Marina também participou do Movimento de Educação de Base – MEB, criado por Dom Távora, do qual foi secretária geral. “Esse foi um projeto fabuloso e beneficiou o Nordeste, Amazonas e Centro-Oeste”, lembra. O MEB constituía-se em um programa de educação por meio do rádio. “Essa atividade foi se aperfeiçoando e chegamos a oferecer aulas de alfabetização e fixação de linguagem. Num segundo momento, se verificava se as pessoas aprendiam a ler e a dar sua opinião sobre algum assunto. A ideia não era criar uma escola de mudos; queríamos que as pessoas aprendessem a falar, a conhecer seus direitos e responsabilidades”, menciona.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Marina comenta que os bispos divergiam sobre o MEB e “queriam que o rádio servisse apenas para ensinar a Ave Maria e, por esse motivo, havia também um ‘choque’ entre alguns bispos e Dom Távora”. Marina lembra também que a perseguição a Dom Távora na ditadura militar “foi algo vergonhoso. (…) Na ocasião, ele já estava doente e o então governador do Sergipe, Seixas Dória, seu amigo, havia sido destituído pelos militares e preso. Sei que foi um momento de sofrimento muito grande para Dom Távora e ele pouco pode fazer para libertar seus colegas que estavam presos”. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por quais motivos Dom José Vicente Távora foi transferido de Pernambuco para o Rio de Janeiro? Em que contexto se deu sua transferência?
Marina Bandeira – Dom Távora nasceu em Orobó, no interior de Pernambuco. Depois que foi ordenado padre, rapidamente se destacou em Pernambuco como uma pessoa interessada nos problemas dos operários. Em função disso, ele passou a ser responsável pelos Círculos Operários e promoveu um grande seminário em Goiana, na fronteira de Pernambuco com a Paraíba. O evento foi um sucesso e a partir desse momento ele se projetou como o padre que se entendia com os trabalhadores.
Por volta de 1950, o arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime Câmara, pediu às autoridades competentes que Dom Távora fosse transferido para o Rio de Janeiro. Na ocasião, Dom Jaime solicitou que ele desenvolvesse um trabalho com os Círculos Operários e com a área social da arquidiocese do Rio de Janeiro. Neste momento, começou a se organizar a Ação Católica Brasileira e, em seguida, Dom Távora organizou a Juventude Operária Católica – JOC, promovendo uma série de ações como, por exemplo, o primeiro levantamento sério das favelas que então existiam na cidade do Rio de Janeiro. A partir dos resultados dessa pesquisa feita em parceria com o pessoal da JOC e com os operários, ele instituiu a Fundação Leão XIII, para a Igreja estimular autoridades públicas a atuarem nas favelas existentes. Ele também criou a Ação Social Arquidiocesana – ASA, que promovia campeonatos de futebol e uma série de atividades de apoio ao trabalhador.
Na época, não existiam comunidades nas favelas como existem hoje, mas somente paróquias próximas a elas. Ele tentava aproximar as entidades religiosas com as favelas, mas principalmente incentivava uma pastoral aberta, fosse católica ou não.
IHU On-Line – Como a senhora conheceu Dom Távora? O que destaca da convivência com ele?
Marina Bandeira – Conheci Dom Távora por intermédio de amigos. Eu tinha trabalhado na BBC, em Londres, como tradutora e locutora júnior e, na época em que o conheci, trabalhava em uma embaixada, no Rio de Janeiro, na área de comunicação.
Em determinado período da minha vida, me propus a ter um ano sabático. Nesta ocasião, Dom Távora, na época bispo auxiliar do Rio de Janeiro, insistiu para que eu fosse assistir a uma conferência de Dom Hélder Câmara sobre a organização do Congresso Eucarístico Internacional. Eu disse a ele que tinha mais o que fazer e que não iria perder tempo com isso porque não tinha proximidade com a Igreja. Ele insistiu e convenceu-me a ir. Fiquei admirada com a audácia com que Dom Hélder se propunha a fazer o Congresso Eucarístico Internacional. Eu estava cética e pensava que não tínhamos capacidade de organizar um evento dessa envergadura. Eles pediram minha ajuda e foi assim que eu entrei nessa engrenagem. Dom Távora pediu que eu participasse das reuniões organizadas por Dom Hélder, nas quais ele apresentava um panorama do que estava acontecendo. Fui e vi que as atividades desenvolvidas por eles eram fantásticas. Quando saí dessa reunião, Dom Távora havia me nomeado sua secretária para a comunicação com a imprensa e a partir de então passei a trabalhar diretamente com ele. O encontro Eucarístico foi fantástico e marcou época. Uma das tardes do evento foi dedicada aos operários e, Dom Távora, juntamente com o pessoal da JOC, promoveu um evento belíssimo no Estádio do Maracanã. Depois disso, ele continuou sua atividade de contato com as favelas, o qual facilitou, mais tarde, o trabalho de organização em favelas, coordenado por Dom Hélder.
Um belo dia cheguei ao Palácio São Joaquim com a intenção de comunicar a Dom Távora de que aquele era meu último dia de trabalho. Para minha surpresa, fiquei sabendo que ele havia sofrido um enfarte; continuei trabalhando.
IHU On-Line – Qual era a relação de Dom Távora com Dom Hélder Câmara?
Marina Bandeira – Dom Távora já estava no Rio de Janeiro há alguns anos, quando veio para a cidade Dom Hélder Câmara. Eles ficaram amigos porque tinham uma visão aproximada sobre diversos assuntos. Quando Dom Jaime Câmara pediu que o então padre Hélder organizasse o Congresso Eucarístico Internacional, em 1955, ele e Dom Távora ficaram mais amigos ainda. Padre Távora ajudava na comunicação com a imprensa, mas sem se descuidar de seu trabalho com os operários; ele apoiava greves e se solidarizava com os trabalhadores. Em 1954, a Ação Católica já estava especializada e sob a responsabilidade de Dom Hélder, enquanto a JOC funcionava sob a coordenação de Dom Távora. Nas conversas que tinham com frequência, Dom Hélder e Dom Távora verificaram que, em outros países, os bispos de arquidioceses grandes como a do Rio de Janeiro tinham tarefas distribuídas em regiões da cidade, ou seja, cada bispo auxiliar morava em uma determinada região: zona sul, zona oeste, zona leste etc. para conhecer melhor as comunidades e reuniam-se, uma vez por semana, com o cardeal. Padre Távora levou essa ideia a Dom Jaime, que ficou aborrecidíssimo porque achou que estavam querendo tirar sua autoridade. Esse episódio é muito sério porque, a partir desse momento, Dom Jaime disse que não queria mais Dom Távora como bispo auxiliar – por este motivo ele foi transferido para o Nordeste e, então, nomeado bispo de Aracajú.
IHU On-Line – Nesta época a senhora trabalhou com Dom Távora no Movimento de Educação de Base – MEB? Pode nos contar qual era o objetivo dessa iniciativa?
Mariana Bandeira – Neste período, Juscelino Kubitschek era o presidente da República. Dom Távora era uma pessoa muito querida; ricos e pobres gostavam dele. Quando foi a Aracajú, conseguiu, por intermédio de Juscelino, a concessão para uma estação de rádio na cidade, que, para a época, era um meio de comunicação relativamente poderoso. Inspirado no trabalho que Dom Eugênio de Araujo Sales desenvolveu em Natal, por meio de programas de rádios educativas, Dom Távora implantou o MEB – Movimento de Educação de Base. Na ocasião, ele não tinha uma base de organização pastoral. Foi então, que conheceu um grupo de psicólogos do Departamento de Endemismo Rural, especializado no combate a endemias rurais. Um dos psicólogos havia voltado da França e trouxe, como novidade, as chamadas técnicas de dinâmica de grupo. Foi aí que Dom Távora teve a ideia de fazer uma experiência: reuniu o grupo de psicólogos, pessoas que trabalhavam em outras rádios de Pernambuco e Natal, duas assistentes sociais que tinham conhecimento do trabalho rural pelo rádio e o pessoal da Representação Nacional das Emissoras Católicas – RENEC, entre outros. Essa reunião mostrou que era possível, com técnicas modernas de dinâmica de grupo, rapidamente selecionar quem poderia ser responsável pela programação da rádio e, como, nas diferentes paróquias, ver quem tinha liderança para ser monitor e visitar as comunidades.
Esse movimento de educação pelo rádio estava se desenvolvendo quando Jânio Quadros era candidato à presidência da República. Ao visitar Aracajú, ele foi conhecer uma das escolas radiofônicas que funcionava à noite. Na ocasião, disse a Dom Távora que, se fosse eleito, daria o maior apoio a essa atividade. Quando foi eleito, Dom Távora cobrou o apoio oferecido. Resumo: dois meses depois de Jânio Quadros assumir o governo, em 1961, já tínhamos organizado o Movimento de Educação de Base – MEB e definido o orçamento e o regulamento.
Esse foi um projeto fabuloso e beneficiou o Nordeste, Amazonas e Centro-Oeste. Em um primeiro momento, pessoas da equipe que eram responsáveis pela emissora de rádio visitavam os moradores do interior, faziam reuniões e promoviam um debate com dinâmica de grupo, perguntando, por exemplo, quais eram os principais problemas da localidade. As pessoas não estavam habituadas a falar, somente a dizer “Sim, senhor!”. Quando perguntados, os moradores ficavam em silêncio até que alguém se manifestava e começava a relatar os problemas de falta de escola etc. A partir dessas equipes locais se obtinham todas as informações que eram divulgadas no rádio com o objetivo de ajudar as comunidades.
Essa atividade foi se aperfeiçoando e chegamos a oferecer aulas de alfabetização e fixação de linguagem. Num segundo momento, se verificava se as pessoas aprendiam a ler e a dar sua opinião sobre algum assunto. A ideia não era criar uma escola de mudos; queríamos que as pessoas aprendessem a falar, a conhecer seus direitos e responsabilidades. Um dos métodos utilizados para isso eram as cartilhas. Entretanto, acabamos verificando, mais tarde, que elas eram um problema porque não estavam adequadas à realidade dos alunos.
Criou-se, então, a cartilha intitulada Viver é lutar. Enquanto esse trabalho era realizado, alguns bispos criticavam a iniciativa. Eles queriam que o rádio servisse apenas para ensinar a Ave Maria e, por esse motivo, havia também um “choque” entre alguns bispos e Dom Távora. O trabalho dele foi um sucesso e por isso assustou alguns membros da Igreja.
Em fevereiro de 1964, enviamos o texto da cartilha para uma gráfica com o objetivo de distribuí-la às comunidades que já estavam mais avançadas. Tínhamos recebido 20 das 50 mil cartilhas quando me telefonaram informando que a polícia havia apreendido o material. Começou o que então foi chamado de o escândalo das cartilhas comunistas dos bispos. O governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda, tinha birra com Dom Hélder porque ele havia criticado seus discursos nos quais dizia que, sem um banho de sangue, o Brasil não iria para frente.
Em primeiro de abril ocorreu o Golpe Militar de 64 e Dom Távora foi pego como bode expiatório. Quando ele soube que estávamos sendo chamados para depor no Departamento de Ordem Política e Social – DOPS, foi ao Rio de Janeiro falar com Carlos Lacerda e aí compreendeu a birra do governador com Dom Hélder. Lacerda ficou admirado quando viu que o responsável pelo Movimento de Educação de Base era Dom Távora e não Dom Hélder. Por fim, Dom Távora foi chamado a depor na polícia. Evidentemente, não foi, mas se prontificou a dar, por escrito, um depoimento.
Cartilhas
Para ilustrar a cartilha, tínhamos utilizado algumas imagens de trabalhadores rurais brasileiros, especialmente os do Nordeste, do arquivo da revista O Cruzeiro. Eles estavam descalços e com roupas simples. A polícia nos acusava de ter buscado essas imagens em Cuba. É duro lembrar que Dom Távora teve de depor e disse o seguinte: “Escandalosas não são as fotografias e, sim, a realidade que se vive no interior do Brasil”. Depois de prestar esclarecimentos, Dom Távora retornou a Aracajú. A perseguição a ele foi algo vergonhoso porque prenderam os locutores do MEB. Na ocasião, Dom Távora já estava doente e o então governador do Sergipe, Seixas Dória, seu amigo, havia sido destituído pelos militares e preso. Sei que foi um momento de sofrimento muito grande para Dom Távora e ele pouco pode fazer para libertar seus colegas que estavam presos. Em 1970, recebi o aviso de que ele havia falecido. Consegui ir ao enterro dele e lá estava grande parte da população de Aracajú e pessoas de outras cidades.
IHU On-Line – E qual foi o destino do MEB?
Marina Bandeira – Em 1966, houve uma reunião com o Conselho diretor do MEB para acabar com o movimento. Antes da reunião, disse ao núncio apostólico, representante da Santa Sé no Brasil, que era muito curioso que no exterior todos elogiavam nosso trabalho e, entretanto, no Brasil, o governo falava mal do projeto e os bispos estavam divididos, alguns eram a favor e outros contra. Eu o avisei de que iria acontecer essa reunião para decidir sobre o futuro do movimento e ele participou. Na ocasião, disse que o assunto do MEB era de interesse pessoal do Papa Paulo VI e que nenhuma decisão poderia ser tomada sem ouvi-lo. Para isso, era preciso que algum integrante do MEB fosse à Roma para esclarecer a questão. Ele sugeriu que eu fosse a Roma. Então, fui à Europa com passagem para depois ir à Alemanha e França tentar conseguir dinheiro para dar continuidade ao projeto do MEB. Quando cheguei lá, o Papa me recebeu e eu lhe falei que minha impressão pessoal era de que já tínhamos feito o possível e que a juventude estava ficando doente, com úlcera, porque tinham problemas com os militares e que os próprios bispos não se entendiam, de modo que o melhor era acabar com o MEB de uma vez. Sabe qual foi sua resposta? “O MEB é o trabalho mais extraordinário da Igreja Católica no mundo. Então, não pode acabar”. Expliquei a ele que haviam determinado que eu viajasse pela Europa para conseguir dinheiro para o movimento e ele me disse que eu somente conseguiria apoio se tivesse um pedaço de papel do governo brasileiro dizendo que respeitava e reconhecia o movimento. Voltei imediatamente ao Brasil e consegui uma audiência com o Ministro da Educação, que liberou uma verba, a qual deu condições de o MEB funcionar por mais algum tempo. Enquanto Dom Távora estava à frente do projeto – e o Papa também havia pedido pela continuidade das atividades -, eu continuei participando do movimento. Quando Dom Távora faleceu, Dom José Maria Pires assumiu o seu lugar. Dom Távora viveu antes de seu tempo; ele era um João XXIII.
IHU On-Line – Qual foi a importância da nomeação de Dom José Vicente Távora enquanto bispo de Aracajú para o Nordeste?
Marina Bandeira – Ele teve uma influência enorme no Sergipe. Naquela época, havia uma coleção enorme de bispos de grande valor e todos se entendiam muito bem: Dom Eugênio, Dom Delgado, Dom Hélder, Dom Vilela, Dom Távora. Esse grupo de bispos nordestinos teve uma posição muito firme. Não seria capaz de dizer qual deles teve influência maior. Todos lutavam contra o problema da seca, contra a exploração dos pobres, defendiam a reforma agrária. Essa foi uma geração de bispos que antecipou o que mais tarde foi definido no Vaticano II. Muitos dizem que o Vaticano II teve uma grande influência na Igreja do Brasil. Sim, teve. Mas em muitas áreas o episcopado brasileiro se antecipou.
Para ler mais:
José Vicente Távora, bispo dos operários
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=35789