escola Paulista de Medicina. Eu sou separada, tenho dois filhos, uma moça com 35 anos que tem uma filhinha de dois, e um rapaz de 29 anos. Ela mora em Nova York, é cineasta e ele mora em São Paulo, tem uma fábrica de fazer pranchas de surf. E…bem, aí você me pergunta, tá aqui a primeira questão: no período de 1964 a 1985, se eu me identifiquei com o feminismo?

Joana: Sim. A partir de quando você achou que era feminista?

Eleonora: Pois é, Joana, eu me descobri feminista na cadeia, em 1971, em São Paulo. DOI-CODI porque…só pra fazer um…

Joana: Você já era casada nessa época?

Eleonora: Já. Só pra fazer um gancho, eu entrei pro Partido Comunista depois rachei com o Partido Comunista, fui pra luta armada e…

Joana: Você fez parte de qual organização?

Eleonora: Eu fiz parte da dissidência do Partido Comunista, depois da POLOP, e depois do POC, Partido Operário Comunista. E, em 67, eu, já clandestina em Belo Horizonte, casei com um companheiro, de organização quando eu digo, e casei porque eu precisava… eu queria mudar de nome porque eu já estava muito queimada. Então eu passei a me chamar Eleonora de Oliveira Soares, né? E, neste momento, final de 1967 início de 1968, ainda estava em Belo Horizonte, quando foi julho eu entrei pra clandestinidade; em 68 fui pra cidade industrial, e no final de 1968, quando a situação da luta contra a ditadura apertou muito, nós fomos para São Paulo já clandestinos, e eu fui grávida.

Joana: Tu e teu marido?

Eleonora: Eu e ele. Os dois nas mesmas condições. E eu fui grávida é…e eu fiquei 1969 inteiro clandestina, grávida, fazendo ações em São Paulo. A minha filha nasceu em 27 de setembro de 1969, próximo ao sequestro do embaixador americano e do homem ter ido à Lua, do Yuri Gagarin. Eu tive clandestinamente essa filha na maternidade de São Paulo.

Joana: Com outro nome, é isso?

Eleonora: Eu tive com outro nome, ela tinha outro nome. E o meu companheiro, que era o meu ex-marido, ele só pode vê-la depois que eu saí da maternidade.

Joana: Por que vocês estavam sendo procurados, evidente?

Eleonora: Procurados por três processos. Já morávamos na cidade, no ABC, com nome falso, com tudo falso. E ela nasce de cesária em 1969. E nós ainda ficamos, era no POC, nós ficamos clandestinos até julho de 1971. Sendo que em maio de 71, quando começou a queda do POC na OBAN em São Paulo, a organização decidiu – eu era da direção e eu também participei dessa decisão – que deveríamos sair do país. Eu saí até o Chile e ele ficou em São Paulo, e eu voltei com a menina um mês depois. Porque na minha avaliação era o que eu tinha que fazer…

Joana:…a luta armada aqui.

Eleonora:…a luta armada aqui. E um detalhe importante nessa trajetória é que seis meses depois dessa minha filha ter nascido eu fiquei grávida outra vez. Aí, junto com a organização, nós decidimos que eu deveria fazer aborto porque não era possível na situação ter mais de uma criança, né? E eu não segurava também. Aí foi o segundo aborto que eu fiz. Tinha um cara, Isac Abramovicht, um ano depois ele vai ser uma figura de destaque na minha vida. O médico que me fez a primeira consulta de pré-natal na clandestinidade, indicado por uma companheira.

Joana: Que fez teu aborto?

Eleonora: Não, eu fiz aborto em outra clínica de Pinheiros, também de um médico militar, vim a saber depois. Eu vou presa no dia 11 de julho de 1971.

Joana: Tinhas ido pro Chile e voltado…

Eleonora: Um mês depois…

Joana: E aí foi presa em seguida?

Eleonora: Fui presa três meses depois.

Joana: Vocês estavam certos em querer sair.

Eleonora: Sim. Completamente certos de querer ficar no Brasil. Aí eu fui presa em 1971 dia 11 de julho com ela…

Joana: Tavas com ela.

Eleonora: Ela tinha um ano e dez meses.

Joana: Fosse presa como? Em casa?

Eleonora: Eu fui presa na casa de uns tios do meu ex-marido porque, nesse mesmo dia, ele tinha ido pra Uberaba clandestino pro velório da mãe dele. E eu fui deixar a Maria na casa desses tios. Aí quando nós chegamos a OBAN já estava lá. Eram 17 homens armados pra me prender. E isso era uma hora da tarde. Às seis horas, eu fui pra OBAN, e eu me separei dessa minha filha dizendo que ia para o dentista bruscamente.

Joana: E ela tava com o que?

Eleonora: Um ano e dez meses.

Joana: Um ano e dez meses.

Eleonora: E aí no processo foi todo mundo preso. Meu ex-marido foi preso no enterro. E durante o processo de tortura, que durou 72 dias na OBAN, de todas as formas de tortura, a minha filha, com um ano e dez meses, foi torturada na minha frente, tomando choque. Então este foi o episódio. O que fez o pré-natal e poderia ter feito o meu aborto era médico da OBAN – o torturador, ele ainda hoje tem uma clínica de aborto em São Paulo.

Joana: Barbaridade.

Eleonora: E ele que nos dava a injeção pra gente voltar da tortura. Então é esta figura hoje que o CRM está sempre…tá caçando, e eu tenho ido no CRM várias vezes e na Justiça depor contra ele na Comissão dos Mortos e Desaparecidos. É aí eu fiquei, minha filha foi morar pra com a minha mãe, e eles não torturaram a minha filha na frente do meu ex-marido.

Joana: Tá. Foi só na tua frente.

Eleonora: Só na minha frente. E isso foi o momento decisivo pra eu descobrir a importância que a maternidade tinha pra mulher e a importância que qualquer instância social de poder fazia uso do corpo da mulher e da maternidade, né? Isso me fez a pensar e refletir muito no sentido de qual era a relação do centralismo democrático, da esquerda com a questão da mulher. Por que eu fui me descobrir feminista na tortura? Eu percebi absolutamente a diferença, e não só a diferença na tortura, porque a tortura de homens e mulheres foi completamente diferente, tinha o uso do corpo da mulher, não tinha o uso do corpo do homem. Tinha o uso da suposta fragilidade materna. E em detrimento da suposta força de virilidade masculina… do pai. E também ao repensar toda a minha trajetória de esquerda eu pude perceber as relações de poder muito fortes de gênero na esquerda. Então essas duas coisas foram fundamentais pra eu me tornar feminista. E evidentemente que o meu encontro com o feminismo nasce muito com uma transversalidade da questão de classe social. Porque eu vim desse lugar.

Joana: Tu me falaste que tu começasses também a observar a questão da mulher, das relações no interior da tua própria organização, das organizações das quais tu participastes, além da questão dos órgãos de repressão havia também. Tu poderias, porque há pouco tu me contaste que a tua filha foi torturada na tua frente, e que também usaram contigo uma tortura diferente da do teu marido.

Eleonora: Sim, sim.

Joana: E com relação ao fato de…

Eleonora: Só ao fato dela ter sido torturada só na minha frente e não na dele…

Joana: e não na dele… é…

Eleonora: … já é… tem um significado.

Joana: Já. E com relação às organizações das quais tu participavas?

Leonota: Há… primeiro que as mulheres dificilmente chegavam a um cargo de poder…

Joana: Mas tu eras a chefe?

Eleonora: Eu era. Fui uma das poucas. Por que? Eu me travesti de masculino…

Joana: É? Como era?

Eleonora: Eu tinha atitudes masculinas, eu tinha atitudes…Quais são as atitudes masculinas? Determinar entre… simbolicamente e a representação do masculino…

Joana: uhum, uhum.

Eleonora: Era decidida, determinada, forte, sabia atirar…

Joana: uhum.

Eleonora: Entendeu?

Joana: Entendi.

Eleonora: Sendo que muitas mulheres sabiam isso tudo.

Joana: Certo.

Eleonora: Transava com vários homens.

Joana: Certo.

Eleonora: Essa questão do desejo e do prazer sempre foi uma coisa muito libertária pra mim, e por isso eu fui muito questionada dentro da esquerda.

Joana: É?

Eleonora: É.

Joana: Dentro do mesmo grupo do qual tu eras a líder?

Eleonora: Sim. Porque o próprio… por questões de segurança eu só poderia ter relação sexual com os companheiros da minha organização.

Joana: Certo.

Eleonora: Num determinado momento sim, mas na história do movimento estudantil também já existia isso.

Joana: Certo. Eu acho que tem alguém tocando a porta. (Interrupção)

Joana: Então, nós estávamos na organização. Tu estavas dizendo que tu sentiste isso a partir do fato de que tu observasses que as mulheres nunca ocupavam ou dificilmente ocupavam…

Eleonora: Em sua maioria não ocupavam um cargo de direção.

Joana:… e também a questão da transa.

Eleonora: A questão da transa e a outra questão, por exemplo…

Joana: Mas, estavas me contando que para…por questões de segurança só transava no interior do grupo.

Eleonora: Isso muito, muito recente, muito próximo à prisão.

Joana: Certo.

Eleonora: Porque ao longo do movimento estudantil…

Joana: uhum.

Eleonora:… eu transava com todos…

Joana: Sim.

Eleonora:… independente da minha organização.

Joana: Certo.

Eleonora: À medida que a situação de repressão foi ficando cada vez mais forte…

Joana:… uhum.

Eleonora:… aí, evidentemente, que eu mesma tinha os meus critérios…

Joana. Certo, de seleção de parceiros.

Eleonora:…de seleção de parceiros daqueles que estavam na mesma organização que eu.

Joana: Tá.

Eleonora: Mas existia uma regra.

Joana: Que regra era essa?

Eleonora: Que você só podia ter relação sexual entre as pessoas da sua célula.

Joana: Tá. E os homens, acontecia isso também? Ou era só com as mulheres?

Eleonora: Há, era só com as mulheres.

Joana: Porque os homens transavam com outras.

Eleonora: Transavam, transavam, transavam, transavam. E a outra coisa que era muito marcante na esquerda… na clandestinidade na esquerda, se por um lado a esquerda, veja bem eu não tenho a menor

dúvida disso, nos liberou…

Joana: uhum.

Eleonora:… nos colocou um horizonte de vida, nos liberou

Joana: uhum.

Eleonora:… do ponto de vista político, sexual, de mentalidade com um projeto de sociedade, isso gera um combate muito forte entre família nuclear e a esquerda. Militar na esquerda tinha uma questão muito… o centralismo democrático era muito forte.

Joana: Tá.

Eleonora: Então a sua opinião… a sua percepção, os seus sentimentos não poderiam ser extravasados.

Joana: uhum.

Eleonora: Os seus medos, suas dores, suas saudades.

Joana: Certo.

Eleonora: Não poderiam. E as mulheres, eu digo isso muito, para serem aceitas e ascenderem cargos de direção elas tinham que ter atitudes muito consideradas pela esquerda que os homens é que tinham.

Joana: Certo. Certo

Eleonora: E ao longo do processo da esquerda, e ao longo do processo de cadeia, porque eu fiquei três anos e oito meses presa.

Joana: E o teu marido?

Eleonora: Também ficou quatro.

Joana: uhum.

Eleonora: Na cadeia que as… foram se desmanchando as organizações e a convivência se tornou mais íntima entre nós de outras organizações? Ficou muito claro a questão da relação com as mulheres.

Joana: Certo.

Eleonora: Era uma relação de poder.

Joana: uhum.

Eleonora: Agora nós ocupamos cargos, mas a maioria de mulheres que era aceita, transvestia-se de masculina.

Joana: Certo.

Eleonora: Ela era, você podia dizer, que era um reflexo das relações de poder da sociedade, mas essa questão não se colocava pra nós, hoje é uma leitura que eu faço…

Joana: uhum

Eleonora:… bem pós pós pós pós…

Joana: uhum. Uhum.

Eleonora:… pós- o período….

Joana: Certo.

Eleonora:… não pós-modernidade, pós- o período.

Joana: Pós- o período. Entendo.

Eleonora: Pós- o período. Então nesse sentido as únicas mulheres que eram direção da minha organização era tres.

Joana: Bom começo.

Eleonora: Todos masculinos.

Joana: Certo.

Eleonora: Todos homens.

Joana: Eu quero voltar a tua filha. Eles torturaram ela na tua frente, mas a tua família não a recuperou?

Eleonora: A minha filha… a minha família a recuperou após dez dias.

Joana: Dez dias. Então ela ficou contigo dez dias.

Eleonora: Ela não ficou comigo, ela ficou no exército e eu fiquei no DOI-CODI.

Joana: Certo.

Eleonora: Eu não sei com quem ela ficou.

Joana: Certo.

Eleonora: Hoje sei.

Joana: Certo.

Eleonora: Que a irmã do meu ex-marido ficava indo muito lá.

Joana: Certo.

Eleonora: Isso me transmitiram.

Joana: uhum

Eleonora: Depois ela foi recuperada pela minha mãe. Ela foi criada pela minha mãe esses…

Joana: Esses três anos e pouco que tu ficaste lá.

Eleonora: É. Ela ficou até os cinco anos de idade ela ficou com a minha mãe, cinco e pouco. Depois eu sai da cadeia em 74, fui pra Belo Horizonte, morei com a minha mãe uns meses e depois meu ex-marido saiu e nós começamos um processo de recuperação dela.

Joana: Certo.

Eleonora: Que foi …

Joana: Que não deve ter sido fácil, não é?

Eleonora: Isso foi muito doloroso porque o sentimento de perda dela era absurdo…

Joana: Porque ela não reconhecia vocês?

Eleonora: Não, ela não nos reconhecia como pai e mãe nem como pessoas..né?…

Joana: Em suas relações.

Eleonora: Em minhas relações. E depois imediatamente eu quis ter outro filho…

Joana: uhum.

Eleonora:… e muito no sentido de pra provar para os torturadores, mesmo que fosse simbolicamente, que o que eles tinham feito comigo não tinha me tirado a possibilidade de reproduzir e de ter uma escolha sobre meu próprio corpo…

Joana: uhum.

Eleonora:… então eu tive mais um filho e logo que ele nasceu também de cesária eu me laqueei.

Joana: Certo.

Eleonora: então…eu tinha…eu fui presa com 24 para 25 mais ou menos…

Joana: Nossa senhora.

Eleonora:…e sai com 30.

Joana: Certo.

Eleonora:… assim, da história toda e com 30 para 31 tive o meu segundo filho e fiz a laqueadura de trompas…

Joana: Certo.

Eleonora:… já em Belo Horizonte.

Joana: E tu continuaste com o teu marido mais tempo?

Eleonora: Não.Ai quando esse meu filho Gustavo nasceu, a menina chama Maria, eu fiquei mais um ano…

Joana: uhum.

Eleonora:… e nós nos separamos.

Joana: uhum.

Eleonora: E… ao longo da cadeia e depois da readapta…da reabilitação (risos), da resociabiização no mundo social nós tivemos várias crises, porque é muito difícil ser casal que vai preso junto, que sofre tudo junto, que vê as forças e as fragilidades um do outro, e de todo um projeto que se desmoronou continuar junto.

Joana: Imagino.

Eleonora: Muito difícil, muito difícil. Hoje eu sou muito amiga dele. Nós temos uma relação muito boa, mas é uma relação em que eu criei os filhos.

Joana: Entendi.

Eleonora: É uma relação muito de ele aparece.

Joana: Certo. Como na maioria dos casos.

Eleonora: Na maioria, ele aparece. E os meus filhos tiveram que depois de adultos criar uma relação com este pai que era um pai ausente no sentido da manutenção.

Joana: Certo.

Eleonora: Do prover.

Joana: E então, tu saísses da cadeia em 74.

Eleonora: Certo.

Joana: Tu tiveste algum contato com o feminismo dentro da cadeia, com leituras feministas…

Eleonora: Não.

Joana:… ou depois?

Eleonora: Não, não. Ao longo da cadeia eu tive… Durante a cadeia? Eu tive muitas reflexões com as minhas companheiras de cadeia…

Joana: Tá.

Eleonora:… uma delas é a Dilma Roussef (atual ministra de Minas Energia)

Joana: uhum.

Eleonora:… que é Ministra das Minas e Energia, e hoje outras que são do PSDB, mas todas feministas, se tornaram feministas…

Joana: Certo, dentro da cadeia elas estavam?

Eleonora: Dentro da cadeia porque nós começamos…

Joana: Fizeram uma espécie de grupo de consciência?

Eleonora: Grupo de reflexão lá dentro…

Joana: Grupo de reflexão.

Eleonora:… por que fomos nós que estamos…

Joana: uhum.

Eleonora:… que fizemos, voltaríamos a fazer sim, mas e o nosso corpo e a nossa sexualidade.

Joana: uhum.

Eleonora: Entendeu?

Joana: E antes disso tu nunca tinhas participado de uma coisa dessa, um grupo de reflexão?

Eleonora: Nunca, nunca, nunca, nunca.

Joana: E tinhas lido em algum momento antes algumas das obras?

Eleonora: Não. Nenhuma, nenhuma. Eu li pela primeira vez em 75…

Joana: Certo. Já estavas fora da cadeia um ano.

Eleonora: Porque eu já saí…é…eu já saí em 74 eu saí em outubro…

Joana: Certo.

Eleonora:… no dia 12, Dia da Criança, eu saí já bem claro que eu era feminista.

Joana: Certo.

Eleonora: E logo que eu saí da cadeia, eu em Belo Horizonte eu fui procurar um grupo de mulheres.

Joana: Esses grupos de consciência?

Eleonora: É, só que era um grupo de lésbicas…

Joana: Certo.

Eleonora:… e eu não sabia. Era um grupo de pessoas amigas minhas…

Joana: uhum.

Eleonora: e que era…era o único grupo feminista que tinha lá.

Joana: Que tinha lá. Uhum.

Eleonora: E eu de cara fui maravilhosamente bem acolhida, e eu me senti muito bem

Joana: Certo.

Eleonora: Me senti muito bem. E então eu recuperando…é…no processo de recuperação minha pós-cadeia…

Joana: uhum.

Eleonora: Porque eu voltei a estudar!

Joana: Ah, legal!

Eleonora: Eu parei de estudar em 68.

Joana: uhum.

Eleonora: Eu parei no quarto ano de Medicina e no quarto de Ciências Sociais.

Joana: Fosse concluir?

Eleonora: Fui, aí eu voltei pra concluir…

Joana: Certo.

Eleonora:…na UFMG, e optei por acabar Sociologia.

Joana: Sociologia.

Eleonora: Porque a Medicina estava um caos…um horror.. eu estava questionando muito e o que eu havia passado na cadeia, me afastou mito da medicina, do cuidado, etc,……

Joana: uhum.

Eleonora:… porque durante a cadeia, eu pós-tortura eu fui…eu fiquei sem andar muitos… uns dois anos e fui fazer…é…

Joana: Tu andavas de cadeira de roda ou de muleta?

Eleonora: De cadeira de roda e de muleta.

Joana: Nossa.

Eleonora: É. E fui… eu tratava no Hospital das Clínicas, e o Hospital das Clínicas de São Paulo estava sob intervenção.

Joana: uhum.

Eleonora: E eu…eles decidiram que eu seria operada da coluna. E aí um ex-companheiro de cadeia que tinha saído, que era médico, descobriu que eu ia ser…

Joana: Operada.

Eleonora:… operada e impediu a cirurgia.

Joana: uhum.

Eleonora: Eu já estava anestesiada.

Joana: Báhhh.

Eleonora: Porque eu não tinha hérnia de disco e eles diziam que eu tinha. Eles iam me aleijar…

Joana: Claro.

Eleonora:…e me tirou. Então isso mexeu muito comigo…

Joana: Certo.

Eleonora:… do ponto de vista de profissão…

Joana: Imagino.

Eleonora: O quê que eu vou fazer com a Medicina?

Joana: uhum, uhum.

Eleonora: Ai que terminei Sociologia, e quando eu fui terminar Sociologia os meus calouros de

Ciências Sociais eram os meus professores.

Joana: Ah!

Eleonora: Então foi muito legal, muito bacana, porque eles… primeiro que eles tinham o maior orgulho de serem os meus professores…

Joana: Certo.

Eleonora:…e eu de estar lá terminando.

Joana: Sentiste entre amigos, no caso?

Eleonora: Entre amigos e tudo. E aí fiquei em Belo Horizonte, terminei, tive meu segundo filho.

Joana: uhum.

Eleonora: E não quis imediatamente me integrar a nenhum grupo de esquerda que tinha…

Joana: Tá.

Eleonora:…como eu não quis até agora.

Joana: Mas te integrasse nesse grupo…

Eleonora: De mulheres.

Joana:…de mulheres?

Eleonora: Não, aí começa a minha trajetória…

Joana: Certo.

Eleonora:…feminista.

Joana: Tu te lembras quando foi que tu foste nesse grupo?

Eleonora: Lembro, foi maio de 75. Aí eu tive…

Joana: 75. Bem no Ano Internacional da Mulher.

Eleonora: É. Aí eu tive o contato com “A Dialética do Sexo” da Sulamita Firestone.

Joana: Era isso que eu queria ouvir.

Eleonora: Me enlouqueceu!

Joana: Como foi que você leu? Você teve o livro na mão? É isso?

Eleonora: Elas me…

Joana: Elas te emprestaram?

Eleonora:… me emprestaram o livro, e eu sai louca e fui para comprar.

Joana: Foste comprar.

Eleonora: E aí elas dizem “Não, compra O Segundo Sexo também”, e eu falei “Ah, aquela bobagem?”, assim.

Joana: Aquela bobagem?

Eleonora: É, porque perto da Sulamita é bobag…

Joana: Certo.

Eleonora:… naquela época. E eu era muito…eu já era muito libertária nessa sentido…

Joana: Certo.

Eleonora: … então eu fui atrás, Minto, desculpa, um equívoco, na minha formação marxista eu li a Alessandra Kolontai…

Joana: Certo.

Eleonora:… muito, a Juliet Mitchel…

Joana: Certo.

Eleonora:…e…. a Alessandra e a Juliet Mitchel.

Joana: Isso quando tu eras estudante?

Eleonora: Estudante e militante. Eu lia muito.

Joana: Certo. Mas não leste como uma feminista? Leste por causa do Partido.

Eleonora: Não. Li como esquerdista. Li como esquerdista. Que queria ler e achava a vida delas fantástica.

Joana: O que tu lesse das duas?

Eleonora: A Alessandra Kolontai eu li “Minha vida” na época, da Sulamita eu li “A Revolução da Psicanálise”, é… não, da Juliet Mitchel eu li “A Revolução da Psicanálise”, e depois eu vim ter um contato que mexeu muito comigo, como eu criticando, mais eu não tinha muitos parâmetros para criticar, foi é a história da família, da propriedade…

Joana: Engels.

Eleonora:… e do Engels.

Joana: Isso foi durante a tua formação de esquerda.

Eleonora: Minha formação.

Joana:… de esquerda? E aí depois…

Eleonora: É. Não, formação comunista.

Joana: Pois é, formação de esquerda, no caso.

Eleonora: De esquerda.

Joana: Quando tu entrasses neste grupo foi que tu tivesses contato com a Sulamita?

Eleonora: Sulamita.

Joana: Tá.

Eleonora: Sulamita é um marco na minha vida.

Joana: Tá bem.

Eleonora: E…

Joana: E comprasse O Segundo Sexo também?

Eleonora. Aí eu comprei O Segundo Sexo …

Joana: E leste em seguida?

Eleonora: Li O Segundo Sexo. Fiquei muito apaixonada …

Joana: Certo.

Eleonora:… também…

Joana: Betty Friedan Não?

Eleonora:…teve… não porque a Betty Friedan…

Joana: É 71 ela aqui no Brasil.

Eleonora: “A Mística Feminina”.

Joana: Isso.

Eleonora: Não, “A Mística Feminina” eu li em 76.

Joana: Certo. Um pouco depois, talvez?

Eleonora: Um pouco depois, quando foi traduzido.

Joana: Sim, mas foi traduzido em 71.

Eleonora: 71? Bem, eu tive acesso…

Joana: Certo. Não lembras quando?

Eleonora: Não, mas foi tudo nessa época de final de 74 até eu entrar para esse grupo…é…75…

Joana: Tu passaste a ter várias leituras.

Eleonora: Eu a ter várias leituras. Reli…

Joana: uhum.

Eleonora… a Alessandra. Reli a Juliet, e já fui mais generosa com elas.

Joana: Certo:

Eleonora: Do ponto de vista de mulher.

Joana: Sim, sim.

Eleonora: E eu fui nesse ni… ai já nessa época eu radicalizei meu feminismo. Eu comecei a militar.

Joana: Onde?

Eleonora: Em Belo Horizonte eu comecei a militar neste grupo.

Joana: Neste mesmo grupo?

Eleonora: É

Joana: O quê que se fazia além de discutir?

Eleonora: Nós discutíamos o corpo…

Joana: Certo.

Eleonora:… discutíamos a sexualidade, eu tive a minha primeira relação com mulher também…

Joana: uhum.

Eleonora: Quer dizer, que foi bastante precoce pra essa…e transava com homem…

Joana: Certo.

Eleonora:…pra minha trajetória.

Joana: Mesmo porque tu também estava com o teu marido eu acho, não estavas?

Eleonora: Sim, sim.

Joana: Estavas. Aham.

Eleonora: Mas nós nunca tivemos esse… e ele era um cara muito libertário. Nós nunca tivemos essa questão de relação…

Joana: Certo.

Eleonora:… muito marginal em Belo Horizonte….

Joana: Sim. A militância em que no sentido que tu estas dando é no sentido de discussão?

Eleonora: No sentido de discussão e de priorizar a minha vida.

Joana: Certo.

Eleonora: Eu deixei de militar em organizações de esquerda…

Joana: Certo.

Eleonora:… e fui militar no feminismo…

Joana: Certo.

Eleonora:… em grupos de reflexão.

Joana: uhum.

Eleonora: Ali junto com esse grupo de mulheres feministas lésbicas.

Joana: uhum.

Eleonora: Ai esse grupo foi se ampliando…

Joana: uhum.

Eleonora:… e se desdobrando em grupos de reflexão, em grupos de criar um jornal, mesmo que fosse um jornal de divulgação mão-a-mão, né?

Joana: E vocês chegaram a escrever isso?

Eleonora: Chegamos a escrever…

Joana: E como é que se chama esse jornal?

Eleonora: “Pensando a mulher”, era um jornalzinho de Belo Horizonte…

Joana: hum…

Eleonora: É.

Joana: Tu não tens ele?

Eleonora: Eu devo ter na minha casa.

Joana: É.

Eleonora: Devo ter uma cópia. Depois em 76 eu começo o processo de articulação mais nacional com o feminismo…

Joana: Tá.

Eleonora:… via Belo Horizonte 75, 76.

Joana: De que jeito?

Eleonora: Começo com o S.O.S Mulher do…

Joana: Tu começasses a participar do S.O.S Mulher lá dentro de Belo Horizonte, é isso?

Eleonora: S.O.S. de Belo Horizonte fazendo a ponte com o S.O.S Mulher de São Paulo.

Joana: Tá.

Eleonora: Ai que eu conheço a Jacira, a Schuma…

Joana: Diga o nome completo delas, por favor?

Eleonora: Jacira Melo, Maria Aparecida Schumarer, a Teresa Verardo, um reencontro com a Iara Prado, que era minha ex-companheira de cadeia…

Joana: Certo.

Eleonora:… que hoje é tucana, mas muito feminista com a Bete Vargas…

Joana: Certo.

Eleonora:… que é de Porto Alegre. É…com a… já estabelecendo um vínculo muito forte com a Celina Albano em Belo Horizonte, que hoje é secretária de cultura da prefeitura. E aí nesse processo entra a discussão do Ano Internacional da Mulher…

Joana: Certo.

Eleonora:… em 75. E aí começam os encontros feministas.

Joana: Tu participaste?

Eleonora: Participei de todos eles. O de Belo Horizonte…não…aí participei do de Valinhos que foi um boom do ponto de vista de levantar as questões da sexualidade, o de Belo Horizonte que foi na faculdade de Filosofia, depois o do Rio de Janeiro, e aí eu me mudo final de 77 princípio de 78, e eu me separo, e nessa época eu trabalhava em Belo Horizonte na…num órgão do governo estadual por ajuda… que ajuda assim que mesmo eu sem ter ainda o processo de anistia…

Joana: uhum.

Eleonora:… eu fui contratada como técnica de um órgão superintendente de planejamento urbano, o XXX, então eu trabalhava lá. E aí no início de 78 eu já tinha me separado do meu ex-marido e resolvo sair de Belo Horizonte. Aí quando eu saio de Belo Horizonte eu busco um lugar bem longe porque eu não queria mais ser referência para a esquerda.

Joana: Entendi.

Eleonora: Porque é uma carga muito pesada.

Joana: Imagino.

Eleonora: Muito pesada.

Joana: Todo mundo te espia.

Eleonora: Me espia e me demanda.

Joana: E cobra.

Eleonora: Me chupa e me demanda, e eu não queria mais aquilo naquele momento. Eu queria viver a minha individualidade, a minha sexualidade…

Joana: uhum.

Eleonora:…e eu não podia. Então eu procurei isso sou muito amiga, por incrível que pareça, a vida inteira do Frei Beto e pedi a ele pra me encontrar um lugar o mais longe possível de Belo Horizonte. Aí ele falou “Eu tenho dois lugares onde a Diocese é muito aberto, em Vitória com Dom Luís ou em João Pessoa com Dom José Maria Pires. Eu falei “Eu quero João Pessoa”, quanto mais longe melhor. Não tinha nem avião, eu fui de ônibus gastei 58 horas.

Joana: Foste com teus filhos?

Eleonora: Com os dois filhos.

Joana: Sim.

Eleonora: E João Pessoa foi… eu digo que João Pessoa de 78 a 84 foram anos fundamentais na minha vida e no meu reencontro comigo mesma.

Joana: uhum.

Eleonora: Porque eu cheguei lá sem cartão de apresentação e sem…

Joana: A Frei Beto?

Eleonora: É… mas assim, eu cheguei, eu. Eu tive que construir minha vida.

Joana: uhum. Fosse trabalhar?

Eleonora: No Centro de Direitos Humanos da Arquidiocese da Paraíba.

Joana: Tá legal.

Eleonora: E aí eu comecei a trabalhar com as mulheres rurais de Alagamar, que era o que eu queria, na época muito pesado trabalhar com os movimentos de trabalhadoras rurais, e comecei , logo depois retomei um grupo, a minha atividade de grupo de reflexão feminista com algumas mulheres em João Pessoa. A maioria de fora de João Pessoa e duas de dentro…

Joana: uhum.

Eleonora:… de João Pessoa. Então nós criamos o primeiro grupo feminista lá em João Pessoa chamado

Maria Mulher.

Joana: Olha só!

Eleonora: É. Esse Maria Mulher…

Joana: Já ouvi falar.

Eleonora:… foi um grupo fortíssimo que teve desdobramento, hoje o CUNHA é um desdobramento dele. Críamos esse grupo, esse grupo foi fortíssimo…

Joana: Também teve um jornal?

Eleonora: Não.

Joana: Não chegou a ter?

Eleonora: Esse grupo não chegou a ter. Esse grupo chegou a ter várias publicações chamadas Maria Mulher…

Joana: É?

Eleonora: É. Esse termo de história em quadrinho…

Joana: uhum.

Eleonora: E…

Joana: Tipo divulgação?

Eleonora: É, da questão da mulher.

Joana: uhum. Divulgação da questão da mulher.

Eleonora: É. Nós trabalhávamos com a questão da violência, contra a violência contra a mulher. Fizemos uma enorme…um enorme movimento de visibilidade contra o assassinato de uma poetisa lá chamada Violeta formiga que foi assassinada por um cara de classe alta, seu ex-marido…

Joana: uhum.

Eleonora:… senhor do engenho rural e da alta burguesia. E nós fomos pra rua. Fomos pra “quem ama não mata” naquela insígnia que o Brasil estava…

Joana: Estás falando da Diniz?

Eleonora: É. “Quem ama não mata” e O silêncio é cúmplice da violência, e aí começamos a nos articular dentro do Nordeste.

Joana: Tá.

Eleonora: Era o S.O.S Mulher…o S.O.S Corpo e um grupo de reflexão que tinha em Natal…

Joana: uhum.

Eleonora:… de auto-reflexão, e o Maria Mulher o quê que nós fazíamos? Nós fazíamos auto-exame de colo de útero, auto-exame de mama…

Joana: O que tu fez de Medicina estava ajudando?

Eleonora: Estava ajudando muito. Trabalho com violência contra a mulher e trabalho de sensibilização e cursos de educação pra mulheres da periferia e mulheres rurais.

Joana: Vocês tinham apoio financeiro?

Eleonora: Nenhum.

Joana: Quer dizer, por conta própria.

Eleonora: Eram grupos de auto-ajuda. Naquela época não tinha as agências financiadoras.

Joana: Não tinha é.

Eleonora: Grupos de auto-ajuda. Com esse grupo nós colocamos o feminismo paraibano no nível nacional, e ele foi se fortalecendo muito, esse grupo. Por causa desta militância toda… aí eu feminista, eu tive minha casa em João Pessoa incendiada.

Joana: Nossa!

Eleonora: É.

Joana: Isso foi em que ano?

Eleonora: Foi em 81.

Joana: 81.

Eleonora: Foi durante a primeira greve de professores, eu era da ANDES e também era feminista.

Joana: A essas alturas tu já eras professora de novo?

Eleonora: Ai eu entro para a Universidade Federal da Paraíba como colaboradora 80 que existia…

Joana: Tu ainda não tinhas mestrado?

Eleonora: Não. Eu fui fazer…fiz o meu mestrado na Paraíba, em Sociologia do Trabalho…

Joana: Depois de 81?

Eleonora: É. Terminei em 82, 83…aí encontro na Paraíba a Lourdes Bandeira que já estava na Paraíba também. E aí eu entro para a Universidade…

Joana: Certo.

Eleonora:…eu faço concurso e entro pra Universidade.

Joana: uhum.

Eleonora: Não, eu entrei pra Universidade mais cedo. Eu entrei pra Universidade em 78, eu chego em 78. E nesse momento da primeira greve com as questões feministas, a minha participação em… (toca um celular)

Eleonora: Só um minutinho.

(Interrupção da gravação)

Joana: Tu estavas dizendo que entraste na Universidade pra dar aulas como…

Eleonora: Colaboradora.

Joana:…colaboradora em 78.

Eleonora: Em 78. E na greve de 82, que fomos todos incorporados, eu entro para o quadro permanente da Universidade.

Joana: Ah tá.

Eleonora: Entendeu? Mas eu dava aula até naquele contrato de colaboradora 80.

Joana: uhum.

Eleonora:…que tinha nas universidades federais. Foi durante a primeira greve nacional, eu era do comando de greve , eu estava voltando de Olinda com o Francisco Julião e quando cheguei , minha casa havia sido destruída por uma bomba…

Joana: Certo.

Eleonora:…e voltei junto com ele. Eu dei carona pra ele, e quando eu chego a minha casa estava incendiada.

Joana: Nossa. E foi incêndio criminoso?

Eleonora: Foi criminoso, teve processo, teve…

Joana: Nossa.

Eleonora: Foi.

Joana: Não descobriram quem era?

Eleonora: Não, mas há ainda suspeitas bem…bem claras que foi um latifúndiário.

Joana: Certo.

Eleonora: Exatamente por causa, não só do meu trabalho feminista, mas meu trabalho de mulheres com as trabalhadoras rurais.

Joana: Certo.

Eleonora: E aí é que eu conheço a Margarida Alves, a Penha, que morreu com a Bete Lobo, e eu passo a ter uma…elas passam a ter uma importância muito grande na minha vida e vice-versa.

Joana: uhum, uhum.

Eleonora: E aí eu…

Joana: Fala, e daí tu fosse fazer mestrado…

Eleonora: Não, eu fiz mestrado na Paraíba.

Joana: Na Paraíba mesmo.

Eleonora: Na Paraíba mesmo.

Joana: Isso em 81, 82…

Eleonora: Eu terminei de 82 para 83.

Joana: Certo.

Eleonora: Meu mestrado foi O Feminismo:o reinventar da educação…

Joana: Certo.

Lenora:…a partir de práticas feministas.

Joana: E isso foi na Educação?

Eleonora: Não, foi na Sociologia.

Joana: Na Sociologia.

Eleonora: Na Sociologia do Trabalho.

Joana: Tá.

Eleonora: Eu fiz com um grupo de mulheres da periferia…

Joana: Tá.

Eleonora:…em João Pessoa mesmo.

Joana: Tá.

Eleonora: Depois em 84 eu venho pra São Paulo fazer doutorado na Ciência Política, já articuladíssima…

Joana: Imagino.

Eleonora:…com o feminismo, e com linhas de pesquisa bem definidas do ponto de vista feminista.

Joana: Quem é que te orientou em São Paulo?

Eleonora: Em São Paulo foi a Maria Lúcia Montes, uma antropóloga. Embora na época ela fosse da Ciência Política. E em 84 eu faço, entro para o doutorado com uma tese que era sobre Direitos Reprodutivos e Direitos Sexuais a partir…é…a construção da cidadania a partir do conhecimento sobre o próprio corpo.

Joana: Isso por conta do teu trabalho com as mulheres? Certamente, claro.

Eleonora: Por conta do meu trabalho com as mulheres em uma favela chamada Favela Beira-Rio.

Joana: Certo.

Eleonora: Lá em João Pessoa.

Joana: uhum.

Eleonora: Que hoje é um bairro. Então nesta época eu fiquei quatro anos em São Paulo fazendo a tese e voltando a João Pessoa

Joana: Por que os meninos ficaram lá?

Eleonora: Comigo em São Paulo.

Joana: Em São Paulo.

Eleonora: Em São Paulo. E aí fui coordenadora do grupo de Mulher e Política da ANPOCS, do GT.

Joana: uhum.

Eleonora: Dois anos…dois mandatos seguidos, e voltei pra João Pessoa. Aí em São Paulo eu integrei um grupo do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. Eu a Maria José Oliveira, a Vera Soares, a Tereza Verardo a Margareth Lopes, a Magali Marques, críamos o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, que é uma ONG, para atender as mulheres de forma diferenciada com respeito a… E nesse período estive também pelo Coletivo fazendo um treinamento de aborto na Colômbia.

Joana: Certo.

Eleonora: O Coletivo nós críamos em 95…

Joana: Como é que era esse curso de aborto?

Eleonora: Era no Clínicas em Aborto…a gente aprendia a fazer aborto…

Joana: Aprendia a fazer aborto.

Eleonora: Com aspiração AMIU

Joana: Com aquele…

Eleonora: Com a sucção.

Joana: Com a sucção. Imagino. Uhum.

Eleonora: Que eu chamo de AMIU . Porque a nossa perspectiva no Coletivo, a nossa base…

Joana: Que as pessoas se auto…auto…fizessem

Eleonora: Auto-capacitassem, e que pessoas não médicas podiam…

Joana: Claro.

Eleonora:…lidar com o aborto.

Joana: Claro.

Eleonora: Então vieram duas feministas que eram clientes, usuárias do Coletivo, as quais fizeram o primeiro auto-exame comigo. Então é uma coisa muito linda…

Joana: uhum.

Eleonora:…muito bonita, descobrirem o colo do útero e…

Joana: uhum.

Eleonora:…ter uma pessoa que segura na mão.

Joana: Certo.

Eleonora: E elas dão esses depoimentos em vários encontros. E depois em São Paulo, em… …em 89…

Joana: Já devias ter defendido a tese a essas alturas?

Eleonora: Não, eu defendi em 90.

Joana: Defendesse em 90.

Eleonora: 90. Em dezembro de 90. Eu voltei pra Recife. Voltei pra João Pessoa e morei em Recife.

Joana: uhum.

Eleonora: Trabalhei tanto no Maria Mulher e na volta, em 90, eu pedi transferência pra Universidade Federal de São Paulo, a então Escola Paulista de Medicina, porque meus filhos queriam ficar em São Paulo…

Joana: Certo.

Eleonora: Eu pedi transferência….

Joana: E foi tranqüilo?

Eleonora: Não, foi difícil transferência na época do Collor.

Joana: Imagino.

Eleonora: E ai eu me…eu fui uma das que teve direito de transferência garantida porque eu vim liberada com a seguinte questão, se o Collor ganhar a presidência, e assumir e exigir que todos retornem, a sua transferência é será dada.

Joana: uhmm.

Eleonora: Ele exigiu, ele ganhou e exigiu e a minha transferência foi incentivada. Eu volto…eu

venho…aí nós críamos em 90 a Rede Nacional Feminista de Saúde, em Itapecerica da Serra

Joana: Certo.

Eleonora: E…dentro da Escola Paulista nós temos um núcleo.de estudos e pesquisas em saúde e realções de gênero. Eu não tinha um Departamento de Medicina Preventiva que me acolhesse ainda, aí eu fiz a escolha de ir para o Departamento de Enfermagem na perspectiva de contribuir com a melhoria da qualidade de assistência das mulheres.

Joana: uhum.

Eleonora:…na ponta dos serviços. Na Escola Paulista eu tive…e nós críamos o Núcleo de Estudo em Saúde da Mulher e Relações de Gênero, e junto com outro grupo de mulheres feministas, inclusive a Margareth Rago, a Miriam Grossi, e a Magda Neves, nós fizemos parte de um núcleo que com um recurso da Ford a partir de um encontro de São Paulo, da Fundação Carlos Chagas…

Joana: Certo.

Eleonora:…cria a REDEFEM, cria a Revista de Estudos Feministas…

Joana: Sim.

Eleonora:…e cria esse grupo que ia pensar o ensino feminista através dos núcleos de estudos.

Joana: uhum.

Eleonora: Esse grupo era composto por essas pessoas…

Joana: Sai aquele livro inclusive, “Questão de Gênero”…

Eleonora Exatamente. Exatamente.

Joana: uhum.

Eleonora: E eu continuo com duas linhas….hoje eu sou professora livre docente, do Departamento de Medicina Preventiva com uma tese que se transformou em livro, eu fiz meu pós-doutorado em Milão, na Itália, na Faculdade de Medicina na área de Saúde, Trabalho e Gênero.

Joana: uhum.

Eleonora: Hoje eu coordeno um diretório de pesquisa que é Saúde e Relações de Gênero no CNPq. Eu sou pesquisadora 1B do CNPq, e toda a minha atividade de pesquisa é na área de Saúde e Relações de Gênero, e Saúde da Mulher, com um olhar feminista.

Joana: uhum.

Eleonora: Tem um impacto disso na construção do conhecimento da saúde.

Joana: uhum.

Eleonora: E…no ativismo eu faço parte da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivo, uma das fundadoras, e até novembro eu ocupo lugar de relatora das Nações Unidas do Direito a Saúde no Brasil.

Joana: Certo.

Eleonora: Fui indicada pela Rede…

Joana: Certo.

Eleonora:…e selecionada curricularmente. E toda a minha produção, tanto acadêmica como o meu pé na militância, no ativismo feminista, ele se dá via duas grandes linhas de pesquisa que é Feminismo, e Saúde e Relações de Gênero. Dentro da Saúde e Relações de Gênero tudo o que diz respeito a Direitos Reprodutivos e Sexuais, Saúde e Trabalho.

Joana: Certo.

Eleonora: E Violência. Hoje eu faço parte da coordenação de um dos serviços de violência que atende mulheres vítimas de violência sexual, que é o da UNEFESP, o da Casa de Saúde, atendemos mulheres que foram vítimas de violência sexual e fazemos o aborto nesses casos.

Joana: Certo.

Eleonora: E também hoje faço parte das Jornadas Brasileiras pela Legalização do Aborto,no grupo de coordenadoras.

Joana: uhum, uhum. Essa é tua militância atual?

Eleonora: É minha militância atual.

Joana: Tu também fazes parte da REDEFEM eu acho.

Eleonora: Faço, faço parte da REDEFEM, exatamente.

Joana: Estás em várias frentes.

Eleonora: Sou consultora de várias.Revistas e Agências de Fomento..

Joana: Imagino.

Eleonora: Capes, CNPq, barará…barará…barará…Fundação Carlos Chagas.

Joana: uhum.

Eleonora: Agora esses últimos dois anos eu concentrei nesse trabalho de relatoria da ONU…

Joana: uhum.

Eleonora:…e onde foi fantástico porque nós definimos…isso até eu gostaria de dizer, nós definimos como eixo estruturador dessa relatoria, são seis relatorias pra Educação, a Saúde, Água, Terra e Alimentação, Moradia, Trabalho e Meio Ambiente…

Joana: uhum.

Eleonora:… e só sou eu de relatora, o resto tudo é homem. E na relatoria da saúde nós definimos como os dois grandes eixos estruturadores dos casos paradigmáticos de violência a questão da saúde da mulher e a saúde no trabalho. Na saúde da mulher nós visitamos vários municípios do interior de Recife onde a morte materna é altíssima pra sair do eixo Rio, São Paulo e de Minas Gerais, e a questão do aborto.

Joana: uhum.

Eleonora: Visitamos várias maternidades: duas grandes maternidades do Rio de Janeiro, duas maternidades do Rio, duas de Belo Horizonte, uma de Fortaleza, onde nós tínhamos recebido notícia que mulheres tinham morrido por aborto e as profissionais tinham sido presas. Na do Rio mais grave, que a profissional algemou a mulher na cama e chamou a polícia.

Joana: Meu Deus!!!

Eleonora: É. Pra prender. Isso foi há seis meses. E a outra Saúde e Trabalho são questões de contaminação e da questão de método, e essas denúncias são levadas pra ONU. Nós vamos agora para Genebra, como fomos no ano passado. E duas dela foram para a Organização dos Estados Americanos para responsabilizar o Estado por essas relações. O Estado brasileiro, é uma questão…a minha questão feminista faz parte da minha vida integral.

Joana: Eu tô vendo.

Eleonora: Completamente.

Joana: Tu te lembras de mais alguma coisa? Eu acho que eu esgotei as nossas questões.

Eleonora: Eu completei?

Joana: Uhum, completaste.

Eleonora: A não ser que você tenha…

Joana: Bom, eu iria te perguntar se tu autorizas a divulgação da entrevista. Eu vou te mandar de qualquer maneira a transcrição, se tu quiser acrescentar ou tirar alguma coisa.

Eleonora: Quero. Quero. E pra mim, uma questão que eu acho que é importante, é dizer que hoje eu tenho 60 anos e sou avó.

Joana: uhum.

Eleonora: E eu digo que a questão feminista é tão dentro de mim, e a questão dos Direitos Reprodutivos também, que eu sou avó de uma criança que foi gerada por inseminação artificial na mãe lésbica.

Joana: uhum, uhum.

Eleonora: Então eu digo que sou avó da inseminação artificial…

Joana: (risos)

Eleonora:…alta tecnologia reprodutiva.E aí eu queria colocar a importância dessa discussão que o feminismo coloca, no sentido do acesso às tecnologias reprodutivas.

Joana: Certo.

Eleonora: Entendeu? E eu diria…eu fiz dois abortos, e também digo que sou avó do aborto, também porque por mim já passou.

Joana: Sim

Eleonora: Também já passou nesse sentido. E diria que eu sou uma mulher muito feliz e muito realizada, e eu pauto em duas questões: na minha militância política e no feminismo.

Joana: Certo. A tua história, né?

Eleonora: Que é a minha história de vida e eu acredito que os sujeitos são construídos a partir de sua própria história.

Joana: Claro. Tá certo.

Eleonora: Tô falando isso pra historiadora…

Joana: (risos). Tá certo. Bom, Eleonora eu te agradeço bastante, e se a gente tiver uma outra questão a gente volta a conversar.

Eleonora: Sem dúvida. Estou a disposição.

*Transcrita por Joana Borges (Conferida por Luciana Fornazari Klanovicz)

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/entrevista-historica-com-eleonora-menecucci

Enviada por José Carlos.

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