“Não estamos extintos e não somos bichos”

Reduzido, povo Avá-Canoeiro do Araguaia em luta por sua sobrevivência

Renato Santana, de Brasília

Tapwri é uma jovem magra, de longos cabelos negros, lisos, e olhar corajoso. Tapwri é índia Avá-Canoeiro do Araguaia e vive em terras Karajá no sudeste de Tocantins (TO) – o restante de sua família vive em aldeias na Ilha do Bananal, território Javaé, no mesmo estado. Tapwri fala a língua originária, conhece a história e cultura dos Avá e luta por um futuro no território de onde seu povo foi expulso de forma cruel e violenta. Tapwri não está extinta. Os Avá-Canoeiro do Araguaia não estão extintos e em julho quebraram o silêncio que há décadas os mantinham em completo esquecimento para a burocracia dos escritórios de Brasília (DF). “Não estamos extintos e não somos bichos”, disse Tapwri durante a sessão plenária da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), em Sobradinho (DF).

Quase um mês depois, no último dia 11 de agosto, foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) portaria da Fundação Nacional do Índio (Funai) que constitui Grupo Técnico (GT) “com o objetivo de realizar estudos” para a identificação e delimitação da Terra Indígena Avá-Canoeiro do Araguaia, no município de Formoso do Araguaia (TO). A coordenadora do GT será a antropóloga Patrícia de Mendonça Rodrigues, a principal responsável pelo ressurgimento da questão dos Avá. Por intermédio de um estudo dela é que a Funai definiu a criação do GT. Enquanto estudava os Javaé, com quem conviveu em períodos intercalados durante 20 anos, a antropóloga descobriu os Avá e o interesse deles pela Mata Azul, terra próxima a Ilha do Bananal.

“A Mata Azul foi o último refúgio dos Avá-Canoeiro do Araguaia antes da atração feita pela Funai (em 1972). Para lá eles fugiram nos anos 1960, mas conforme registros documentais e dos Javaé, os Avá já circulavam por aquela região há muito tempo”, explica Patrícia. O trabalho da antropóloga será o de comprovar que a Mata Azul é área tradicional dos Avá, com a demonstração da finalidade e necessidade do território para o povo. O relatório a ser produzido será fundamental para o início do processo de demarcação e homologação. A área, ainda não definida, está ocupada por um assentamento do Incra.

O assentamento foi criado na Mata Azul para os desintrusados da Ilha do Bananal, onde vivem os Javaé. “Muitos posseiros têm interesse de sair porque é uma terra que passa boa parte do ano alagada, inundada. Apesar disso acho que terá conflito. Os posseiros estão lá há cerca de 15 anos”, acredita Patrícia. A criação do GT representa uma importante reviravolta para os Avá – mesmo que ainda exista pela frente um longo caminho para o retorno dos indígenas ao território originário. “Precisamos da terra porque temos um plano de vida para lá. Onde estamos não podemos plantar ou falar a nossa língua”, ressalta Tapwri.

Passado de massacres

Os Avá-Canoeiro do Araguaia, nome provisório, pois a ideia é que o próprio povo defina como quer ser chamado, viviam nas cabeceiras do rio Tocantins quando foram encontrados, durante o século XVIII, pelos primeiros colonizadores do centro do país. Falavam Tupi-Guarani e se negaram a fazer o contato pacífico com os brancos. Por conta disso, data dessa época o início do massacre dos Avá que chega até aos anos 1970, década do contato com parte do grupo, já disperso e fragmentado, que hoje tem os descendentes, entre eles Tapwri, lutando pelas terras da Mata Azul. Esse grupo, o Araguaia, que permanece em Tocantins, ao fugir do contato e dos massacres impetrados pelos colonizadores, durante o século XIX, passa a disputar territórios com os Javaé e Karajá. Tem início aí uma briga histórica entre esses povos.

Complexo pensar que hoje os 26 Avá sobreviventes vivam em terras de inimigos históricos. Mais ainda para eles próprios, que vivem sob severas limitações na extração de recursos e alimentos num chão que não lhes pertence. O fato é que os Avá, desde o contato no século XVIII, passaram a viver feito “nômades” (abandonaram a agricultura e se restringiram à caça e coleta) nas matas da região e sob intensa realidade de violência – seja com outros indígenas, seja com a sociedade envolvente. Passaram a ser chamados de ‘Cara Preta’ e os conflitos com criadores de gado, invasores da terra, fez aumentar a perseguição aos indígenas porque por alguma razão, talvez pela dificuldade em buscar alimento, passaram a matar bois e cavalos. Passaram a ser caçados feito animais e na inóspita Mata Azul, entre os rios Javaé e Formoso do Araguaia, seguiam vivendo.

A mata ficava dentro da fazenda Canuanã. No início dos anos 1970, os proprietários, a rica família Pazzanese, entrou num acordo com o banco Bradesco para a criação de gado e a criação de uma fundação, hoje em dia muito conhecida e ainda instalada no local. Coincidência ou não, a Funai organiza uma Frente de Atração para contatar os Avá da Mata Azul. Israel Praxedes Batista foi o primeiro sertanista deslocado ao trabalho. Acaba substituído por Apoena Meireles: num tempo recorde, seis Avá são atraídos e um ano depois outros quatro. O contato realizado pela equipe da Funai foi brutal e violento. A antropóloga Patrícia levantou boletins oficiais da época e constatou que o órgão omitiu uma verdadeira caçada aos Avá.

“Além de fogos de artifício, mencionados na literatura, a Frente de Atração reagiu com tiros e uma menina de oito anos foi morta, fato nunca divulgado”, escreve Patrícia em artigo publicado no livro Povos Indígenas Isolados na Amazônia (2011:151) – parte do relatório feito pela antropóloga e em análise na Funai. Levados para a sede da fazenda Canuaña, foram jogados (dois homens, uma mulher e três crianças) num quintal cercado e expostos ao público.

Durante dois anos os Avá viveram em acampamentos. Para completar, a Funai, além de não demarcar nenhum território para o povo, contratou os Javaé, inimigo histórico dos Avá e que compunham a Guarda Rural Indígena (Grin), para vigiar os Avá. Intensificou assim um conflito histórico. Não satisfeita com o estrago causado, o órgão, em 1976, transfere os Avá para a aldeia Javaé Canoanã.

 

Conforme pesquisas da antropóloga Patrícia, os Avá foram assimilados culturalmente pelos Javaé como wetxu, ou seja, inimigos que eram derrotados em guerra e se tornavam cativos e serviçais dos vencedores. “O Estado brasileiro precisa reparar os erros que cometeram com os Avá, inclusive ao intensificar o conflito entre eles e os Javaé. Eles foram massacrados e retirados à força da Mata Azul, depois de décadas de mortes, assassinatos e privações”, defende Patrícia.

Projeto de futuro

Tapwri não gosta de lembrar o passado. Detém-se no futuro e na luta pelo retorno ao território dos Avá, a Mata Azul. “Tiro forças do meu avô, que sempre contou nossa historia, desde que eu era pequena, e aos nossos filhos que estão chegando. Eles precisam de futuro e nós temos um plano de futuro para nossa terra”, diz Tapwri. O avô da jovem indígena é Tutao. Ele, a avó de Tapwri e mais um tio estavam no grupo contatado pela equipe de Apoena. Tutao lembra em detalhes de como eles foram pegos e de todo caminho até aquele dia. Conta que dormiam de dia e se movimentavam à noite pela Mata Azul.

Para Tapwri, no entanto, a humilhação continua: a Fundação Bradesco permite que os indígenas peguem as cabeças de gado jogadas fora num lixão depois do processo de abate. “Isso é horrível, não é vida. A Funai precisa devolver nossas terras. Ninguém tem trabalho no meu povo e vivemos da caça e da pesca. Às vezes, vendemos um peixe para comprar arroz”, diz Tapwri. A área da saúde também é feita de desassistência: um sobrinho de Tapwri ganhou, há três anos, um aparelho de audição – sofre de surdez. O equipamento quebrou e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) diz não ter recursos para comprar um novo ou fazer o conserto.

“Contamos nossa história aos mais novos para que eles nunca tenham vergonha de nosso povo e queremos nossa terra para eles não serem humilhados como nós fomos”, encerra Tapwri, olhando as crianças Avá que corriam num imenso gramado verde.

http://brasildefato.com.br/node/7134

 

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