Reportagem exclusiva traz mais informações sobre o flagrante de trabalho escravo ocorrido na linha férrea Santos-Mairinque. Isoladas em contêineres no meio da Serra do Mar, vítimas enfrentavam degradância, descaso e ameaças
Por Maurício Hashizume
São Paulo (SP) – O flagrante de trabalho escravo na manutenção da Ferrovia Santos-Mairinque, administrada pela América Latina Logística (ALL), ganhou destaque em dezembro último por dois motivos principais: pela prisão em flagrante do dono de empreiteira menor subcontratada para fazer o serviço e por ter ocorrido nas cercanias da maior cidade do país.
O caso reserva, porém, outros traços e pontos complementares que não vieram à tona na época do ocorrido. Novos detalhes – e o posterior comportamento das empresas e agentes envolvidos – são apresentados nesta reportagem especial da Repórter Brasil, que acompanhou todos os lances da operação.
Ao final da fiscalização, 51 trabalhadores foram libertados pela fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP), em ação conjunta com a Polícia Civil e com a Secretaria Estadual de Justiça e Defesa da Cidadania (SJDC). Todos atuavam na manutenção de trilhos e dormentes em trecho da ferrovia concedida à ALL que atravessa o Parque Estadual da Serra do Mar, entre Embu Guaçu (SP) e Santos (SP).
O quadro de aliciamento, retenção de documentos, cerceamento da liberdade e condições insalubres e desumanas (marcada pelos alojamentos precários e isolados em contêineres no meio da mata) – pintado pelo delegado Laerte Marzagão na entrevista coletiva convocada no dia da ação – ganha uma dimensão mais concreta nos depoimentos dos trabalhadores.
“A única lei que vale mesmo aqui é a de que o trem não pode parar”, declarou uma das vítimas à Repórter Brasil. O próprio recrutamento das vítimas – boa parte delas vindas de Santo Amaro da Purificação (BA), atraídas, sob ardilosas promessas, por um intermediário da M S Teixeira (quarteirizada da ALL, que contratara inicialmente a Prumo Engenharia) que recebera R$ 50 por cada trabalhador arregimentado – teria sido solicitado, com urgência, para suprir a lacuna deixada por uma outra subempreiteira que perdera espaço na prestação de serviço. Esta última foi preterida por causa da verificação de tombamentos de composições em trechos por ela conservados, sem qualquer relação com as aviltantes condições trabalhistas oferecidas.
“O nosso trabalho garantia o funcionamento de uma das principais vias de circulação de mercadorias que movimenta o Brasil. Mas, assim como nas guerras, só os ´sargentos´ são lembrados. Nós, que estamos na ponta fazendo o nosso serviço, não somos valorizados”, completou outro trabalhador. Os libertados recordaram de episódios em que, para recolocar vagões descarrilados de volta para os trilhos, fizeram intenso esforço físico desde a tarde de um dia até a manhã do outro, sem pausa ou refeição.
Nos dias normais de trabalho, conservadores de vias e auxiliares começavam os trabalhos às 7h e seguiam até às 17h, de domingo a domingo, com supostos descansos de oito dias a cada dia três semanas (22 dias). Se quisessem tirar as folgas asseguradas por lei, contudo, eles eram obrigados a desocupar os alojamentos mantidos pelos empregadores, como confirma outra vítima libertada. “Fui pedir a folga e disseram assim: ´Se quiser, tire. Mas fora do alojamento´. Eu não tinha onde ficar fora do alojamento. Nem o que comer. A única opção era continuar trabalhando”.
O requinte do aliciamento em Santo Amaro da Purificação (BA) incluiu uma viagem de avião da capital baiana Salvador (BA) até Campinas (SP). Um preposto foi buscar diferentes grupos que chegaram ao longo de agosto de 2010 no Aeroporto de Viracopos. O combinado era de que, cumprida a tarefa, eles também retornariam em transporte aéreo. Além dos migrantes baianos, havia entre os 51 libertados moradores de São Vicente (SP), Embu Guaçu (SP) e outras localidades da região de cumprimento do serviço.
Quando chegaram ao local efetivo de trabalho, deram-se conta de que a situação seria outra. A promessa inicial de salário era de R$ 1 mil, com carteira assinada, por um período seguido de 22 dias de trabalho, seguido de oito dias de descanso. Ao final de mais de dois meses, alguns tinham recebido apenas R$ 680. A insatisfação aumentou em novembro do ano passado. Parte do grupo desistiu de permanecer no local e acabou voltando para a Bahia por conta própria. Outra parte foi deslocada da Serra do Mar para alojamento mantido no centro de Embu Guaçu (SP). Foi lá que a fiscalização encontrou as primeiras vítimas da escravidão contemporânea.
Testemunhos
Na chegada, a equipe de fiscalização foi recebida com uma enxurrada de relatos e informações sobre as situações extremas que tiveram de enfrentar na manutenção da Ferrovia Santos-Mairinque. O tempo médio gasto entre o pátio de alojamentos instalados na mata – próximo à antiga estação de Engenheiro Ferraz, no km 75 da ferrovia – até o meio urbano era de cerca de 4h, por causa das frequentes paradas do trem no caminho.
Muitos relataram ter passado frio e fome. Quando chegaram aos contêineres, alguns dormiram no chão. Para saciar a fome, tiveram de coletar banana verde no entorno para comer. No início, antes da estruturação da cozinha, marmitas chegavam com comida azeda nos alojamentos de Ferraz e de Pai Mathias, outro ponto isolado de abrigo. O banho só deixou de ser gelado na semana anterior à fiscalização, quando foi ligado um gerador movido a diesel. Antes disso, a água era esquentada na lata em fogueiras.
Para completar a situação, testemunharam agressões físicas de Marcioir Silveira Teixeira, dono da M S Teixeira, contra um dos trabalhadores. Era comum, conforme os testemunhos colhidos, que o próprio respondesse queixas com advertências enfáticas de que era “amigo” de policiais locais. Ameaças derivadas da exposição de facões e armas de fogo também foram registradas. Aliás, de acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, Marcioir permanece preso.
A falta de assistência em casos de adoecimento também motivou muitas reclamações. A dificuldade para o atendimento médico foi realçada no discurso dos trabalhadores. No próprio momento da fiscalização, um dos empregados, encarregado da preparar as refeições, sofria seguidas convulsões, foi socorrido e levado ao Hospital Geral do Grajaú.
Houve testemunhos também de ocasiões em que, perante a exigência de atestado médico por parte do empregador, trabalhadores se submeteram a consultas em alguns postos de saúde da região, mas não encontraram médicos dispostos a assinar documentos dessa natureza. Durante à noite, houve até quem permanecesse trancado nos contêineres de metal que, dentro ou fora, não respeitavam nenhum padrão estabelecido.
Depois do primeiro contato, a fiscalização seguiu para verificar os alojamentos no meio da Serra do Mar, não sem alguma dificuldade. No alojamento de Ferraz, constatou que a situação descrita pelos trabalhadores era de fato de extrema gravidade. As instalações elétricas não tinham nenhum aterramento. Todo o ambiente oferecia diversos riscos de acidentes, inclusive com risco de morte – seja por queda ou por descarga elétrica. A água consumida e os banheiros utilizados eram inadequados. Não estavam sendo seguidas normas de higiene e de ventilação, sem contar a exposição aos insetos. Por tudo isso, o referido alojamento foi interditado durante a operação.
O custo da comida era descontado; até a parte destnada ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) que cabe ao contratante era cobrada à parte. Os próprios empregados recolheram tijolos da estações desativadas para fazer um “piso” na área comum para evitar o contato permanente com a lama. Havia ainda os extenuantes deslocamentos de ida e volta dos trabalhadores, à pé, para as frentes de trabalho no curso da linha, carregando pesadas ferramentas – máquinas, enxadas, marretas, picaretas etc. De acordo com a fiscalização, esses deslocamentos eram de até 14 km. Os resgatados foram acolhidos pela SJDC e depois retornaram para os municípios de origem.
ALL
No primeiro e único comunicado que divulgou sobre o caso até o momento, a principal concessionária envolvida foi categórica em declarar publicamente que o “evento que envolveu a contratação irregular de trabalhadores não contou com a cooperação ou concordância da ALL”.
Depoimentos dados por trabalhadores e pelos próprios funcionários da ALL à Polícia Civil, à fiscalização trabalhista e à Repórter Brasil desmentem essa alegação. Empregados da companhia tinham pleno conhecimento, acompanhavam cotidianamente e até supervisionavam as atividades dos conservadores de via submetidos a condições análogas à escravidão. No alojamento de Pai Mathias, um representante fixo da ALL foi acusado de impedir diretamente o direito de ir e vir dos trabalhadores, impedindo o acesso aos trens, com recursos de truculência e hostilidade.
“O que mais chamou a atenção da equipe foi o nível de degradação a que eram submetidos os trabalhadores, aliado à absoluto descaso da empresa ALL. A empresa mantinha profissionais de alto nível nos locais fiscalizados, sendo beneficiária direta da mão de obra desses trabalhadores. Mesmo assim, não tomou qualquer medida para evitar que essa situação permanecesse”, reforça o auditor fiscal do trabalho Luis Alexandre de Faria, que atuou como um dos coordenadores da operação pela SRTE/SP.
A conexão entre as envolvidas é dissecada no relatório de fiscalização. “Pelo contexto probatório e resultado da auditoria trabalhista efetuada, a empresa ALL – América Latina Logística Malha Paulista S.A deve ser diretamente responsabilizada pelas graves situações apontadas; as relações empresariais mantidas pela ALL com intermediadoras de mão de obra, como a Prumo Engenharia Ltda. ou M S Teixeira & Cia Ltda, prestam-se tão somente ao mascaramento do vínculo empregatício direto com a beneficiária final, e devem ser repudiadas e desconsideradas pelo Poder Público”.
Ao todo, foram 33 autos de infração endereçados à ALL, que se apresenta como a maior empresa de logística com base ferroviária da América Latina. O valor bruto das rescisões de trabalho, também dirigido à concessionária, somou R$ 392,6 mil. A ALL, porém, “se recusou a assumir a responsabilidade pelos contratos de trabalho: as anotações e pagamentos foram feitos em nome da empresa intermediária Prumo Engenharia Ltda.”, segue trecho do relatório de fiscalização trabalhista, que foi encaminhado para outros órgãos públicos como o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2); a Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região (PRT-2) – Ofício de Osasco (SP); e o Ministério Público Federal de São Paulo (MPF/SP).
Contactada, a ALL não respondeu as questões referentes ao caso formuladas pela Repórter Brasil, enviadas há mais de um mês (18 de janeiro). Uma das justificativas apresentadas foi a de que a longa espera por respostas estava relacionada com a dedicação da empresa à organização de sua convenção anual, que acabou sendo realizada de 27 a 29 de janeiro em um hotel de luxo em Florianópólis (SC). A decoração do evento – pontuado por premiações e apresentações de resultados de 2010 – foi inspirada no Cirque du Soleil e contou com palestra do ex-jogador Zico e presença da ex-participante do reality show televisivo Big Brother Brasil (BBB), Priscila Pires.
Prumo
A Promotoria de Justiça de Embu Guaçu (SP) ofereceu acusação formal contra Marcioir, da M S Teixeira, por redução de trabalhadores à condição análoga à escravidão. A denúncia da promotora Maria Gabriela Prado Manssur à Justiça, datada de 30 de dezembro de 2010, inclui ainda Joel da Silva Santos, gerente de Recursos Humanos da M S Teixeira, e Harley de Paula Silva, gerente regional de obras da Prumo Engenharia, que foi contratada pela ALL e subcontratou a MS Teixeira para a manutenção de ferrovias.
Em nota enviada à Repórter Brasil, a Prumo Engenharia atribui o ocorrido principalmente à qualidade insatisfatória da subsidiária M S Teixeira – mesmo que a nota da ALL tenha classificado a Prumo como “responsável” pelos trabalhadores posteriormente libertados.
Fernando Vaz, que assina o comunicado como sócio-gerente da Prumo, “reitera sua comunicação de repúdio e indignação com relação às denúncias de trabalho escravo e aliciamento de trabalhadores em face da M S Teixeira e seu proprietário Marcioir Teixeira Silveira nas frentes de serviço de manutenção da via permanente do trecho entre Evangelista e Paratinga”.
A Prumo enfatiza ainda os mais de 30 anos de atuação no setor “sem máculas na sua conduta” e explica que a “contratação da empresa M S Teixeira foi feita para reforçar o ritmo dos serviços” relativos ao objeto do contrato firmado com a ALL “a partir de agosto de 2010”. Nas palavras do gerente da construtora, a M S Teixeira teve o seu contrato rescindido no início de novembro “por não ter apresentado o padrão de qualidade exigido”. A subcontratação, completou a Prumo, não é prática constante da empresa.
Mesmo assim, a Prumo sustenta que, após a blitz, “prestou todo apoio e assistência aos ex-trabalhadores da M S Teixeira”. A empresa, que mantém sua sede em Formiga (MG), admite ter arcado com as verbas rescisórias devidas, “por se tratar de responsável subsidiária na esfera trabalhista no que se refere aos direitos sonegados, sendo esta a sua única responsabilidade pelo lamentável fato em questão”. Funcionário da Prumo garantiu à Repórter Brasil, porém, que técnicos de segurança de trabalho tinham vistoriado os alojamentos problemáticos um mês antes da interdição.
Sobre a acusação contra o gerente Harley, a Prumo Engenharia afirma que “providenciará sua defesa em momento oportuno”. Em depoimento gravado no ato do flagrante, Joel, que é gerente da M S Teixeira e também foi denunciado pelo Ministério Público Estadual, fez afirmações que colidem com o posicionamento da construtora.
De acordo com Joel, o acerto entre as duas empresas previa que o alojamento e a alimentação dos empregados ficariam a cargo da Prumo, enquanto a M S Teixeira trataria da contratação e pagamento dos salários, sob monitoramento direto e sistemático do pessoal interno da ALL. O aliciamento de trabalhadores na Bahia, segundo o mesmo, teria sido realizado a pedido e com autorização da Prumo. Apesar do rompimento anunciado para o início de novembro, nenhum trabalhador havia sido devidamente remunerado pelos serviços prestados à M S Teixeira e contratado formalmente pela Prumo no momento da fiscalização.
Na versão de Joel, a Prumo é que vinha descumprindo o contrato entre as partes, com sucessivos atrasos de pagamento. Para ele, o acordo firmado não era o mais adequado do ponto de vista jurídico e estava sendo revisado por advogados. Ele concorda que os empregados deslocados para a manutenção da ferrovia nos alojamentos Ferraz e Pai Mathias estavam em situação precária concordava. Do ponto de vista do gerente da M S Teixeira, a responsabilidade era compartilhada entre as duas empresas
Em depoimento exclusivo à Repórter Brasil, Marcioir confirmou ainda já ter trabalhado como quarteirizado para a ALL em pelo menos outras duas oportunidades anteriores. Há alguns anos, ele atuara no mesmo regime de subcontratação na manutenção de rodovias concedidas à ALL no Rio Grande do Sul. A partir dessa experiência, ele montou a empresa M S Teixeira com outros ex-conservadores gaúchos. Em 2009, a empresa conseguira o seu primeiro contrato em São Paulo, para fazer a manutenção de outro segmento da mesma ferrovia mais próximo ao Porto de Santos (SP).
A troca de acusações não poupa ninguém, mas, em certa medida, as próprias envolvidas deixam escapar alguns dos motivos por trás do flagrante na ferrovia. As afirmações dos representantes da M S Teixeira corroboram a inexistência de idoneidade da própria para prestar serviços do gênero. O pagamento dos salários dos trabalhadores registrados pela M S Teixeira dependia inexoravelmente do repasse anterior da Prumo.
Quanto à Prumo, a frase em letras negras gravada no uniforme laranja (foto acima) usado por um dos libertados ajuda a resumir aquilo que a direção teima em refutar: “Você é responsável pela sua segurança”.
No tocante à ALL – que entrou com recurso no Tribunal Superior do Trabalho (TST) contra ação que pede o fim da conservação terceirizada das vias pemanentes e para a qual a reportagem abriu espaço de manifestação -, a incisiva auto-afirmação também acaba sendo bastante explicativa. O lema escolhido para acompanhar a conhecida marca da companhia não dá margem para muita hesitação: “A gente nunca para”.
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