Caos em Altamira: sem-tetos ocupam terreno da Eletronorte

Cerca de 90 famílias oriundas de bairros que serão alagados pela construção da Usina de Belo Monte ocuparam terreno que, segundo à Polícia Civil, pertence à Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A (Eletronorte), na parte alta da cidade de Altamira, no Pará.

Ruy Sposati

De Altamira (PA)

Como na ocupação anterior, tanto a crescente bolha imobiliária como as incertezas sobre as indenizações das populações mais empobrecidas de Altamira vem carregando o clima entre a população e gerando êxodos espontâneos na cidade. “A coisa havia piorado muito na cidade com a licença do canteiro de obras. Agora, com a licença de instalação, a situação está beirando a calamidade pública”, argumenta a coordenadora do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, Antonia Melo. “O povo não é besta e sabe que vai ser alagado. Isto está gerando uma situação completamente absurda, onde as pessoas simplesmente estão deixando suas casas para trás, formando grandes grupos de famílias sem teto, a procura de um lar”, observa.

Cão sem dono

A situação fundiária da área ocupada não é de fácil explicação. Ao menos três pessoas físicas ou jurídicas reivindicaram a posse do terreno.

O primeiro deles, Miguel X, agrediu um cinegrafista local com uma foice. Este mesmo proprietário foi à imprensa local reivindicar a posse do terreno e pedir que a polícia tomasse providências quanto à desocupação.

Outro, identificado como Ubiratan e “amigo do proprietário”, intimidava os ocupantes e a imprensa, e discursava para os presentes responsabilizando o Bispo da Prelazia do Xingu, Dom Erwin Kräutler (presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi – e já ameaçado de morte), como o causador dos problemas. “Vocês acham que uma pessoa de Deus teria sido ameaçado de morte? O Bispo é a besta-fera”, bradou para um grupo de homens que olhava a ocupação, próximo à sua caminhonete com placa de Macapá (AP).

A Televisão Vale do Xingu, emissora do político Domingos Juvenil, também reivindica a posse do terreno.

No entanto, após mais de 30 horas de ocupação, chegou ao local a Polícia Militar com um título de propriedade do terreno. Ali, argumentava-se que, em realidade, o terreno é da Eletronorte, teoricamente solucionando o embróglio. O delegado garantiu aos moradores que o documento era legítimo, embora o papel que possuísse em mãos fosse apenas uma cópia gasta pelo tempo, o que não permitia uma análise. Também a polícia argumento se tratar de flagrante, embora os ocupantes estivessem lá há mais de um dia.

Amedrontados pelo contingente policial, os sem-teto pediram ao major da PM e ao delegado da Polícia Civil que aguardassem a presença da Defensoria Pública para mediar o conflito. No entanto, os militares entraram no terreno e removeram os sem teto antes que um defensor público pudesse chegar ao local.

Todas as ferramentas de trabalho foram recolhidas pela PM e levadas para a Delegacia da cidade. Haviam crianças que acompanhavam os pais no trabalho de limpeza dos terrenos. As famílias saíram de maneira pacífica do local, sem nenhum tipo de resistência. Segundo participantes do ato, a Polícia Militar utilizou spray de pimenta depois que o território já havia sido desocupado e todas as famílias já haviam saído da propriedade.

Dois sem-teto foram detidos pela Polícia Militar por desacato a autoridade. O jornalista do movimento Xingu Vivo Para Sempre também foi levado pela Polícia Civil e indiciado por esbulho possessório. O defensor público Luis Carlos da Cruz Filho acompanhou o depoimento dos três detidos. Todos foram liberados, mas devem responder nos próximos dez dias.

Silêncio

“Todas estas cenas foram registradas in loco pela imprensa televisiva local. No entanto, por razões distintas, pouco ou quase nada dos fatos foram realmente para o ar”, lamenta o militante da União da Juventude Organizada do Xingu, Welker Ferreira. “O silêncio da mídia é o retrato do trabalho de coronelismo realizado pelo governo e pela Norte Energia em toda a região”, conclui.

O ovo da serpente

“Nos baixões [bairros que serão alagados pela barragem], uns saem porque não podem ficar, outros porque não podem pagar o aluguel. E o motivo principal é Belo Monte. É Belo Monte que está empurrando o povo. O povo não teria porque sair do seu canto, se não estivesse acontecendo essa barragem. É assim que a gente se sente: expulsos”.

Este foi o depoimento de dona Raimunda, de 54 anos, moradora do bairro Invasão dos Padres, para a Defensoria Pública de Altamia, no Pará, na manhã de ontem. Ela é uma das milhares de moradoras e moradores de uma das muitas localizações que irão para debaixo d’água caso a hidrelétrica de Belo Monte seja construída.

Esta fala representa a condição de ao menos 160 famílias que, há cerca de 15 dias, ocupam um terreno em desuso no perímetro urbano de Altamira. Amedrontadas pelo alagamento que a construção da barragem poderá causar caso seja construída, as famílias deixaram suas casas para construir novos barracos.

“Estão vindo pessoas de tudo quanto, fazendo propostas de aluguel muito melhores do que as que a gente paga. Então estão todos sendo forçados a sair”, argumenta F., desempregado. “Aqui, a gente pode ter a segurança de que isso não vai acontecer”.

“Nós perdemos nossas casas por conta de Belo Monte”, conta a atendente J., moradora do Baixão do Tufi. “Eu morava de aluguel. Aumentou, aí eu saí de lá. Estava há um mês no barraco novo, e aumentou de novo. Meu banheiro não era bom. O que eu e o meu marido ganhamos dá pra pagar o aluguel, mas não sobra nada. Então a gente teve que sair. É por isso que a gente está aqui”, explica.

Como em Tucuruí

“As pessoas vieram para cá com medo de não receber as indenizações da Norte Energia”, conta N., moradora da Invasão dos Padres. “Vai ficar igual Turucuí. Lá, a maioria das pessoas empregadas eram de fora. Meu pai trabalhou lá, mas a maioria dos vizinhos e amigos não conseguiram emprego, nem foram indenizados, nem receberam casa. Foram abandonados, e é isso o que está acontecendo em Belo Monte. Altamira está vivendo a mesma coisa”, conclui.

Descaso

“Em primeiro lugar, está o mais absoluto abandono por parte da Norte Energia e do governo em relação aos moradores das regiões urbanas que serão diretamente afetadas por alagamento em Altamira”, opina a coordenadora do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, Antonia Melo.

“Quase todos os dias nós visitamos esses bairros, e nunca encontramos uma pessoa que sequer foi procurados pela empresa ou pelo governo”, acusa. Esta leitura é corroborada por diversos sem teto que ocupam o terreno. “Nunca fomos procurados” é a resposta, quando perguntados se receberam algum tipo de proposta de remanejo, indenização ou qualquer outra coisa.

Sem destino

Dois maranhenses se aventuraram a vir para Altamira, na esperança de encontrar empregos. “Vendemos o que a gente tinha. Não conseguimos absolutamente nada, gastamos tudo o que tínhamos no hotel. Não temos nem como voltar pra casa”, explicam.

“A gente não tem onde morar” expõe a família de T. “Na verdade somos três famílias que se juntaram porque o aluguel estava muito caro. Mas é impossível viver na nossa casa com esse tanto de gente, então viemos para cá, pra dividir as famílias de novo, pra cada um ter uma casa”, esclarecem.

Condição

“Olha o barraco em que eu morava [mostra foto no celular]. O aluguel aumentou de 80 pra 250. A casa aqui na frente aumentou de 200 para 600”, conta N., moradora de Boa Esperança. Eu ainda não saí de lá, mas este mês é o último que eu vou conseguir pagar aluguel. E meu vizinho deve vir pra cá também”, ela prevê.

“Os aluguéis vão aumentando de 100 pra 200, 300, 500, mil reais. A gente que mora em Altamira não tem a menor condição de pagar esses valores”, destaca G., desempregado, morador do Baixão X. “Tem muitas empresas vindo, mas os empregos não são pra gente. São pra quem tem formação, quem é de fora. Se fosse pra gente, a gente já deveria ter recebido formação pra assumir os empregos. Agora é tarde”, lamenta.

“Foi chegar o pessoal da Norte Energia e meu aluguel aumentou. Eu estou desemprego há quatro meses. Eu e minha esposa não tivemos opção a não ser vir pra cá”, relata B., também desempregado.

Defensoria

Uma comissão de ocupantes, acompanhados pelo Movimento Xingu Vivo Para Sempre, Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) e Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi à Defensoria Pública pedir que a Justiça intervenha nas ocupações. Afora a falta de acesso ao direito à moradia, todas as famílias sem teto correm o risco de serem despejadas a qualquer momento pela Polícia Militar, que já foi solicitada para que a realizasse a reintegração de posse.

“Nós temos um problema sério de moradia. A população está aumentando e não temos perspectivas de projetos de habitação para agora”, analisa o defensor público de Altamira, Fabio Rangel. Para o defensor, os dois casos de ocupações coletivas são consequências de Belo Monte. “E estes os casos serão objeto de demandas judiciais pra que haja retirada dessas pessoas. Elas irão pra onde?”, conclui.

Na ocasião, uma comissão da Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa Humana, do governo federal, também colheu depoimentos dos ocupantes, concordando que Altamira vive uma situação de absoluta falta de diálogo entre poder público, movimentos sociais e empresas construtoras.

 

http://www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=5644&eid=354

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