Duas propriedades nas zonas rurais de Itupiranga (PA) e de Brejo Grande do Araguaia (PA) mantinham, ao todo, 35 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Alguns tinham apenas uma mangueira como “alojamento”
Por Bárbara Vidal
Um pé de manga era o alojamento de trabalhadores rurais encontrados em situação de trabalho escravo. Eles faziam parte dos 32 libertados da Fazenda Riacho Doce (antiga Fazenda Lago Azul), em Itupiranga (PA). Entre as vítimas, havia uma mulher e seis jovens com menos de 18 anos.
Como não havia abrigo para todos, pessoas dormiam em redes, sob uma precária cobertura de telha e também sob uma mangueira, confirma o procurador do trabalho Rosivaldo da Cunha Oliveira. Ele participou da comitiva do grupo móvel de fiscalização que esteve no local. A operação foi coordenada pelo auditor fiscal do trabalho Benedito de Lima e Silva Filho.
Os empregados laboravam há aproximadamente um mês e foram aliciados no próprio município. Foram contratadas, em sua maioria, para fazer a limpeza do terreno – serviço conhecido como “roço de juquira” – para a criação de gado. Outras derrubavam a mata com motosserras.
Para que pudessem trabalhar, adolescentes portavam documentos com a data de nascimento alterada. Segundo a fiscalização, a alteração teria sido feita antes da empreitada na Fazenda Riacho Doce. Os seis jovens, que tinham na realidade entre 15 e 16 anos de idade, receberam seus direitos trabalhistas na presença das mães. As fichas de cada um deles foram enviadas ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), para providências necessárias à inclusão de suas famílias em programas sociais.
A jornada era de 8h diárias, mas não possuíam qualquer tipo de equipamento de proteção individual (EPIs) – como botas, chapéus, óculos, luvas e roupas especiais para desenvolverem a atividade. Além disso, utilizavam o mato como banheiro. A única instalação sanitária se encontrava na casa em que o “gato” (aliciador de mão de obra) morava. A fazenda está iniciando a atividade pecuária e ainda não possui sede.
A alimentação dos trabalhadores era escassa. Comumente se alimentavam de café com farofa, fornecidos pelo empregador e consumiam água sem tratamento algum de um córrego próximo à propriedade.
De acordo com o procurador Rosivaldo, quando o grupo móvel chegou ao local, cerca de dez pessoas voltavam à pé para suas residências no núcleo urbano de Itupiranga (PA), a 120 km da fazenda. “Talvez pegassem uma carona na estrada, pois eles não tinham dinheiro para o transporte. Estavam inclusive sem comer desde o dia anterior”, relata.
Mesmo sem sinais de flagrantes ameaças, as vítimas não tinham condições físicas de ir embora sem receber pagamento. “O `gato` buscou os trabalhadores quando os aliciou na cidade, deveriam fornecer o dinheiro ou alguma condução para que fossem embora”, diz o procurador.
Os salários dos trabalhadores, que receberiam por produção, não estavam sendo pagos em dia. Quando a fiscalização chegou, eles estavam sem receber há 28 dias. O “gato” mantinha uma conta pessoal em um comércio próximo à propriedade rural, onde o que comprava aos empregados era descontado posteriormente do que efetivamente recebiam. Ele levava os trabalhadores para este comércio e pagava bebidas alcoólicas como forma de adiantamento para amenizar a insatisfação de alguns deles. Foram apreendidas duas espingardas na área – usadas para caça, de acordo com o proprietário.
Agentes da Polícia Federal (PF) que integravam o grupo móvel identificaram crime ambiental devido ao desmatamento ilegal. A denúncia foi levada ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por meio de relatório.
Foram lavrados 17 autos de infração à Fazenda Riacho Doce, de propriedade de Edson de Souza Ribeiro. O valor de R$ 50 mil das verbas rescisórias foi quitado durante a fiscalização por representante do dono do imóvel rural. A indenização por danos morais coletivos foi fixada em R$ 200 mil e a de danos morais individuais aos adolescentes, em R$ 10 mil para cada um. Uma ação civil pública deve ser protocolada contra os responsáveis.
Barraco de palha
Em outra fiscalização realizada pelo mesmo grupo, outros três trabalhadores rurais foram encontrados em condições análogas à escravidão na Fazenda Rainha do Araguaia, em Brejo Grande do Araguaia (PA).
Há seis meses no local, dois deles eram chamados de “índios”, pois moravam num barraco de palha chamado pelos trabalhadores de “oca”. Não havia proteção alguma quando chovia. Eles viviam sem banheiros e sem água potável. “Eles cozinhavam no chão: era um pedaço de metal com carvão embaixo do chão cavado”, descreve Rosivaldo (veja foto ao lado).
Os trabalhadores compravam a própria comida e EPIs. Eles usavam botas rasgadas, em péssimo estado, no desmatamento da área que seria destinada à pastagem para criação de gado.
O terceiro libertado estava há um mês em outro alojamento precário e isolado. “Ele estava concertando a cerca do local, mas fazia de tudo também”, relata o procurador Rosivaldo. Ele dormia em alojamento que, embora fosse de alvenaria, não tinha banheiro nem água potável. Ele próprio preparava, em condição precária, a refeição no fogão à lenha.
Pessoas dedicadas a reformar as instalações da fazenda iam embora para suas casas de motocicletas. Outros, como um que estava há seis anos no local, estavam bem alojados. E um outro ainda permaneceu no local porque um novo alojamento estava sendo preparado.
Segundo os trabalhadores, o pagamento das diárias era feito pelo empregador. Entretanto, Rosivaldo explica que “não havia controle das jornadas e, como recebiam por área limpa do pasto, trabalhavam durante o dia todo. O que eles pudessem fazer para ganharem mais, eles faziam”.
O proprietário da fazenda, Francisco Herbert Milfont Parente, não estava presente na fiscalização. Ele foi representado pelo irmão, que se comprometeu a registrar todos os trabalhadores e preparar alojamentos.
O procurador Rosivaldo decidiu não propor assinatura de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), por se tratar de casos de escravidão. Ele já apresentou ação civil pública, que tramita na Vara de Trabalho em Marabá (PA), ele solicitou indenização por danos morais de R$ 100 mil a cada trabalhador resgatado, além das verbas rescisórias que somam R$ 10 mil.
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