O segundo dia do III Encontro Continental do Povo Guarani, que acontece na cidade de Assunção, Paraguai, foi marcado pela discussão sobre a diferença dos conceitos de terra e território. O pesquisador e religioso jesuíta Bartomeu Meliá foi o conferencista convida para falar sobre o tema, bem como sobre os caminhos de luta na recuperação e construção para transformação da realidade do povo Guarani.
A reportagem é de Cleymenne Cerqueira e enviada pela assessoria de imprensa do CIMI, 17-11-2010.
A exposição de Meliá começou por volta das 11 horas da manhã e provocou diversos questionamentos nos integrantes das delegações Guarani do Brasil, Paraguai, Bolívia e Argentina, nações organizadoras do encontro. Antes da conferência, argentinos e bolivianos fizeram rezas e rituais de boas vindas, saudando aos demais parentes, reunidos desde ontem à noite no Seminário Metropolitano, localizado na capital paraguaia.
Lugar onde podemos ser quem somos
Meliá, que é pesquisador do Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch e do Instituto de Estudos Humanísticos e Filosóficos, iniciou sua apresentação, expondo de forma resumida a diferença entre os termos terra e território, confundido por muitas pessoas. De acordo com ele terra é algo indispensável, pois sem ela não há território, conceito mais amplo, que é local onde se planta cria animais, constrói casas. Território é o lugar onde se pode ser o que se é: “lugar onde podemos ser quem somos”, afirma.
Esse lugar, a terra, é um elemento necessário para que o Guarani construa sua história e viva suas tradições. Eles têm um conceito muito importante, o conceito de teko, aldeia, que significa “onde nós somos culturas”. Daí a importância do território Guarani, que para existir precisa necessariamente do elemento geográfico – uma mata virgem, com água, córregos e nascentes, aonde possam praticar a pesca, a caça, colocar armadilhas e, sobretudo, plantar.
“Em diversos países temos grandes terras, grandes aldeias, mas nem por isso têm-se um território. Em muitos desses espaços não há sequer um pedaço de madeira, lenha para cozinhar. Como os Guarani vão viver suas tradições, rituais e celebrações sem seus tekohás? Essa é a grande diferença entre terra e território”, afirmou.
Memória – instrumento de luta
Meliá fala ainda sobre a importância da memória e dos relatos para a luta do povo Guarani. “Não existe tekohá e nem história sem memória. Se o povo não tem memória ele não se recorda de quem é e assim fica muito difícil a luta. Nos tribunais, na hora das demarcações é necessário ter argumentos históricos, é necessário mostrar que são Guarani”.
Em praticamente todos os povos, a tradição oral é muito importante. É também por meio dos relatos – dos mais velhos para os mais novos – que se diz a que povo e história pertence. É indispensável para as lutas do dia-a-dia que os saberes e tradições, passados de geração em geração, permaneçam vivos e fortes entre os indígenas.
“Essa memória é a memória do futuro e também do passado, pois é como a raiz que fica sob a terra e faz a árvore dar frutos, dar flores. O desenvolvimento, a expansão dessa memória é o futuro do povo, é aí que encontram a raiz de sua história e a expansão de seus problemas”.
A memória também é fonte importantíssima para os processos de demarcação das terras indígenas. “Por que se demarca terra? Se demarca terra porque é um hábito tradicional do povo, que vive a ecologia do tekohá, do modo de ser, o lugar onde eles podem ser Guarani”.
Três grandes mudanças
Bartomeu Meliá aponta três grandes mudanças para o povo Guarani. Essas mudanças começaram com a chegada dos “outros” (os não Guarani), que ocuparam o território desse povo a cerca de 50 anos, e vieram com a tendência de substituir os indígenas que ali viviam. “Hoje você está aqui, amanhã não está mais porque essas pessoas querem montar uma cidade. Então, a primeira grande mudança é a substituição de populações e, naturalmente, junto com ela a chegada de novas cidades”.
A segunda grande mudança se dá no campo da economia. Se antes os Guarani viviam basicamente da agricultura e do sistema de reciprocidade (troca de produtos), com a criação de novas cidades e a vinda de diversas companhias, ele passa a ser utilizado como mão de obra barata em muitas delas e a ser assalariado. Além desse aspecto, é importante mencionar ainda que a natureza de onde antes se tirava a pesca, a caça e produtos para a subsistência familiar passa a ser vista como forte fonte de riquezas. “É diferente, por exemplo, o mate e as toras, a madeira de lei”.
Nesse tipo de economia, a pequena agricultura perde lugar para as grandes plantações, a monocultura, o agronegócio. No Brasil, boa parte das matas e territórios, hoje, foi ocupada por lavouras de soja, cana de açúcar, plantações de eucalipto ou simplesmente pastos. “Esse sistema não favorece em nada as populações indígenas, pelo contrário, são verdadeiras fábricas de pobreza para as pessoas que muitas vezes são expulsas de suas terras. Entram também o dinheiro, os bancos”.
A última mudança também se relaciona á economia, mas propriamente dita ao sistema de distribuição. Não há mais reciprocidade, troca e gratuidade. Impera agora, de acordo com Meliá, um sistema de vingança: “você tirou de mim eu vou tirar de você. Te dou um casaco se você me der uma arroba de milho”.
Participação
Após a fala do pesquisador, houve um tempo para perguntas e debates. Diversos participantes fizeram questionamentos, entre eles Faride Mariano de Lima, cacique Kaiowá da comunidade Laranjeira Ñanderu, que perguntou a Meliá o que um antropólogo poderia fazer para acelerar a demarcação da terra tradicional de seu povo, que vive acampado a beira da BR 63, que liga os municípios de Dourados e Rio Brilhante.
Mesmo não sendo antropólogo, como fez questão de dizer, Meliá disse que o papel desse profissional é importante para o acumulo de documentos, denúncias e argumentos históricos, o que ajuda no processo. “O antropólogo contribui com a fonte documental, mas é importante destacar que a luta é dos Guarani Kaiowá”.
No fim do dia os participantes se reuniram em grupos para discutir temáticas relacionadas à conferência. Os encontros aconteceram entre os participantes de cada delegação e as discussões foram encaminhadas em plenária que aconteceu no início da noite. O dia hoje acabou com festa e celebração, organizada pela delegação argentina.
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