Estamos ficando superficiais?

“Nicholas Carr argumenta que a internet está mudando para pior os padrões de pensamento”

João Paulo

Garanto que você já passou pela mesma experiência de Nicholas Carr: um belo dia, no meio da leitura de um livro, perdeu a concentração e o fio da meada da argumentação do autor. Só que o jornalista americano, ao perceber que não estava dando conta de ir além de umas poucas páginas, desconfiou que seu cérebro estava perdendo a acuidade. Pensou, em primeiro lugar, que poderia ser sintoma de perda natural em decorrência da idade. Ele tem 50 anos. Acabou concluindo que o decréscimo de sua capacidade de atenção vinha do uso intensivo da internet e de seu padrão dispersivo. Foi a fundo, pesquisou e escreveu o livro A geração superficial – O que a internet está fazendo com nossos cérebros (Editora Agir, 384 páginas, R$ 49,90), que acaba de ser lançado no Brasil.

O livro é polêmico e chegou a ser finalista do Prêmio Pulitzer no ano passado. Quem acha que a tese de Carr é uma ladainha ludista contra a tecnologia se engana. O autor não defende o passado romanticamente, mas se preocupa pelas opções que vêm sendo tomadas contemporaneamente. Para ele, a superficialidade frenética da busca de informações gera um padrão que acaba por autossabotar as possibilidades intelectuais do usuário da rede. Nos habituamos a muita informação, com curto investimento de atenção, em processo de contínua ligação com outros conteúdos. O cérebro não apenas acompanha nossas escolhas, mas acaba por oferecer novas respostas.

O estilo de navegação em rede joga a inteligência de um lado para outro sem trégua, criando um padrão de conhecimento que em vez de se definir pela profundidade se caracteriza pela simultaneidade. A entrada em cena de ferramentas como os mecanismos de busca, por exemplo, em vez de terceirizar a memória e economizar mais tempo para as coisas importantes, implica a perda de capacidade de reflexão. Diferentemente da máquina de calcular, que libera o raciocínio para a análise dos problemas, o Google tira a capacidade criativa da memória e não coloca nada no lugar. A memória não é só um recipiente, é uma operação.

O livro de Nicholas Carr vai além da acusação. Ele constrói uma história intelectual da dissolução de padrões intelectuais vigentes por séculos, para depois mostrar como a perda dessas referências implicaram mudanças drásticas na capacidade cognitiva das pessoas. O que é mais sério na argumentação do autor é a ligação dessa transformação com elementos de ordem estrutural do sistema nervoso. Em outras palavras, além de mais burros, estamos ficando menos aparelhados para sair do buraco.

Para ilustrar sua tese, o autor recorre a várias pesquisas no campo das neurociências, mostrando como o cérebro humano modifica seus circuitos em razão de respostas que vão se sedimentando no tempo. Ou seja, o uso de determinadas vias de conhecimento e resolução de problemas acabam por ganhar tradução no nível das sinapses nervosas. Em outras palavras, há uma plasticidade, uma capacidade de adaptação do sistema nervoso, que vai na direção contrária do que sempre se acreditou, quando se julgava que para cada área cerebral há uma única resposta. As pesquisas provam que a vida no nível cerebral é mais dinâmica do que se imaginava.

“À medida que a ciência do cérebro continua a avançar, as evidências em favor da neuroplasticidade ganham força. Usando novos, sensíveis equipamentos de esquadrinhamento cerebral, assim como microeletrodos e outras sondas, os neurocientistas realizam mais experimentos, não apenas como animais de laboratório, mas também com seres humanos. (…) Eles revelam algo mais: a plasticidade cerebral não é limitada ao córtex somatossensorial, a área que governa o sentido do tato. É universal.” Carr defende que o cérebro não é apenas plástico, “mas muito plástico”. A superficialidade pode ser mais profunda do que parece.

Mapas e relógios Em sua busca dos fundamentos da nova forma de aprendizagem e hábitos intelectuais, o jornalista faz uma interessante história de como o homem foi adquirindo instrumentos para se localizar no mundo. O desenvolvimento da mente humana, que começa com a linguagem, evolui até a representação espacial dos mapas, que se somam ao domínio do tempo e de seus mecanismos de medida. Tanto o espaço quanto o tempo, como mostra Carr, deixam de ser experiências ingênuas para fazer parte de nossa forma de ser no mundo. São o que ele chama de “tecnologias intelectuais”.

O que isso tem a ver com os computadores, com a internet e com a dificuldade de concentração na leitura? Tudo. O atual estágio de utilização das tecnologias intelectuais, assim como os mapas e relógios, molda nossa experiência do mundo. A relação entre tecnologia e mente, que era apenas campo de abstração, hoje pode ser traduzida materialmente em pesquisas. “A neuroplasticidade fornece o elo perdido para compreendermos como os meios informacionais e outras tecnologias intelectuais exerceram sua influência sobre o desenvolvimento da civilização e ajudaram a guiar, em nível biológico, a história da consciência humana.”

Em sua fenomenologia do conhecimento humano, o capítulo mais interessante introduz o alfabeto, os pergaminhos, os códices e os livros. A análise da história dos livros (com digressões sobre sua utilidade combatida por Sócrates, que defendia a palavra viva) evolui até chegar a temas contemporâneos relacionados à internet, como a digitalização de livros, os projetos do Google em criar uma biblioteca universal com todos os livros do mundo, a questão dos direitos de autor, até a legibilidade de textos na tela dos computadores ou readers.

Se toda essa história está parecendo digressão, o leitor não perde por esperar. A partir da metade do livro, o autor deixa de lado o passado e se concentra na análise dos computadores. O método também é histórico – o que é muito bom para algo tão novo e tão envolto em mistérios. O leitor vai conhecer desde os precursores da informática até as mais recentes ferramentas, entrando na selva de conceitos e nomes de equipamentos, em suas várias versões e gerações.

Mas o que interessa a Nicholas Carr é exatamente o resultado de todo esse processo. Em que momento, com a mudança de paradigma de produção, busca e compartilhamento de informação, o homem passou a exibir um novo padrão de conhecimento? Mais do que isso, de que maneira esse novo uso da inteligência, com suas características próprias (rapidez, interligação, apelo visual, hipertexto, simultaneidade, fluxo de mensagens, tendência à síntese etc.), interfere na relação com o objeto do conhecimento?

Sem desconhecer a importância da informática e até mesmo o fato de que algumas habilidades cognitivas estão sendo fortalecidas pelo uso dos computadores, o próprio título do livro é uma espécie de resposta: estamos vendo se firmar uma geração superficial. A preocupação do autor, além de cognitiva, tem um forte componente político. Afinal, reduzidos a responder a programações oferecidas pelas máquinas, o risco de dominação ditada por interesses externos é muito grande.

O livro de Nicholas Carr não é um ataque à tecnologia, mas um estudo sobre suas consequências no âmbito do conhecimento e dos circuitos mentais. Se estamos nos preparando para um novo estágio social e psicológico, que exigirá cérebros educados para isso, talvez seja conveniente ficar atentos para o que podemos estar perdendo, como a capacidade de meditação e de pensamentos mais profundos e sofisticados. O homem sempre se definiu pelo porvir e pela capacidade de ir além, mas preservou a humildade de saber de onde vinha.

Como escreveu J. D. Salinger em uma de suas novelas, quando os computadores ainda não existiam: “É preciso ir rápido. Rápido e devagar”. Mas quem leva a sério Salinger hoje em dia?

http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/02/04/interna_pensar,23419/estamos-ficando-superficiais.shtml. Enviada por José Carlos.

 

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