Por Roberto Antonio Liebgott
A Constituição Federal do Brasil, no caput do Artigo 231, diz: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Essa norma define não apenas um conjunto de direitos indígenas, como também a responsabilidade direta e intransferível da União no que tange à garantia da terra. Assim sendo, as possibilidades de intervenção ou ingerência de governos estaduais e municipais em procedimentos de demarcação de terras ficam restritas. Essa norma estabelece os limites e possibilidades de intervenção ou ingerência de governos estaduais e municipais no que tange à demarcação de terras e às políticas a serem desenvolvidas para povos e comunidades indígenas em âmbito nacional.
Além da União, os demais entes da federação podem colaborar, em articulação com o Governo Federal e cumprindo todas as normas legais, nas ações e serviços a serem executados nas áreas de saúde, educação, atividades produtivas dentro das terras indígenas. É vedado, no entanto, que estados e municípios interfiram nos procedimentos de demarcação através da imposição de critérios e/ou instrumentos que não estejam previstos nas normas administrativas definidas pela União, e esta, por sua vez, precisa se organizar, se estruturar e garantir orçamento para implementar tais normas.
O debate que vem sendo proposto no Estado do Rio Grande do Sul sobre a temática indígena e a demarcação de terras (dos indígenas e quilombolas) assume um viés ideológico e utilitarista extremamente perigoso: em nome de um modelo de desenvolvimento baseado na ampliação da produção, especialmente a agrícola, se pretende restringir os direitos territoriais das comunidades tradicionais, condicionando a demarcação a um pressuposto de produtividade presente e futura. Em outras palavras, querem atrelar os direitos originários sobre as terras a um modelo de produção que se concretiza através da exploração máxima dos recursos, desrespeitando-se, de uma só vez, dois preceitos constitucionais: o reconhecimento aos índios de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras por eles ocupadas (caput e § 2º do Art. 231). É a tentativa de colocar as terras indígenas à disposição do mercado explorador e predatório.
Para dar respaldo a esta proposição, adquirem visibilidade certos discursos que vitimizam os pequenos agricultores com a alegação de que sofrerão prejuízos com a demarcação das terras. Argumenta-se que, no caso do Rio Grande do Sul, os agricultores compraram as terras e possuem os títulos de propriedade sobre as áreas reivindicadas pelos “índios e quilombolas”. E, além disso, se acrescenta ao argumento da propriedade o fato de que os agricultores produzem nas terras a serem demarcadas o alimento que a população consome.
Três questões importantes devem ser colocadas em relação a esta linha de argumentação: a primeira é que os povos indígenas não estão sendo considerados no debate como sujeitos de direitos. Ao contrário, são tratados como o problema ou o obstáculo a ser removido; a segunda é que, ao estabelecer a polarização agricultores versus indígenas/quilombolas, cria-se um conflito entre os pequenos quando, de fato, há grandes interesses implicados. E a terceira questão é que, para o modelo econômico, os indígenas e quilombolas são tidos como improdutivos e, portanto, não cabe a eles o direito a terra.
É com essa intenção que a CNA (Confederação Nacional da Agricultura), uma espécie de ONG do latifúndio e do agronegócio, promove a discussão em torno da questão indígena no Brasil. Ela promove um grande lobby no Congresso Nacional visando mudar o Artigo 231 da Constituição Federal e utiliza sua influência política e econômica para pressionar os governos nas esferas municipal, estadual e federal. Para a CNA a legislação que protege os direitos dos povos indígenas e quilombolas se constitui em instrumento limitador da lucratividade daqueles setores que ela, de fato, representa. E, por sua vez, os latifundiários e as empresas produtoras de soja, milho, cana-de-açúcar, arroz e eucalipto nutrem grande expectativa em torno das pretensas mudanças na legislação indigenista, quilombola e ambiental, a partir desta ofensiva política e ideológica da CNA.
Não se trata, neste debate, como afirmam prefeitos, deputados, senadores, secretários de Estado e as matérias escritas ou televisivas da mídia, de um conflito entre “pequenos proprietários rurais”, indígenas e quilombolas, e sim um conflito entre modelos de produção diferentes – um que prima pelos direitos das pessoas e pelo meio ambiente e outro que propõe a máxima produção e a maior lucratividade. Vale ressaltar que a maioria dos países desenvolvidos, que experimentam hoje o amargo sabor da crise, já estabeleceu medidas para conter o ímpeto produtivista e apelam para formas menos nocivas de produzir e de consumir.
O conflito estabelecido no Rio Grande do Sul não decorre da legislação propriamente, e sim dos interesses sobre as terras e as formas de entender sua função social. Há um forte investimento discursivo no sentido de culpabilizar os povos indígenas e quilombolas, quando a solução depende exclusivamente da vontade política e de uma eficaz ação do governo para, de um lado, demarcar e fazer respeitar as terras tradicionais destes povos e comunidades e, de outro, buscar soluções concretas e plausíveis para os problemas dos agricultores que foram assentados em terras indígenas. Cabe, neste debate, bom senso, disposição política e, mais do que isso, destinação de recursos financeiros para pagamento das indenizações dos afetados e o cumprimento da legislação estadual que determina que o Estado deve indenizar as famílias assentadas em áreas demarcadas ou em demarcação.
Lamentavelmente, no Rio Grande do Sul, este tema vem sendo matizado por pressões políticas da CNA e pelo impulso da mídia. O governo estadual entrou no jogo de interesses e, em virtude disto, classifica os direitos indígenas como problemas. Volta-se contra a Constituição ao invés de agir através dela. As reuniões promovidas para debater e questionar os direitos indígenas e quilombolas sem ouvi-los atenta contra princípios elementares de democracia e afronta a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Essa atitude de desconhecer ou ignorar as comunidades indígenas tem se constituído em prática corriqueira dos administradores do Estado. A realização da audiência pública promovida pela Comissão de Agricultura do Senado Federal, em 21 de outubro, na Assembleia Legislativa, foi uma das etapas dos “debates” com a exclusão das populações diretamente afetadas pelas propostas que se anunciam. Vale relembrar que neste evento reuniram-se centenas de agricultores e representantes do agronegócio e que os povos indígenas e comunidades quilombolas sequer foram convidados. Eles participaram por iniciativa própria e, ao se pronunciarem publicamente, foram veementemente vaiados.
No dia 27, seis dias depois, a Casa Civil do governo do Estado promoveu um encontro do Secretário de Desenvolvimento Rural, Ivar Pavan, e outros governistas para dialogar com agricultores e políticos do Rio Grande do Sul sobre as demarcações de terras. Mais uma vez, nenhuma liderança indígena foi convidada.
O fato mais revoltante, associado a esta última reunião, foi o anúncio de que o Governo Federal, através da Funai, e o governo do Estado firmaram um Termo de Cooperação com vistas a por fim aos problemas. Um dos itens deste termo é a suspensão de todas as demarcações de terras indígenas em processo no Estado. Ivar Pavan foi enfático ao dizer que não vão aceitar nenhuma demarcação de terra enquanto não forem atendidas as demandas dos agricultores. Informou ainda que o governador Tarso Genro exigiu do presidente da Funai a imediata paralisação de todas as demarcações de terras. Entende-se, assim, porque Tarso Genro, enquanto exerceu a função de ministro da Justiça, não demarcou nenhuma terra indígena no Rio Grande do Sul.
É importante salientar que essa proposta não passa de retórica, uma vez que não compete ao governo estadual requerer a suspensão de demarcações de terras, posto que, no item XIV do Artigo 22 da Constituição Federal se estabelece a competência privativa da União para legislar sobre as populações indígenas. Caso a Funai se submeta a pressões políticas estará agindo contra os interesses da União e poderá ser responsabilizada por não cumprir com as atribuições que lhe são imputadas e que definem, em grande medida, a sua função e a razão de sua existência.
Outro exemplo que reafirma a postura intransigente do governo com relação aos povos indígenas vincula-se à criação de um Grupo de Trabalho, no âmbito da Casa Civil do Estado, para “Avaliação e formulação de alternativas para as áreas indígenas e o aperfeiçoamento das políticas públicas destinadas às comunidades indígenas no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul”, sem a necessária presença ao menos de um representante indígena.
Os resultados deste grupo de trabalho foram apresentados através de um relatório que visa, entre outras coisas, enaltecer a gestão do ex-governador Olívio Dutra que ocorreu há 10 anos. O relatório omite as ações dos dois governos subsequentes; anuncia que a partir do próximo ano serão resolvidas as questões através da liberação de verbas financeiras, especialmente para a indenização das famílias não indígenas que vivem sobre terras demarcadas, e que serão investidos recursos públicos para acabar com o déficit habitacional nas áreas indígenas.
Se o governo do Estado assim procedesse, estaria apenas cumprindo uma obrigação legal que é indenizar famílias de agricultores que foram assentadas indevidamente nas terras indígenas (por culpa do Estado) e auxiliando o Governo Federal a melhorar as habitações indígenas.
Mas não é o que de fato vem ocorrendo. O relatório apresentado pelo GT da Casa Civil expressa, na página 11, o seguinte: “De outra banda, ainda que se trate de matéria diversa àquela que exclusivamente compete à Casa Civil, registramos de forma consensuada com todas as secretarias e integrantes da base do governo, a permanente necessidade de reformatação legislativa do CEPI, bem como opinamos pela imediata substituição de sua coordenação, a qual vem reiteradamente articulando as comunidades indígenas em desfavor da institucionalidade, além de empreender conduta denuncista junto ao MPE, MPF e FUNAI abdicando de, efetivamente, buscar construir de forma coletiva as soluções que se impõem àquela coletividade”.
Sem nenhuma dúvida, este parágrafo visa cercear e impor limites à atuação do CEPI (Conselho Estadual dos Povos Indígenas). Este Conselho foi criado pelo governo do Estado e deveria se constituir num espaço de controle social a ser exercido pelas lideranças e representantes indígenas, e se constituir em fórum de discussão das políticas destinadas às populações indígenas, bem como para pensar e planejar as ações do Estado tendo em vista sua contribuição junto ao Governo Federal na execução das políticas públicas. Além disso, o CEPI deveria acompanhar e fiscalizar o Governo Federal no que se refere aos procedimentos de demarcação das terras, a sua proteção e fiscalização.
Alega-se no relatório da Casa Civil que o CEPI está empreendendo uma postura denuncista e faz um desfavor a institucionalidade. Lamentável que uma manifestação desta tenha origem em um grupo de trabalho constituído por servidores e assessores de um governo dito “democrático e popular”. Lamentável que haja censura a um Conselho do Estado quando este cumpre com suas atribuições. É também lamentável que o relatório tenha sido acatado de forma imediata, sem nenhuma discussão ou debate com os demais conselheiros (17 indígenas Kaingang, 17 Guarani e um Charrua) quanto à substituição de sua coordenação. Vale ressaltar que a coordenação é composta por um representante Guarani, um Kaingang e uma secretária executiva, cargo e função designados pelo governo do Estado. A secretária executiva Sônia Lopes foi afastada do Cepi no dia 26 de outubro de 2011.
Santiago Franco, uma das lideranças do povo Guarani no Estado do Rio Grande do Sul, mesmo sem ter sido convidado para participar de reunião (27/10/2011) promovida pelo governo com os representantes dos agricultores e políticos, depois de ouvir os discursos contra os direitos indígenas, pediu permissão para falar e, com lamento, se pronunciou: “Se suspenderem as demarcações, que já têm processos muito demorados, qual será o futuro das comunidades indígenas? Vamos continuar por mais 100 anos em barracos de lonas, na beira das estradas? Essa atitude do governo em pedir a paralisação das demarcações vai afetar a nossa vida, vai matar mais o nosso povo”.
É esta a solução que o governo do Estado do Rio Grande do Sul propõe para os problemas indígenas e quilombolas?
Porto Alegre, RS, 02 de novembro de 2011.
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