Estudante da USP: “A única visão que eu tinha era das botas”

Uma estudante da USP denuncia, em depoimento, que foi agredida e ameaçada por PMs na ação de reintegração de posse da reitoria. Ela tentou registrar as agressões na polícia, mas não conseguiu. “Um deles pegou na minha nuca, bateu minha cabeça no chão várias vezes, na parte do couro cabeludo, para não deixar hematoma. Nisso passou um repórter da Globo, o primeiro a chegar no local. Quando eu o vi achei que era minha salvação: comecei a gritar e falar o que estava acontecendo. O repórter olhou com o maior desprezo e passou direto”.

Raphael Ken Ichi Sassaki

S.M (sua identidade será preservada para evitar represálias), 25, é professora de filosofia na rede estadual. Ela foi uma das estudantes indiciadas após a reintegração de posse na reitoria da USP, na semana passada. Ela diz que não estava na reitoria durante a operação e que foi levada para dentro por PMs, após tirar fotos. Lá dentro, teria ficado sozinha por 30 minutos com policiais homens, que a teriam agredido e a ameaçado. Na delegacia, diz que tentou registrar as agressões, mas segundo a delegada que ouviu os detidos, isso não era possível naquele momento.

Segundo a advogada que representa os estudantes detidos, Eliana Ferreira, o depoimento dela será levado até o Condepe (Conselho de direitos humanos do Estado) após o resultado dos exames de corpo de delito, em no mínimo 30 dias.

Depoimento de S.M dado a Rapahel Sassaki:

Eu ocupei a reitoria, participei do movimento, mas na noite da reintegração de posse, não dormi lá. Eu estava no meu apartamento no Crusp. Eu dormia e acordei assustada com os barulhos dos helicópteros, com a minha janela toda iluminada. Em seguida, desci pra ver o que acontecia, muitos amigos estavam na reitoria.

Lá embaixo, PMs impediam as pessoas de sair, inclusive as que tinham que ir trabalhar ou pessoas que tem que acordar de madrugada para tocar pesquisas nos institutos, e também, claro, quem queria ir para a reitoria ver o que acontecia. Ainda estava bem escuro.

Eu desci junto com essas pessoas e, passado alguns minutos vendo aquela situação, começamos a sair por uma lateral do prédio. Chegando próximo à reitoria, eu comecei a tirar fotos em frente ao cordão de isolamento da polícia, para registrar o que acontecia. Nisso apareceu um policial por trás de mim, apontando uma arma de grosso calibre. Eu fiquei paralisada; na minha frente o cordão de isolamento e atrás um cara armado.

Ele me pegou , me disse que eu estava detida e me mandou deitar no chão. Chegaram mais dois PMs, que já me jogaram no chão para me imobilizar e eu comecei a gritar, já que eu não estava lá dentro e eles não tinham justificativa legal para me deter, eu só estava filmando.

Foi quando um deles falou: “É melhor levar ela pra dentro”. Na delegacia falaram que eu tentei entrar na reitoria. Como eu vou entrar em um lugar cheio de polícia, passando pelo cordão de isolamento?

Eles me levaram arrastada pra frente da reitoria, quebraram o vidro e entraram. Era uma sala escura, não havia nenhum aluno, só policiais homens. Lá, me colocaram de pé e mandaram deitar no chão. Como eu não fiz imediatamente o que me pediram, eles chutaram minha perna, que ficou roxa. Acredito que isso conste no exame de corpo de delito.

Quando me jogaram no chão, um homem sentou nas minhas pernas, próximo ao meu bumbum, e dois no meu tronco, pressionando com o joelho meu corpo no chão. Havia vários em volta fazendo uma roda, porque como estavam ao lado do vidro, se alguém estivesse passando poderia ver.

A única visão que eu tinha era das botas. A sala estava toda escura. Devia ter uns 12 homens ali, algo descomunal para imobilizar uma mulher. Eles falaram que iam me levar presa e botaram um lacre nas minhas mãos. Também pegaram minha câmera.

O que me chocou e o que os advogados querem caracterizar como crime de tortura foi que nesse momento, os policiais apertaram meu pescoço e taparam minha boca e meu nariz. Eu sou asmática e quase demaiei. Eles são sarcásticos, riam de mim, falavam que eu não ia sair dali. Eu gritava e batia as mãos no chão, e eles falavam “você está pedindo arrego?”.

Um deles pegou na minha nuca, bateu minha cabeça no chão várias vezes, na parte do couro cabeludo, para não deixar hematoma. Eu tentei reagir e mordi a mão do PM que segurava minha boca. Quando fiz isso, eles me falaram: “Você conhece o porco?”.

O porco era uma bolacha de plástico, um material muito resistente que enfiaram na minha boca. Era uma coisa achatada, que impedia de falar e me impediu de respirar pela boca, sendo que eu tenho dificuldade de respirar pelo nariz. Eu fiquei com isso na boca enquanto eles falavam: “é melhor ficar quieta senão vai ser pior”.

Eu pensei que não havia mais ninguém lá dentro, que todo mundo já havia sido retirado e que iam fazer o que quisessem comigo. Depois eu soube que tinha uma sala ao lado, onde as meninas ouviram tudo o que aconteceu ali, elas são testemunhas. Onde eu estava, não tinha uma mulher, ninguém.

Depois de vários minutos dessa situação, me prenderam com um lacre, com as mãos pra trás. Apertaram isso muito forte e me levantaram pelos cabelos do chão; tiraram o ‘porco’ da minha boca e me levaram pra outro lugar, mais iluminado.

Eu reclamava do meu braço, que ficou roxo; isso não saiu tanto no corpo de delito, já que ele foi feito às 2h da quarta-feira, e a reintegração foi às 5h do dia anterior.

Os PMs me arrastaram para um corredor iluminado. Eu reclamei que meu braço doía muito e eles falaram que realmente estava muito apertado; pegaram uma faca enorme, pediram pra eu ficar quieta e cortaram o lacre.

Nisso passou um repórter da Globo, o primeiro a chegar no local, que fez toda a cobertura. Quando eu o vi achei que era minha salvação: comecei a gritar e falar o que estava acontecendo. O repórter olhou com o maior desprezo e passou direto.

Mas os câmeras filmaram um pouco, tanto que as imagens estão no Jornal Nacional, onde eu reclamo da minha mão. Eu falando o que tinha acontecido eles não colocaram. Um cara [PM] ainda me falou “viu, não adianta nada você reclamar”.

Eles não conseguia ficar de pé, mas eles queriam que eu ficasse; um PM pegou o cassetete e apertou contra a minha garganta pra eu ficar em pé, junto à parede. Minha garganta desde lá está inflamada e estou rouca.

Eu estava assim, quando chegou uma policial mulher, uma loira tingida, que imagino que eu possa identificar no processo –foram 25 mulheres presas e apenas 3 policiais mulheres, que contamos, essa era a única loira.

Eu achei que ela fosse ter o mínimo de sensibilidade. Eu falei [para o PM] ‘você vai me bater de novo?”. Nisso a policial mulher chegou, tirou ele de lá e falou: “Ele não pode te bater, mas eu sou mulher e posso” e pegou na minha blusa e me jogou duas vezes contra a parede. Eu reagi e dei uma
cotovelada nela; ela saiu.

Eles continuaram em volta de mim. Essa loira veio com minha máquina dentro da caixinha; achei delicado terem guardado, só para ver depois que a máquina estava quebrada e sem o cartão de memória.

A policial [mulher] ainda me falou: “Se você colaborar eu vou te levar junto das meninas, senão, você vai ficar aqui com os meninos [os PMs] viu?”.

Me levaram para a sala, onde todas as mulheres estavam sentadas no chão com vários policiais, que tampavam o vidro com escudos para que não pudessem vê-las.

Tinha mais polícia do que meninas, como se fossem oferecer grande risco. Ela disse que eles falaram para elas: “Não se preocupem com os gritos, é procedimento normal”. Ainda disseram, ‘não é nada, é só uma louca que entrou gritando’.

Elas me disseram que foram 30 minutos aproximadamente que eu fiquei sozinha com os PMs.

Ficamos horas nessa sala e começaram a me ligar. Eu atendi e disse que estava lá dentro, ninguém entendeu o que eu tava fazendo lá. Eu disse que passava mal, que precisava da minha bombinha. Aí sim eles acreditaram que eu tinha asma e 20 minutos depois me trouxeram minha
bombinha, que meu namorado levou.

Depois mandaram eu desligar o celular e ficamos incomunicáveis. Havia vários policias sem farda, à paisana, filmando nossos rostos. Todos os PMs estavam sem identificação, dentro e fora. Reclamamos disso e a PM que me agrediu disse: “O que vc entende de polícia militar pra saber o que PM pode ou não?”.

Fomos levados para a sala principal, onde ficam os quadros dos reitores, colocaram a gente na parece e obrigaram a gente a ser fotografada, armados e ameaçando, vestidos com roupa normal e sem identificação. Sem identificação por quê? Porque se acontecesse algo muito sério ninguém poderia ser punido?

Eles sabem onde eu moro, sabem meu nome, por isso não me identifico. Eu estou visada por que eles sabem que o que fizeram foi irregular. Eles tem imagens nossas, de perfil, de lado, fizeram um ‘book’ da gente. Estávamos todos assustados, porque não sabíamos o que ia acontecer.

Nos levaram para a delegacia, onde ficamos mais de 20 horas. Durante o interrogatório, nos perguntaram nosso número USP. Por que isso importa? Pra reitoria nos perseguir? Eles disseram que íamos somente assinar um termo circunstancial e ser liberados, mas depois mudaram e decidiram nos imputar os crimes, inclusive formação de quadrilha e crime ambiental.

Fui atentidada pela delegada [Maria Letícia Camargo], tentei falar para ela o que aconteceu comigo, dizendo que eu nem estava na reitoria. Ela me disse que o questinário partia do pressuposto que eu estava lá dentro, e que não havia uma lacuna onde ela pudesse relatar o que que queria falar.

Então resolvi declarar em juízo. Quando eu saí, tinha um policial gordinho de olhos azuis, que quis botar as meninas que estavam fumando para dentro do ônibus. Como questionamos isso ele me disse: “É pra você acatar, que você conhece minha força”; Eu disse ‘então você estava lá, seu filha da puta, você me agrediu’. Depois disso ele desapareceu e eu não o vi mais.

Eu tentei fazer o boletim de ocorrência, mas a delegada se negou a registrar. E é por isso que eu estou dando esta entrevista, porque ela teve a pachorra de dizer depois, em entrevista, que nenhum estudante alegou ter sido agredido.

O Movimento

Tudo que era feito era discutido, inclusive os coquetéis molotov; isso foi vetado, porque o movimento era pacífico. Havia uma comissão para fazer material, outra para falar com a imprensa. Tinha a comissão de segurança, para garantir que não entrassem PMs nem imprensa, e não fotografassem as pessoas. Tinha comissão de cultura, música, dança. É um absurdo falar que era um movimento de traficantes. Acha que tantas pessoas se organizaram dessa forma pra defender o direito de fumar maconha?

Ninguém ali está lutando pelo direito individual, polícia tem em todo lugar. Defendemos o direito de ter uma universidade de fato pública e aberta, para que as pessoas não tenham suas bolsas revistas e sejam punidas por crimes que não cometeram.

Agora os policiais estão ali, sabem onde eu moro, e podem me intimidar para eu não denunciar. Você pode achar um exagero, mas na USP há um programa de vigilância, com câmeras escondidas e funcionários do Coseas registrando as pessoas, inclusive relatórios da vida íntima e política das pessoas.

É estranho a mídia nos tachar de burguesinhos, porque se de fato fôssemos o que íamos querer era justamente polícia pra nos proteger ‘dos favelados’. Eu já fui babá, monitora escolar, bóia fria, frentista de posto de gasolina, trabalhei em fábricas, em telemarketing, no comércio. Hoje sou professora na rede pública estadual, dou aulas de filosofia para crianças. Quando eu voltei para a escola os alunos falaram: “Êba, a professora foi solta!”. Eles já sabem que as coisas não são como mostram, muitas vezes.

Eu nasci no Paraná, meu pai era militante do PT e coordenador do MST, já morei em acampamento e isso sempre foi natural. Eu vim para a USP porque aqui me parecia um lugar livre, onde tinha moradia estudantil e jovens podiam pensar livremente; tudo engano.

Quando criança nunca fui militante, mas sempre tive um veia crítica sobre as coisas; eu não sou direita, mas também não sou xiita ou radical, como falam. Sou só uma estudante que se indigna, que quer uma universidade que não seja só para ela; a USP pra mim foi um sonho, e eu queria que outras pessoas pudessem compartilhar isso.

Não queremos universidade para a elite, mas para os trabalhadores e filhos de trabalhadores, algo que o reitor tenta impedir, bancado pelo governo. Não sou marxista, nem isso ou aquilo, sou apenas indignada, que gosta de estudar e morar no Crusp. Espero que eu não seja jubilada e possa prestar concurso para dar aula como professora efetiva, sem sofrer nenhuma represália, principalmente da própria universidade.

Outro lado

A Polícia Militar disse não ter conhecimento sobre os fatos relatados pela aluna e disse que a Corregedoria da PM está aberta para denúncias contra a ação policial. A PM também afirma que nenhum detido durante a operação foi ferido, segundo o resultado do exame de corpo de delito. A Secretaria de Segurança Pública disse que o laudo do exame fica pronto em 30 dias a partir do pedido e que não é possível consulta antes deste prazo.

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19076&boletim_id=1065&componente_id=17021

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