Fenômeno curioso: as chamadas Organizações Não-Governamentais cada vez mais dependem de recursos governamentais. Embora existam ONGs sérias, é impossível dissociar crescimento do setor à terceirização e à privatização do Estado.
Gilberto Maringoni*
Em boa hora, a presidenta Dilma Rousseff suspendeu repasses de recursos públicos a entidades privadas “sem fins lucrativos”, por 30 dias. A medida acontece depois de suspeitas de irregularidades em convênios firmados entre o Ministério do Esporte e as chamadas Organizações Não Governamentais (ONGs). De sua parte, o novo ministro do Esporte, Aldo Rebelo, afirmou que não fará novos contratos com entidades desse tipo. Sua intenção é estabelecer parcerias com prefeituras e outros órgãos públicos.
O ato talvez jogue luz sobre relações nem sempre transparentes que envolvem o setor público e a iniciativa privada.
É preciso dizer desde logo que não se pode generalizar a avaliação sobre as ONGs. Muitas são sérias e desenvolvem trabalhos relevantes em várias áreas. O ponto que se discute aqui é outro. Trata-se do fato do Estado abrir mão da prestação de serviços próprios do poder público e colocar em seu lugar entidades privadas para realizar tais tarefas.
Quantas são
Organizações Não Governamentais existem desde os anos 1950, quando a maioria era ligada a áreas de cooperação internacional e trabalhos religiosos. Nos anos 1970 e 1980, as ONGS, financiadas por entidades internacionais destacaram-se na luta pelos direitos humanos no Brasil.
O IBGE e o Ipea realizaram há alguns anos um levantamento sobre as ONGs existentes no Brasil, denominado As Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil 2005. Contaram, para isso, com o auxílio da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong). A pesquisa revelou existirem à época 338 mil Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil) em todo o país.
Um aspecto da pesquisa chama atenção: “As instituições mais antigas, criadas até 1980, correspondem a apenas 13,1% do total das Fasfil [cerca de 44 mil]”. Na década seguinte, o crescimento foi rápido. Em 1996, havia 107.332 delas. Seis anos depois, já se contavam 275.895. E em 2005 chegava-se ao total de 338.162. Não se tem notícia de levantamentos mais recentes.
O crescimento e as leis
As ONGs cresceram especialmente depois de quatro mudanças na legislação realizadas no governo Fernando Henrique Cardoso. São elas a Reforma do Estado (1995), a Lei das Organizações Sociais (1998), a Lei das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (1999) e a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000).
A principal das medidas foi a Reforma do Estado. Ela explicitamente terceiriza tarefas próprias do poder público e dá forma legal a um ente não definido, como se vê no trecho abaixo:
“A estratégia de transição para uma administração pública gerencial prevê (…) a elaboração (…) de projeto de lei que permita a ‘publicização’ dos serviços não-exclusivos do Estado, ou seja, sua transferência do setor estatal para o público não-estatal, onde assumirão a forma de ‘organizações sociais’”.
Ninguém consegue explicar ao certo o que seria “setor público não estatal” ou “terceiro setor”, algo nem estatal e nem privado. A contradição se escancara na definição das chamadas “organizações sociais”, presente no texto. Estas seriam “entidades de direito privado que, por iniciativa do Poder Executivo, obtêm autorização legislativa para celebrar contrato de gestão com esse poder, e assim ter direito a dotação orçamentária”.
A Reforma de 1995 definiu as Organizações Sociais (OS) e a lei de 1999 criou as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPS). Genericamente, ambas são modalidade de ONGs criadas por empresas, que passaram a assumir a gestão de bens públicos como hospitais, museus, parques e outros, numa modalidade de privatização branca.
O setor público, num Estado de direito democrático, deve ter políticas universais, baseadas em direitos extensivos a toda sociedade, sem discriminação de espécie alguma. Ação pública é, por definição, universal. Os serviços das ONGs, OSs e OSCIPs não são universais, mas focados. Como o texto da Reforma do Estado diz, elas são “entidades de direito privado”. Quem manda nelas são suas diretorias, seus associados ou seus patrocinadores. Portanto não são instituições públicas. Integram o mundo da iniciativa privada, algo mais classificável do que o nebuloso “terceiro setor”.
Engessando o Estado
A Lei de Responsabilidade Fiscal, por sua vez, praticamente engessou os investimentos e gastos do Estado, impedindo-o expandir seus serviços. O objetivo é gerar superávits destinados ao pagamento das dívidas financeiras. Ao mesmo tempo, a Lei escancarou a porta da terceirização.
Isso é dito com todas as letras no artigo 9: “Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida “.
Para impedir gastos considerados excessivos, a lei diz em seu artigo 19: “A despesa total com pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá exceder os percentuais da receita corrente líquida, a seguir discriminados: I – União: 50%; II – Estados: 60%; III – Municípios: 60%”.
Com isso, a redução das contratações via concursos e a diminuição do número de servidores públicos passou a ser uma virtude do administrador. Sem condições para atender a demanda por serviços públicos, a saída dos governantes passou a ser terceirizar ações próprias do Estado, não limitadas pela lei. Hoje em dia, praticamente não há governo de estado ou prefeitura que não tenha uma profusão de ONGs, OSCIPS e OSs atuando em serviços que deveriam ser públicos, oferecidos pelo Estado.
A possibilidade de contratar ONGs, para realizar essas tarefas mudou a forma de sustentação da maioria desses organismos, que até então sobreviviam, em sua maior parte, com recursos externos.
Dilemas da sustentação
A Associação Brasileira de ONGs (Abong), lançou no ano passado um interessante livreto sobre o financiamento de tais entidades. DenominadoSustentabilidade das ONGs no Brasil: acesso a recursos privados, o documento afirma que “ao longo de mais de duas décadas, abrandaram-se de fato as resistências das ONGs às parcerias com governos e, atualmente, a Abong assume como bandeira um marco legal que estabeleça regras republicanas para o acesso de organizações da sociedade civil aos fundos públicos”.
O percentual das organizações que depende de convênios junto com o Estado é crescente, segundo a Abong: “Os recursos públicos nacionais são uma realidade cotidiana da maioria absoluta das ONGs associadas à Abong”, diz o texto. “Em 2007, 60,4% das associadas possuíam recursos públicos federais em seus orçamentos, 30,2% contavam com recursos municipais, e 28,3% afirmaram ter recursos estaduais”. O documento frisa ainda que “os recursos públicos federais são o segundo tipo de fonte mais acessada pelas associadas à Abong, ficando atrás apenas da cooperação internacional, cujo acesso é de 78,3% nos orçamentos de 2007”.
Recursos externos
No entanto, a denominada “cooperação internacional” tem se reduzido acentuadamente nos últimos anos. A elevação do Brasil à condição de BRIC e de sexta economia mundial mostra às agências financiadoras que os casos mais extremos de pobreza a merecer assistência estão em outras partes do globo, como na África subsaariana e nos países pobres da América Latina.
Some-se a isso a situação de crise na Europa, que tem levado governos e empresas a reduzirem drasticamente seus repasses a entidades assistenciais.
A Abong também vê dificuldades na captação de recursos privados para as ONGs. Para a maioria das entidades listadas pelo estudo, “não é o caso, como poderiam sugerir alguns, de buscar no setor privado uma fonte que substitua os recursos da cooperação internacional”.
Se eles podem…
A Associação vale-se, então, de um discurso sinuoso para justificar sua defesa da busca de dinheiro público: “Em sociedades capitalistas, o setor empresarial sempre acessa, de formas diversas, recursos estatais, sem que isso seja um problema, parecendo ser apenas uma lógica quase natural”.
Não fica claro se a Abong condena ou não tais práticas empresariais, mas sua conclusão é lógica: se eles podem, por que não nós?
A certa altura, é feita uma interessante constatação: “Não é possível deixar de considerar também que a eleição, a partir especialmente da década de 1990, de governos identificados com o chamado ‘campo popular- democrático’ cria correlações políticas diferenciadas que possibilitam maior proximidade entre as concepções de políticas públicas que tais governos instituem e as organizações e movimentos da sociedade civil brasileira”.
Curiosa leitura… Os anos 1990 foram justamente aqueles em que se impôs a ferro e fogo o projeto neoliberal no Brasil, através de uma profunda mudança no papel do Estado.
Dinheiro natural
Em seu documento, a Abong busca transformar uma possibilidade – o acesso a recursos públicos – em algo natural: “Durante a década de 1980 e meados da década de 1990, havia um questionamento da legitimidade com relação a esse acesso. Hoje, essa legitimidade não só é assegurada, como a luta é para que ela se efetive em políticas claras e democráticas. De um dilema nos discursos e ações das ONGs, o acesso aos recursos públicos se transforma em um direito”.
Sim, está escrito: “um direito”.
Um levantamento da própria Abong diz o seguinte: “Se, nos orçamentos de 2003, 16,7% das associadas tinham de 41% a 100% de seus orçamentos vindos dos recursos públicos federais, em 2007 esse percentual sobe para 37,4%”.
Em sua Carta de princípios , a entidade defende “autonomia das suas associadas e da própria Abong em relação ao Estado, aos governos, às Igrejas e aos partidos políticos”.
Tudo bem. É um direito que lhes assiste. Mas como organismos que buscam financiamento oficial podem ter “autonomia em relação ao Estado”? Não se trata de um jogo de raciocínio. A questão é pertinente: a quem as ONGs se reportam? Aos seus proprietários, sócios ou financiadores?
Apelo surpreendente
Por fim, é no mínimo contraditório que entidades sérias, que se opõem decididamente ao modelo neoliberal, como a Cáritas Brasileira, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a União Nacional de Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes) e outras venham a público defender o financiamento público para as ONGs. Em um texto intitulado “Carta Aberta à Presidenta da República Dilma Rousseff”, datada de 28 de outubro (), essas e outras entidades dizem o seguinte:
“(…) nos surpreenderam notícias veiculadas pela mídia de que o governo federal estaria preparando novo decreto suspendendo todos os repasses para organizações não governamentais, a fim de proceder em determinado tempo a sua avaliação e cancelamento daqueles considerados irregulares. Tememos que a maioria das organizações sem fins lucrativos sejam penalizadas injustamente. Se o governo entende que é necessário organizar uma força tarefa para avaliar a qualidade dos convênios em vigência, poderia fazê-lo sem que fosse necessária a suspensão de repasses, o que pode causar graves problemas àquelas entidades que estão cumprindo regularmente suas obrigações”.
Há um elemento correto no texto: está em curso uma generalização perigosa, envolvendo trabalhos honestos e outros nem tanto. Mas a base de raciocínio – a defesa das terceirizações – é incoerente para quem se coloca contra a política de privatizações.
É possível que a suspensão dos repasses contribua para que se comece a desprivatizar o Estado e a fazer com que as Organizações Não Governamentais sejam, de fato, não-governamentais. E que se aprofunde o debate sobre o papel e o caráter público do Estado.
—
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5281