Vozes na escuridão

Relatamos a história de três mulheres que sofreram agressões físicas e psicológicas dos seus companheiros e, com muita coragem, decidiram dar um basta aos abusos. Elas percorreram – e ainda percorrem – um caminho difícil, mas sem volta

Maria Júlia Lledó e Maria Fernanda Seixas

A favor de histórias como as de Fátima, Denise e Carolina, diversas entidades sociais e governamentais despertaram para políticas públicas de assistência a vítimas da violência. Mesmo que muitas delas ainda retirem ou arquivem as denúncias, retornem à casa dos companheiros ou entrem em novos ciclos de violência, o fato é que hoje há mecanismos para que consigam se restabelecer longe do agressor. O auxílio conta com psicólogos preparados para enfrentar essas situações, assistentes sociais, atendimento jurídico, além de assistência pedagógica para os filhos.

Soma-se a essas medidas a última iniciativa da Secretaria de Estado da Mulher do DF, em parceria com a Secretaria de Trabalho. Mais de 30 abrigadas e ex-abrigadas se inscreveram no programa Qualificopa, que vai abranger um total de 2.352 vagas — para mulheres e homens —, nas áreas de camareira, telemarketing, vendedor, webdesigner, entre outras, para atender a demanda de grandes eventos esportivos que passarão por Brasília nos próximos anos. “Trabalhamos a perspectiva de fortalecer a mulher vítima de violência e a acompanhamos. Assim, garantimos condições para que possa assumir a vida com dignidade”, resume a secretária da Mulher, Olgamir Amâncio.

O foco na inserção da mulher no mercado de trabalho é uma importante ferramenta para o futuro da vítima de agressão. Porém, não é uma solução indefectível. Mulheres independentes financeiramente também sofrem violência doméstica, com a diferença de que — a priori — não dependem da máquina do Estado para reconstruírem suas vidas. A única certeza que as vítimas têm é de que denunciar ainda é o melhor caminho. Não só para que o agressor saia da obscuridade, mas também para que possam retomar o controle da própria vida.

Lei Maria da Penha — Farmacêutica-bioquímica, a cearense Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de um marido agressivo e sofreu duas tentativas de homicídio. Graças ao empenho dela, o governo federal brasileiro sancionou a Lei nº 11.340/2006 para evitar qualquer tipo de tolerância aos maus-tratos sofridos pelas mulheres. Neste ano, a lei completa seis anos de vigência.

Ciclo da violência — O homem agride, pede perdão, jura que não vai bater de novo. Ela acredita que ele vai mudar e as coisas ficam tranquilas por um tempo. Experimenta-se uma lua de mel até que os problemas se intensificam e ocorre mais uma vez a agressão. Dessa vez, mais grave. Segundo o psicólogo Luiz Henrique Aguiar esse é um ciclo em espiral, em que há um aumento de intensidade. “Como consequência, pode chegar ao ponto em que ela perceba que ele não vai mudar, tente se separar e aí ela passa a correr risco de ser assassinada pelo agressor. Os crimes passionais acontecem, na maioria das vezes, nessa fase”, acrescenta o especialista.

*Todos os nomes citados nesta reportagem são fictícios

 

 (Fernando Lopes/CB/D.A.Press)

 

Capítulo I — Infância roubada
“Briguei com minha mãe e meu pai para ficar com ele aos 13 anos. Não namorei nem um mês e já fomos morar juntos. Pensava que o conhecia, até que chegou a primeira vez que ele levantou a mão para mim. Não falei nada. Apanhei desde os 13. Eu não podia sair de casa. Ele sempre foi violento, com droga ou sem droga. Não importava o dia nem a hora. Batia sem motivo: com ciúme ou sem ciúme. Logo fiquei grávida. Mesmo assim, ele me bateu. Não importava se eu ia perder o bebê ou não. Quando eu ganhei o Fábio*, ele nasceu com um probleminha na cabeça. Minha sogra e o namorado dela quiseram tirar meu filho e conseguiram. Assim que ele saiu do hospital, ele foi direto para a casa dela. Entrei na Justiça e consegui pegar o Fábio de volta quando ele tinha 6 meses. Eu ainda estava com o pai dos meus filhos porque, quando a gente gosta, fica naquela dúvida: separo ou não? Tive outro filho, o Tadeu*. Com ele foi a mesma coisa. Quando eu estava grávida, ele me jogou no chão e quase perdi o neném. Ele nasceu de sete meses, nasceu branco e prematuro, e ele levantou a mão para o menino. Não quis dar meu filho (para a sogra) e ele meu bateu. Fomos para a casa da mãe dele e ele me trancou no quarto da irmã, me bateu até sair sangue do meu nariz e sujou todo meu vestido. Quando ele saiu do quarto, vi o celular da irmã dele e tentei ligar para minha tia. Não consegui falar com ela, nem com minha mãe. Saí do quarto e fui embora com ele, caladinha, fingindo que nada tinha acontecido. Minha sogra me falou: ‘Você não vai pegar seu filho?’ Respondi: ‘Não vou fazer nada não. Tá tudo bem’. Minha vizinha me viu toda suja de sangue e ligou para a polícia. Quando a polícia apareceu, eu falei a verdade. Meu vacilo foi não ter mostrado meu vestido porque, quando eu ia mostrar, minha sogra tomou o vestido de mim. Não adiantou. Chegando na delegacia, fiz a ocorrência. A polícia chamou ele, a mãe e a irmã. Eles negaram tudo. Foi aí que falaram que o pai dos meus filhos ia ficar detido. Depois da ocorrência, falaram para eu ir para minha casa porque dava tempo de pegar meus filhos. Não me preocupei com mais nada. A única coisa que eu queria era os meninos. Peguei uma muda de roupa e fui para a casa da minha tia. Me escondi lá até ir com a minha mãe para a Delegacia da Mulher e para o Juizado de Menores. Depois, fui para a Casa Abrigo. Agora, ele está que nem um louco atrás de mim, mas estou segura. Estou pensando no que eu vou fazer da minha vida, porque agora eu sou a mãe e o pai deles. Quando eu sair daqui, não vou voltar para ele. Já sofri demais. Agora, quero estudar, trabalhar, passar coisas boas para meus filhos. Mas minha vida já mudou muito: não apanho mais e meus filhos não correm o risco de ficar viciados em crack. O que me dói mais é que meus filhos vão ver os amiguinhos com o pai e vão se perguntar: ‘Cadê meu pai?’. Eu posso tentar dar o amor de pai para eles, mas não vou conseguir porque é totalmente diferente do amor de mãe.”
Fátima*

 

 (Fernando Lopes/CB/D.A.Press)

 

Capítulo 2 — Um dia depois do outro
Carolina* estava no último ano do ensino médio, perto de prestar o vestibular para o curso de psicologia. Morava com os pais, tinha um carro próprio, não precisava cozinhar, lavar, nem cuidar da casa. Sua única obrigação era estudar e tirar boas notas. Até que, dentro de um contexto familiar de brigas, que culminaram na separação dos pais, ela saiu de casa para morar com o namorado. Na época, tinha 18 anos e hoje ela diz que só não se arrepende da atitude rebelde da adolescência porque carrega nos braços Daniel*, de 2 anos, e Fernanda*, de apenas 5 meses. Aos 23, Carolina minimiza a situação grave pela qual passou porque não foi agredida fisicamente. Mas não houve um dia em que, psicologicamente, ela não se sentisse mutilada.

Constantemente humilhada pela sogra e pelo marido, ela tinha o mundo restrito a um cômodo de poucos metros quadrados. Naquele espaço, vivia com os filhos. O marido se limitava a trazer a comida para a casa, mas nunca se sentou com Carolina para uma única refeição ou para conversar. “Ele não quis deixar de ser filho para ser marido. Queria ter os dois papéis, mas não conseguiu. No quarto, ele só dormia. O resto do tempo, ficava com os pais”, relata.

Recolhida, ela enfrentava as críticas da sogra. Ela ainda dizia ao neto, quando ele saía do quarto da mãe, que estava livre e deveria aproveitar a “liberdade condicional”. Privada de amigos e da conclusão do ensino médio, porque o marido considerou inapropriadas as companhias da esposa, e as aulas noturnas inconvenientes para a dinâmica da casa, Carolina se encolhia cada vez mais. Tampouco podia trabalhar.

Cogitou a hipótese de voltar para a casa da mãe, que agora morava com o namorado, ou do pai, que também tinha outra companheira. “Como eu saí de casa sem dar satisfação, meus pais abriram mão de mim. Também discuti com o namorado da minha mãe porque ele começou a bater nos meus irmãos e meu pai nunca bateu na gente. Voei em cima dele, brigamos feio, e minha mãe pediu para eu não voltar”, recorda.

Há menos de um mês, cansado da discórdia entre a mãe e a mulher, o marido de Carolina chegou em casa, brigou com ela e mandou que ela pegasse as crianças e uma trouxa de roupas. Largou mulher e filhos na rua, próximo à antiga residência do pai de Carolina. Desesperada, sem saber para onde ir, ela pediu a ele pelo menos algum dinheiro para alugar um espaço, onde moraria com os filhos. “Até porque quando nos juntamos, vendi meu carro para ajudar a comprar as coisas da casa. Mas ele me falou: ‘O dinheiro do seu carro pagou esse tempo todo que passei vivendo com você’. E foi embora.”

Com uma criança de colo e outra chorando de fome, Carolina viveu seu pior pesadelo: não ter para onde ir nem o que comer. “Me vi sem chão, porque eu não podia ir para a casa do meu pai, não podia ir para a casa da minha mãe, então, o que ia fazer? Falei com uma assistente social e ela me falou da Casa Abrigo. Fui então para a delegacia, fiz a ocorrência e, de lá, fui para a Casa Abrigo”, lembra. A princípio, Carolina pensava se tratar de um galpão frio, repleto de colchões espalhados pelo chão, banheiro sujo e nenhuma assistência para as crianças. Mas não foi isso que experimentou.

Há pouco mais de uma semana, Carolina está abrigada em um espaço destinado às mulheres em situação de risco, seja por ameaça de morte feita pelo companheiro ou, no caso dela, por não ter para onde ir. “Foi como se acendessem uma luz. Comecei a ver que há uma solução para mim. Me sinto mais forte para seguir em frente e cuidar dos meus bebês. Sem precisar relembrar o que eu passei.”

Uma casa só para elas

 (Fernando Lopes/CB/D.A.Press)

Construída no DF em 1993, a casa é um local que dá garantia de defesa e proteção às mulheres e às meninas vítimas de violência doméstica e sexual que correm o risco de morte. O sigilo da localização é para segurança das abrigadas. Tanto que, a cada dois anos, a Casa Abrigo deve mudar de lugar. Nem mesmo a família das mulheres e crianças que lá estão após encaminhamento da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) sabem o endereço do espaço. As mães e os filhos — meninos até 12 anos — permanecem na instituição por até 90 dias. Até novembro de 2011, foram atendidas um total de 6.113 pessoas (entre mulheres e crianças), segundo levantamento da Secretaria de Estado da Mulher do DF.

Com capacidade para atender até 60 pessoas, o espaço tem 10 suítes, piscina, área para lazer e prática esportiva, refeitório, sala com televisão, além de acompanhamento psicológico, pedagógico, jurídico e assistência social. As abrigadas também têm prioridade no sistema de saúde, transporte e segurança para locomoção quando necessário. Os filhos com idade escolar também são matriculados no colégio mais próximo, para onde vão em transporte da instituição.

Coordenadora do programa de abrigamento da Secretaria de Estado da Mulher do DF, a psicóloga Karla Valente explica que o atendimento oferecido pelos profissionais é de suma importância para que as vítimas de violência doméstica possam se reinserir na sociedade. “Ao longo desse período na Casa Abrigo, elas têm contato sistemático com psicólogos. Aos poucos, elas vão se abrindo. De início, a gente dá muito mais colo e escuta. Nosso trabalho é melhorar a autoestima delas e, quando fazemos terapia em grupo, não abordamos temas que vão deixá-las ainda mais para baixo. Elas precisam entender que existe vida após o abrigamento, que podem se inserir no mercado de trabalho. O abrigamento é um espaço para elas se fortalecerem, se reerguerem e começarem uma nova vida.”

Tire suas dúvidas
Quais as principais formas de violência praticadas contra a mulher?
– Violência física: qualquer ato que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
– Violência psicológica: qualquer ato que lhe cause dano emocional e diminuição de autoestima;
– Violência sexual: qualquer ato que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada;
– Violência patrimonial: qualquer ato que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos;
– Violência moral: qualquer ato que configure calúnia, difamação e injúria.

O que deve fazer uma mulher vítima de agressão?
Ligar para a Central de Atendimento à Mulher (180), acionado de qualquer terminal telefônico, 24 horas, todos os dias da semana. O atendimento informa e orienta as mulheres quanto ao que fazer. A mulher também pode comparecer à delegacia mais próxima, registrar a ocorrência e solicitar as medidas protetivas de urgência. Ela também pode procurar, no caso do DF, os centros de referência de Atendimento à Mulher (na antiga Rodoferroviária ou no Palácio do Buriti, 10º andar).

Após o registro na Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam), a vítima estará integralmente protegida pela Lei Maria da Penha?
Na esfera policial, a vítima vai requerer as medidas protetivas, cabendo ao juiz apreciá-las em 48 horas, após o recebimento. Elas somente produzirão efeito após apreciação e determinação judicial. A partir daí, o agressor, caso as descumpra, terá praticado crime de desobediência e estará sujeito a ter decretada sua prisão preventiva. Entre as medidas protetivas de urgência estão: suspensão da posse ou porte de armas; afastamento do lar ou da convivência com a ofendida; proibição de aproximar-se ou fazer qualquer meio de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas; restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, entre outras determinações. Além das medidas protetivas, a vítima poderá imediatamente ser encaminhada à Casa Abrigo. No DF, o encaminhamento das mulheres é realizado pela Deam, após o registro do boletim de ocorrência contra o agressor.

Qual é o procedimento policial após o registro da ocorrência? O agressor será preso?
Depende da situação. Ao verificar-se situação de flagrante de delito, o agressor será autuado e encaminhado, após o procedimento, à carceragem do Departamento de Polícia Especializada e, posteriormente, ao sistema penitenciário, ficando à disposição da Justiça. Há casos em que a lei permite pagamento de fiança. Não sendo caso de prisão em flagrante, o fato será registrado, a vítima, as testemunhas e o agressor serão formalmente ouvidos, e colhida representação ou requerimento da ofendida, quando houver. Todos os antecedentes criminais do autor serão pesquisados e juntados ao procedimento. O conjunto dessas diligências irá instruir o inquérito policial.

Como a mulher que depende financeiramente do seu agressor deve agir quando enfrentar situações de violência doméstica e familiar?
O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais dos governos federal, estadual e municipal. Entre outras medidas, o juiz pode determinar a recondução da ofendida e a de deus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida, entre outras medidas.

Pode um terceiro registrar a ocorrência em casos de violência contra a mulher ou apenas a vítima pode fazê-lo?
Nos crimes de ação pública, qualquer pessoa pode noticiar uma violência. Nos crimes de ação pública condicionada à representação da vítima, a notícia-crime de terceiro só terá prosseguimento se a vítima também representar contra o agressor. Nos crimes de ação privada — tais como crimes de injúria, calúnia, difamação —, somente a vítima poderá noticiar.

(Fontes: Cartilha Lei Maria da Penha & Direitos da Mulher, de 2011, org. Ministério Público Federal/Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC e Secretaria de Estado da Mulher do DF)

 

 (Fernando Lopes/CB/D.A.Press)

 

Capítulo 3 — Começar de novo
Denise* levantou às 4h da manhã. Como de costume, preparou a marmita do marido e arrumou a mesa do café da manhã. Carlos* acordou, se vestiu, comeu, deu um beijo na mulher e foi para o serviço. Enquanto recolhia a louça suja da mesa, a mulher de 40 anos repetia em sua cabeça, como um mantra, que nunca mais seria forçada a se deitar com ele. O cheiro do café preto recém-passado ainda passeava pelos cômodos da casa quando Denise abriu o armário e começou a pôr suas roupas e as dos filhos em sacolas plásticas. Acordou as crianças, as vestiu e avisou que iam embora. Denise fechou a porta de ferro fundido com o cadeado, trancou o portão e, com as crianças, caminhou pelas ruas de barro até a rodovia, por cerca de 45 minutos, até chegar à delegacia mais próxima. Depois de 10 anos como vítima de violência doméstica, aquela era a primeira vez que denunciava seu marido e algoz.

Na delegacia, Denise contou sua história. Torturas físicas, ameaças de morte, abusos sexual e moral. Os policiais ouviram o relato, preencheram fichas e a aconselharam a voltar para casa. Perplexa com a sugestão, que soava como uma sentença de morte, ela pediu encaminhamento para o abrigo feminino. O policial a desaconselhou. Disse que o local mais se assemelhava a uma prisão para as mulheres e que as crianças sofreriam lá. Denise insistiu e o delegado a encaminhou ao Conselho Tutelar. O conselheiro, ao ouvir seu relato, ligou para a delegacia e reprovou a atitude dos policiais. Depois de quase 12 horas de espera, a Delegacia de Atendimento à Mulher foi acionada. Em pouco tempo, buscaram Denise e as crianças. No fim da noite, finalmente, chegaram ao abrigo. E lá passaram 50 dias corridos. Foram as sete semanas mais tranquilas e felizes da vida deles, como contaram à equipe de reportagem da Revista.

O primeiro ano do casal foi feliz. Ela teve o primeiro filho e, depois de alguns meses, começou a trabalhar. Um dia, ao chegar do serviço, sofreu a primeira agressão. Depois de segui-la pelas ruas, Carlos a acusou de traição e lhe deu um tapa no rosto. Horas depois, estava arrependido. Fez juras de amor, pediu desculpas, mas as agressões se tornaram constantes.

Dois anos se passaram e Denise engravidou novamente. O marido, porém, não acreditava que o filho fosse dele. A fixação era tanta que, além dos tapas, que com o tempo já tinham se transformado também em socos e chutes, Carlos chegou a retalhar o corpo da esposa. Na frente do filho, que chorava descontroladamente, fez cortes no pescoço e no braço de Denise com uma faca, até que ela admitisse a traição. Ele jurava que a mataria se ela ousasse ir à delegacia.

As ameaças se tornaram diárias. A última grande briga foi quando ele tentou matá-la com um facão. Denise conta que quem impediu a desgraça foi o filho de 3 anos, que, ao ouvir o pai chamando a mãe de vagabunda, foi até o quarto e se jogou na frente dela. Finalmente, Denise o colocou para fora de casa. Mas, alguns meses depois, sob novas ameaças, ele voltou a morar com a família.

Seis anos se passaram e o pesadelo de dividir o teto com o algoz já fazia parte da rotina. A mudança ocorreu quando Denise voltou a estudar e começou a frequentar um curso técnico. Lá, assistiu a uma aula sobre mulheres agredidas, que falava sobre o abrigo que acolhia famílias vítimas da violência doméstica no DF. Foi a primeira vez que ela enxergou um novo caminho. Dias depois, saiu de casa com os meninos e fez a denúncia na delegacia mais próxima.

Hoje, alguns meses depois de deixar o abrigo, Denise está prestes a terminar o curso técnico. Ganha dinheiro com a profissão que aprendeu quando estava sob a proteção do governo. Ainda assim, depois das sucessivas agressões e ameaças, permitiu que o ex-marido morasse no mesmo lote. O agressor não foi preso e a denúncia, arquivada. Entre eles, não existe mais uma relação afetiva, embora ele tente reatar. Denise sabe dos riscos de viver tão perto do homem que por tanto tempo a torturou, mas acredita que, apesar de tudo, Paulo sempre foi um bom pai e cuida dos meninos para que ela possa trabalhar, estudar e tão breve escrever uma nova história.

A outra face do problema
Na maioria dos processos, os agressores são primários, têm bons antecedentes, emprego, residência fixa e, por isso, acabam cumprindo pena em liberdade. Quer dizer, não vão para a cadeia. De volta à sociedade, eles podem cometer os mesmos crimes e agredir a ex-mulher ou uma parceira. O que fazer? Por que ele voltou a agredir? Esse homem tem recuperação? Para responder essas perguntas, em Brasília, um trabalho pioneiro no país foi implantado, em 2004, pelo Conselho de Direitos da Mulher, em parceria com a Defensoria Pública do DF. Pouco tempo depois, esse mesmo trabalho estreitou laços com o Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT). Estamos falando Núcleo de Atendimento à Família e aos Autores de Violência Doméstica, o NAFAVD. Para a instituição, o agressor também deve ser atendido a fim de evitar novas reincidências.

Segundo a promotora Danielle Martins, do MPDFT, deve-se levar em consideração que a violência doméstica é relacional. “O que acontece é que ele (o agressor) vem se relacionando com as mulheres dessa forma. Ele só troca de mulher, mas o problema da violência subsiste”, destaca a promotora. Sendo assim, o agressor também precisaria de atendimento. Mesmo assim, as críticas a esse tipo de auxílio são comuns.

Os NAFAVDs atendem aos artigos 35 e 45 da Lei Maria da Penha, que definem a possibilidade de criação e encaminhamento judicial, com comparecimento obrigatório, do agressor a programas de recuperação e reeducação. Para o psicólogo e coordenador geral desses núcleos no DF, Luiz Henrique Aguiar, é possível desconstruir tal comportamento violento e auxiliar esses homens, por meio de um acompanhamento terapêutico. “Muitas dessas mulheres querem ter uma vida com os companheiros, o pai de seus filhos, mas sem a violência. Elas já perceberam que um atendimento restrito a elas não é suficiente porque a dinâmica da violência está na família. As agressões se constróem num contexto específico e a desigualdade de poder na relação é a principal causa. Por isso, é importante lidar com todos os envolvidos”, esclarece o especialista.

Como não há uma procura espontânea dos homens para esse tipo de tratamento, esses núcleos de atendimento — vinculados ao Judiciário e ao Ministério Público — passam a ser um caminho para que os agressores tenham seus processos arquivados. Por determinação de algumas promotorias, o processo sobre o agressor é suspenso por, no mínimo, dois anos, na condição de que ele faça um acompanhamento no NAFAVD. Após um relatório final dos psicólogos, o processo pode, então, ser arquivado.

Os homens atendidos pelos núcleos devem passar por 12 sessões individuais — além da terapia em grupo — e podem faltar a duas, no máximo. O acompanhamento dura de quatro a seis meses ou mais. “A gente observa que a história deles está muito marcada pelo sofrimento. Muitos são depressivos, alcoolistas, foram agredidos ou viram a agressão entre pais ou familiares”, conta o psicólogo. Ou seja, para esses homens, a violência foi naturalizada e considerada um padrão de comportamento.

Apesar de constatar casos de recuperação de autores de violência doméstica, infelizmente, acrescenta Luiz Henrique, uma vez que o processo tenha sido arquivado, o ex-agressor perde esse acompanhamento e pode, sim, reincidir. Para atender essa demanda, o coordenador acredita que, até o fim do semestre, deve haver a possibilidade de que eles possam retornar ao núcleo pelo menos uma vez por mês para que o atendimento tenha continuidade.

ENTREVISTA//OLGAMIR AMÂNCIA

 (Carlos Vieira/CB/D.A.Press)

O que a casa abrigo representa para as mulheres agredidas?
Hoje, no governo, temos uma política de abrigamento, uma ação articulada que busca enfrentar essa violência doméstica de alta complexidade. Uma violência que ocorre em relações que envolvem a questão afetiva: marido e mãe, filho e mãe. Isso eleva o grau de complexidade porque é muito difícil denunciar alguém tão próximo. Nesse sentido, a política de abrigamento contempla o atendimento com psicológico e jurídico, além de assistentes sociais, para ela ter informações, orientações sobre processos, medidas protetivas e assistência pedagógica para os filhos. Isso associado a um programa com projetos específicos de empoderamento da mulher para que ela possa, de fato, retomar a sua vida.

Aquelas que mais denunciam são mais pobres?
Não. É até recorrente mulheres mais abastadas na Casa Abrigo. O que acontece é que, quando vão, elas não ficam três meses, mas três dias, 24 horas. Porque, diferentemente das mulheres de classes mais baixas, ela não depende do Estado. Elas têm suas ferramentas para lidar com a situação. As denúncias estão em todas as classes sociais. As mulheres são afetadas igualmente em relação a isso.

Como a mulher pode se reinserir na sociedade após todo o processe de denúncia de violência doméstica?
Há uma resposta imediata do Estado, mas também trabalhamos a perspectiva de fortalecê-la e acompanhá-la, e, assim, garantir condições para que possa assumir a vida com dignidade. Nisso, entram programas de qualificação de alto nível, como o Qualificopa. Esse programa vai inserir essas mulheres no mercado de trabalho, aproveitando esse momento que o país vive de preparação para a Copa do Mundo. Terá todo um processo de maior espaço de trabalho no DF. Tanto as mulheres que passaram pelo abrigo, quanto as mulheres que ainda estão abrigadas participarão.

Em que tipos de atividade profissionais?
Cursos para copeira, atendende, recepcionista, webdesigner, entre outros. Cada um com seu pré- requisito. Ela tem a liberdade de escolha. Nós levamos as informações por meio da Secretaria de Trabalho e garantimos a inscrição. Tudo com um olhar mais cuidadoso, na perspectiva de garantir condições de segurança para ela.

Então, existe esse foco no futuro profissional?
Temos claro que um dos fatores que permite que a mulher rompa com o ciclo de violência é a autonomia financeira. Se essa mulher tem uma fonte de renda, uma condição de sobrevivência que a permita entrar numa relação de igualdade com o parceiro, ela tem melhor possibilidade de, diante de um quadro de violência, romper com ele. Se ela não tem um emprego, uma fonte de renda, ela depende do agressor. A questão da autonomia é um elemento importante, mas não é o único. Até porque mulheres de classes mais abastadas, com uma boa renda, também sofrem da violência doméstica. É um problema que se dissemina em todas as classes.

Elas são acompanhadas depois que saem do abrigo?
Sim. Fizemos um mapeamento para poder acompanhá-las depois do atendimento primário. Fomos atrás de todas e mapeamos nomes e endereços para saber como se saíram. Estão inseridas no mercado de trabalho? Estão estudando? Algumas, por exemplo, fizeram no abrigo um curso de massoterapia, de culinária, de artesanato. Muitas delas já saíram da casa com emprego garantido.

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2012/02/10/interna_revista_correio,289509/vozes-na-escuridao.shtml

Enviada por José Carlos.

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