Samir Oliveira
Quando vieram ao Brasil em busca de aperfeiçoamento profissional, Sagesse Ilunga Kalala, de 21 anos, e Tibule Aymar Sedjro, de 22 anos, pensavam que estavam desembarcando no país do futebol e das belas praias. Mal sabiam os dois africanos que, além de encontrar pessoas e aprender um novo idioma, iriam conhecer um pouco do que há de mais negativo no ser humano. Palavras como racismo, discriminação e preconceito passariam a integrar o vocabulário e o cotidiano dos dois jovens.
Sagesse, da República Democrática do Congo, e Tibule, do Benin, estão em Porto Alegre desde o início do ano passado para estudar português – etapa obrigatória de um convênio entre o governo brasileiro e países africanos, que em seguida deslocará os dois para a Universidade Federal do Rio Grande, onde cursarão, respectivamente, Biologia e Oceanologia.
Com quase um ano de Brasil, o português flui com relativa facilidade, ainda que com um indisfarçável sotaque francês. Deixam até escapar um “tri” de vez em quando.
Mas definitivamente essa não é a melhor expressão para qualificar o que aconteceu com os dois em solo gaúcho. Talvez ignorância e despreparo sejam duas palavras que caibam bem à atitude da policial militar que, na manhã de 17 de janeiro, apontou uma arma para Sagesse e Tibule dentro de um ônibus pelo simples fato de eles serem negros.
Eles estavam indo para o Centro encontar uma amiga e, em seguida, iriam para a Polícia Federal renovar seus vistos para permanecerem mais um ano no Brasil. Sentados no fundo de um Campus-Ipiranga, conversando em francês, perceberam que a policial que estava no coletivo não parava de encará-los.
“Comecei a me sentir mal. Por que ela nos olhava assim?”, questiona Sagesse, ainda tentando entender o que aconteceu naquela manhã. Após pedir reforços pelo telefone, a policial ordenou que o ônibus parasse imediamente, sacou a arma, apontou para a dupla de africanos e berrou: “Saiam do ônibus com as mãos na cabeça!”.
Imediatamente, todos os passageiros abaixaram a cabeça. Sagesse e Tibule quiseram fazer o mesmo, sem entender que, para a autoridade presente, o problema era justamente eles. “Foi então que percebi que estava falando com a gente. Eu disse que éramos estrangeiros e perguntei o que havíamos feito, mas ela só ficava me mandando calar a boca”, lembra o congolense.
Apavorados e sem saber o que levava uma policial a apontar uma arma para eles em pleno ônibus, os dois desceram, sempre com as mãos na cabeça e sob a mira do revolver, e foram recebidos por três viaturas e uma moto da Brigada Militar. No caminho para a descida, Tibule ainda deixou cair seu celular e, quando se abaixou para pegar, foi impedido pela polícial, que engatilhou a arma e não permitiu que ele fizesse qualquer movimento.
Com as mãos encostadas no ônibus, sendo observados por todos que estavam dentro do coletivo, além da multidão de curiosos que se aglomerava, Tibule e Sagesse foram revistados por outros policiais, enquanto a mulher permanecia com a arma apontada pra eles.
Ela perguntou porque os dois estavam conversando entre eles e olhando para ela. Mal sabia a policial que estavam justamente se questionando sobre as desconfiadas e contínuas olhadas dela. Fora do ônibus, ao ser questionado pela brigadiana, Sagesse não teve dúvidas ao responder. “Sim, estávamos conversando. Não temos mais o direito de conversar?”.
Como percebeu que a cada coisa que dizia, era repreendido com um irritadiço “cala a boca!”, Sagesse decidiu não falar mais nada. E orientou, em francês, que Tibule também ficasse quieto, temendo a ira dos policiais. “Não fala mais, Tibule, eles podem nos levar para qualquer lugar”, comentou.
Tibule, visivelmente irritado com a situação, balançava a cabeça de um lado para outro em sinal de inconformidade. Como recompensa pela insatisfação, recebeu uma gravata no pescoço antes de ser algemado com Sagesse e levado para o posto da Brigada Militar na Redenção.
“Pensei que talvez tivessem nos confundido com criminosos procurados. Achei que fossem nos soltar depois da revista, pois não haviam encontrado nada. Eu já não estava entendendo mais nada”, recorda Sagesse.
No posto policial, os dois comprovaram com documentos o que o preconceito impedia a polícia de ver: que eram estrangeiros e que estudavam português na Ufrgs. Foram liberados, mas se recusaram a sair.
“Queríamos saber porque havíamos sido detidos. Como insistimos em perguntar, um policial negro nos disse, apontando para a sua pele: ‘Vocês não sabem que isso no Brasil sempre aconteceu e vai acontecer de novo?’”. Foi assim, ouvindo da própria Brigada Militar que haviam sido retirados do ônibus, algemados e levados a um posto policial apenas por serem negros, que os dois africanos deixaram o local e, imediatamente, entraram em contato com amigos para saber como agir diante do acontecido.
“No meu país, a polícia não suspeita de uma pessoa só por ela ser branca”
A primeira vez que Sagesse Ilunga Kalala sentiu que estava sendo discriminado por ser negro foi no Brasil. Foi, mais especificamente, num supermercado na cidade gaúcha de Igrejinha. “Os seguranças ficavam atrás de mim o tempo inteiro. Tinha muita gente lá dentro, mas só eu e meu amigo éramos seguidos pelos seguranças como se fôssemos criminosos. Eu não estava entendendo”, conta o congolense, que decidiu deixar o estabelecimento sem levar nada.
Tibule Aymar Sedjro também sente o fardo que é ser negro num país onde, apesar de séculos de miscigenação, o racismo ainda é uma realidade cotidiana. “Quando um negro chega numa loja, é comum os seguranças ficarem olhando para ver se ele vai roubar algo. Não sei por que, se todo mundo é igual. Mas não observam os brancos da mesma forma”, lamenta o jovem do Benin.
Há quase um ano vivendo no Rio Grande do Sul, Tibule já aprendeu uma triste lição de história nacional que não precisa de estudos para ser comprovada. “O racismo é mais forte no Sul do que no resto do Brasil”, explica.
Passadas quase três semanas após o traumático episódio da detenção num ònibus em Porto Alegre, os dois africanos falam com tranquilidade sobre o assunto e ainda tentam entender por que uma policial teria feito tudo aquilo apenas por eles serem negros. No histórico de vida deles, não há nenhuma referência cultural, social, política ou piscológica que justifique a atitude da Brigada Militar no dia 17 de janeiro deste ano.
Vindos de países africanos, eles não conseguem entender como alguém pode ser discriminado tão somente por ser negro. “No meu país a polícia não suspeita de uma pessoa só por ela ser branca. Nunca. Só estou vivendo racismo no Brasil”, compara.
Tibule ainda junta as peças no tabuleiro étnico e comportamental para tentar encontrar uma resposta. “Ainda não sei se aconteceu aquilo tudo só por sermos negros ou por sermos africanos”, comenta.
Os dois jovens ainda não contaram a seus pais sobre o ocorrido. Sagesse não quer preocupar sua mãe, que sempre foi contra sua vinda ao Brasil. “Desde criança eu gostava do Brasil. Na África todos sabem que é um país maravilhoso. Minha mãe não quis me deixar vir, tinha medo do tráfico de drogas e das favelas, mas eu dizia a ela que só mostravam aquilo nos filmes. Eu tenho amigos que já moravam aqui e me diziam que havia racismo, mas eu não acreditava, achava que falavam isso para me assustar. Nunca pensei que seria verdade”, desabafa o congolense, que ainda pensa numa maneira de contar à sua mãe que foi algemado pela polícia apenas por ser negro.
Tibule contou apenas ao seu irmão o que aconteceu e ainda tenta encontrar paralelo para algo parecido que possa ter ocorrido em sua terra natal. “Nunca vi a polícia apontar a arma para alguém sem nenhum motivo no Benin”, compara. E confessa que teve medo de ser injustamente incriminado pela Brigada Militar. “Tive medo, pensei que podiam colocar drogas na nossa mochila, aí mudaria tudo”, considera.
Atormentado com a arma engatilhada apontada em sua direção, Sagesse não teve tempo de fazer muitas conjecturas mentais. Quase três semanas após o episódio, ele confessa que também sentiu medo. Mas não de ser preso. “Tive medo de morrer, porque ela estava com uma arma engatilhada apontada para nós. Ela podia ter feito algo errado e alguém dentro do ônibus podia ter morrido. Foi um susto muito grande, pensei que minha vida fosse acabar naquele dia”, confessa.
Hoje, ele entende que a polícial queria humilhar os dois. Mas ainda não entende por que. “Ela queria só nos humilhar. Todos no ônibus estavam conversando, só nós dois que não tinhamos esse direito?”, pergunta.
A policial que iniciou a abordagem não teve seu nome divulgado pela Brigada Militar, que já instaurou um Inquérito Policial Militar para investigar o caso. Além disso, o comando da corporação se reuniur com os dois jovens e pediu desculpas pelo ocorrido.
Apesar do episódio, Sagesse e Tibule seguem convictos em permanecer no país. “Queremos continuar no Brasil. Mas estamos desconfiados da polícia. Como uma polícia que deveria proteger as pessoas nos ameaça? É complicado… Não quero que isso aconteça novamente”, lamenta.
http://sul21.com.br/jornal/2012/02/africanos-ainda-tentam-entender-racismo-da-policia-no-rs/