Belo Monte: uma monstruosidade apocalíptica. Entrevista especial com D. Erwin Kräutler

[Unisinos] – O projeto da Usina Hidrelétrica  de Belo Monte, no Xingu, em Altamira, já se chamou kararaô, grito de guerra do povo indígena Kayapó. O nome foi  alterado, de acordo com Dom Erwin Kräutler, “para que o povo do Xingu não lembrasse mais o facão da Tuíra e os rostos pintados de urucum dos Kayapó contrários à hidrelétrica”.  Desde os anos 70, quando Belo Monte foi pensado, os indígenas da região se manifestaram contra o empreendimento e a foto emblemática da índia Tuíra esfregando um facão no rosto de José Antônio Muniz Lopes, então diretor de engenharia da Eletronorte, ficou conhecida no mundo inteiro como símbolo de resistência à iniciativa.

Após protestar publicamente contra o empreendimento, Dom Erwin Kräutler recebeu diversas ameaças de morte, e há quatro anos vive com escolta policial  24 horas por dia. Afeiçoado pelo Xingu desde criança, e conhecedor da região há mais de 30 anos, ele defende que Belo Monte “nada tem a ver com energia em casa de pobre”. Em entrevista à IHU On-Line, por e-mail, o bispo do Xingu conta que o projeto tem suas raizes na Ditadura Militar e menciona que caso ele saia do papel, os sacrificios serão “exigidos diretamente dos atingidos, em torno de 30 mil pessoas, e do meio ambiente irrecuperavelmente destruido”.

Ele enfatiza: “O que com Belo Monte se quer é favorecer as indústrias minero-metalúrgicas: ferro e bauxita e sua transformação em lingotes de alumínio, processo extremamente intensivo em energia elétrica”.

Dom Erwin também crítica os estudos ambientais realizados acerca de Belo Monte. Eles são “tão sérios”, ironiza, “que o tamanho do lago já foi alterado por duas vezes. No projeto original abrangia 400 km2. Na licença prévia do IBAMA já alcançou 516 km² e agora o edital do leilão anuncia sem nenhum constrangimento que a área inundada corresponderá a 668 km²”.

Dom Erwin Kräutler estará na Unisinos no dia 5-8-2010, onde abordará o tema Belo Monte, impactos socioambientais. O evento, uma promoção do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, realiza-se às 17h30min, na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU.

Na noite desta mesma quinta-feira, dia 5, D. Erwin debaterá a situação dos povos indígenas no Brasil, especialmente na Amazônia. O evento será realizado no Teatro Municipal de São Leopoldo – Centro Cultural José Pedro Boéssio, às 20h. Na sexta-feira, 6-8-2010, às 14h30min, na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU,  ele falará sobre Presença Eclesial na Amazônia: desafios e perspectivas.

Dom Erwiin Kräutler é bispo de Altamira, Pará e presidente do Conselho Indigenista Missioneiro – CIMI. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Belo Monte é um projeto que se estende desde a época da ditadura. O senhor pode nos explicar como, por que e em que contexto surge o projeto de Belo Monte?

Erwin Kräutler – No início da década de 70, a “Integração Nacional” desejada pela Ditadura Militar através da construção da Rodovia Transamazônica (BR 230) foi uma das mais violentas agressões à Amazônia. Não existia plano que visasse o desenvolvimento desta macro-região protegendo-a e respeitando-a dentro de suas características peculiares. A construção da Transamazônica e os outros projetos daquele tempo impostos aos povos da Amazonia já estavam a serviço do grande capital. Em 9 de outubro de 1970, o Presidente Médici  deu solenemente início ao programa governamental de derrubar a floresta amazônica, aplaudindo com a comitiva recrutada dos quartéis da ditadura ao tombo de uma grande castanheira. Não me refiro aqui a artigos de jornais da época. Como Padre novo no Xingu – cheguei em 1965 – estive presente de corpo e alma naquele evento que extremamente me chocou. Os bispos, Dom Eurico do Xingu e Dom Estêvão de Marabá, não foram convidados a subir ao palanque para aplaudir a queda estrondosa da castanheira. Visivelmente contrariados ficaram no meio do povo, eles vestidos a rigor, de batina episcopal e solidéu, o povo em mangas de camisa. Confesso hoje, que gostei daquela desfeita que os bispos tiveram que engolir, para caírem na real. Voltando para a casa da Prelazia e escutando o comentário furioso de Dom Estêvão, dei-me conta de que a indelicadeza presidencial surtiu o efeito que eu desejava. Afinal, a Igreja não precisava render homenagem ao responsável pelos mais violentos atos contra os direitos humanos de toda a ditadura militar e a quem agora decidiu a gradativa devastação da Amazônia. A placa de bronze, até o dia em que foi roubada, incrustada no tronco da castanheira, falou de uma “arrancada histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde”. Impulsionou-se uma migração inédita dentro do Brasil para resolver problemas fundiários nos Estados do centro, sudeste e sul do País, enviando agricultores sem terra e potenciais invasores de latifúndios naqueles Estados para a Amazônia, além de atrair famílias do Nordeste castigado pelas secas periódicas.

Mas, embutido no Projeto de Integração Nacional já se encontrava outro plano. As rodovias que sangravam as florestas cortavam também os grandes rios amazônicos, exatamente nas proximidades das principais quedas d’água, prevendo a construção de barragens para geração de energia. A Rodovia Transamazônica foi inaugurada em setembro de 1972. Já em 1975, a Eletronorte contratou a firma CNEC (Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores) para pesquisar e indicar o local exato de uma futura hidrelétrica. Em 1979 o CNEC terminou os estudos e declarou a viabilidade de construção de cinco hidrelétricas no Xingu e uma no rio Iriri, afluente do Xingu. A primeira levou como nome o grito de guerra do povo Kayapó: Kararaô. À população local foram negadas as informações necessárias para avaliar o projeto. A transparência no fornecimento de dados não fez parte do esquema da Ditadura Militar. Mas a estratégia de Lula não deve absolutamente nada à Ditadura Militar que em tempos idos tanto combateu. O governo Lula nega informações, altera arbitrariamente dados, impõe normas e regras contrárias à própria Constituição Federal, manda em frente quem não reza pela cartilha do PAC, faz profissionais do IBAMA, ao apresentarem sérias objeções a Belo Monte, pedir as contas e os despede. Insiste que Belo Monte tem que sair “de qualquer jeito”. Até o tão comedido senador Pedro Simon , do Rio Grande do Sul, pediu explicações ao Presidente da República e censurou “a declaração do presidente Lula de que vai construir a obra ‘de qualquer jeito’. Não está sendo feliz o presidente da República na sua maneira de se expressar.”

Projeto de Belo Monte

Mas voltemos à história desse projeto. De 20 a 25 de fevereiro de 1989, realizou-se em Altamira o I Encontro das Nações Indígenas do Xingu. O evento reunia em torno de 600 índios, pintados para guerra, e teve enorme repercussão em todo o Brasil e no exterior. A foto que retratou a cena em que a índia Tuíra esfregou um facão no rosto de José Antônio Muniz Lopes, então diretor de engenharia da Eletronorte, hoje presidente da Eletrobrás, percorreu o mundo, tornando-se símbolo e uma espécie de logomarca da rejeição total dos índios ao barramento do Xingu.
Pouco depois desta assembléia dos índios em Altamira, encontrei-me em Berna, na Suíça, com representantes do Banco Mundial. Afirmaram-me que jamais iriam financiar um empreendimento deste tipo sem terem absoluta certeza da mais estrita observação das cláusulas ambientais e indígenas. Pronto. Kararaô foi arquivado! Assim pensávamos.

No fim da década de 90, o projeto ressurgiu. O grito de guerra “Kararaô” foi substituído por “Belo Monte” para que o povo do Xingu não lembrasse mais o facão da Tuíra e os rostos pintados de urucum dos Kayapó contrários à hidrelétrica.

Quando, em 27 de outubro de 2002, Luís Inácio Lula da Silva foi eleito presidente da República respiramos aliviados, pois, durante a campanha eleitoral manifestou-se contra Belo Monte como também o fizeram vários candidatos à Câmara dos Deputados e ao Senado. Depois de eleitos passaram por uma surpreendente metamorfose camaleônica. O que antes condenaram como insulto ao Brasil e agressão à Amazônia começaram a defender como única saída para salvar a Pátria do apagão e de um colapso de sua economia.

O Governo Lula considera Belo Monte prioridade do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e para “tranquilizar” os povos do Xingu se decreta com grande alarde que será construída “apenas” uma hidrelétrica. É, sem dúvida, uma das maiores mentiras da história do Brasil, pois quem, em sã consciência, vai investir 30 bilhões de Reais para uma Usina Hidrelétrica que só por alguns meses durante o ano consegue funcionar com pleno rendimento e cuja potência cai nos restantes meses até abaixo de um quinto do previsto, por causa da diminuição do volume d’água durante o verão tropical?  Outras barragens serão necessárias e um decreto se pode revogar com a mesma facilidade como é promulgado. “Revoguem-se as disposições em contrário” e fim de papo.

O rio Xingu será sacrificado. “Não existe progresso sem sacrifícios” pregam os políticos e os empresários. Porém, os sacrifícios são exigidos dos diretamente atingidos, em torno de 30 mil pessoas, e do meio-ambiente irrecuperavelmente destruído. Sim, outras barragens são programadas. Ninguém se iluda! A Eletrobrás há tempo adiantou a elaboração dos planos para depois da conclusão de Belo Monte e já dispõe de todo o “inventário” do Xingu com mapa e tudo até acima da cidade de São Félix do Xingu.

IHU On-Line –  Por que esse projeto foi arquivado e por que é retomado agora?

Erwin Kräutler – O que há de mais repugnante em torno do projeto Belo Monte são as mentiras descaradamente espalhadas pelo governo que quer ganhar a simpatia do povo brasileiro para esse empreendimento. Assim prega que só com Belo Monte pode ser evitado o apagão que paira como fantasma em cima da sociedade. Diz com todas as letras que Belo Monte fornecerá luz e energia para a casa dos pobres. Acena com o espectro de o Brasil todo de repente ser envolto por densas trevas, causando inúmeras desgraças. Usa até argumentos ridículos afirmando que sem Belo Monte o povo de repente não tem mais como assistir as novelas da Globo e tomar banho com água quente, já que nem televisão nem o chuveiro elétrico funcionam sem energia.

Na realidade, Belo Monte, se for construído, nada tem a ver com energia em casa de pobre. Belo Monte tem como finalidade explorar intensivamente todas as riquezas naturais do solo e subsolo que Amazônia oferece, recursos florestais, minerais e hídricos para atender às demandas internacionais. O governo não insiste em Belo Monte guiado por um espírito altruísta ou filantrópico, inspirado e motivado por um entranhado amor para com quem está na miséria. Belo Monte é concebido a partir dos interesses do mercado internacional e ainda da expansão do agronegócio, também este para atender a exigências internacionais. O que com Belo Monte se quer é favorecer as indústrias minero-metalúrgicas: ferro e bauxita e sua transformação em lingotes de alumínio, processo extremamente intensivo em energia elétrica.

Belo Monte estará a serviço dos “gringos” contra os quais Lula em seu discurso de cunho nacionalista e xenófobo proferido em Altamira no dia 22 de junho de 2010 protestou: “Nós precisamos mostrar ao mundo que ninguém mais do que nós quer cuidar da nossa floresta. Mas ela é nossa. E que gringo nenhum meta o nariz onde não é chamado, que nós saberemos cuidar da nossa floresta e saberemos cuidar do nosso desenvolvimento”. Que falácia! Como Lula quer cuidar da floresta se os projetos do PAC a agridem sem escrúpulos para atender interesses estrangeiros? Que desenvolvimento é esse que, para atender o mercado internacional, extermina deliberadamente o maior acervo de biodiversidade ainda nem sequer plenamente pesquisado e catalogado? Como ele vai saber “cuidar de nosso desenvolvimento”  se está nada preocupado com as 30 mil pessoas que serão compulsoriamente arrancadas de seus lares ou de seus sítios e roças?

Até essa data não existe um palmo de chão destinado ao reassentamento dessas milhares de famílias diretamente atingidas por essa monstruosidade apocalíptica prevista no PAC. Como ele saberá “cuidar do nosso desenvolvimento” se desrespeita os povos indígenas, as comunidades ribeirinhas e quilombolas? Como ele saberá “cuidar de nosso desenvolvimento” se concorda que um terço da cidade de Altamira vai para o fundo e os restantes dois terços serão banhados por um lago podre e morto, viveiro propício para todo tipo de pragas e gerador de doenças endêmicas?

IHU On-Line – Por que a ministra, na ocasião Dilma Rousseff, que lutou contra a ditadura, reabre a possibilidade de retomar um projeto planejado na ditadura e incluí-lo no PAC? Como entender?

Erwin Kräutler – Quem vai entender?! Dilma Rousseff, em sua juventude ferrenha antagonista da ditadura e militante intransigente contra tudo o que esse regime inventou, de repente se afeiçoa a um projeto desta mesma ditadura. Depois que o IBAMA, pressionado havia meses, concedeu, em 1º de fevereiro de 2010, licença prévia para a Usina Hidrelétrica Belo Monte, a ministra da Casa Civil brindou os meios de comunicação com um impressionante parecer: “É um projeto que tem um aspecto ambiental importante para o governo, que é provar que é possível fazer um projeto de energia elétrica respeitando o meio ambiente.” Como ela pode provar que esse projeto respeita o meio ambiente? Pergunto a ela, se é respeito ao meio ambiente quando 668 quilômetros quadrados são inundados incluindo um terço da cidade de Altamira, hoje com aproximadamente 100 mil habitantes? Os estudos ambientais são tão “sérios” que o tamanho do lago já foi alterado por duas vezes. No projeto original abrangia 400 km2. Na licença prévia do IBAMA já alcançou 516 km² e agora o edital do leilão anuncia sem nenhum constrangimento que a área inundada corresponderá a 668 km².

Queria que Dona Dilma me explicasse o que entende por respeito ao meio ambiente quando além de um lago morto de 668 quilômetros quadrados mais de 1000 outros quilômetros quadrados serão irreversivelmente arrasados pelas obras de construção de imensos paredões de cimento, diques e canais de derivação. Queria que Dona Dilma me explicasse o “aspecto ambiental importante para o governo” quando, ao longo de cerca de 100 km, a Volta Grande do Xingu sofrerá uma tremenda redução da vazão e rebaixamento do lençol freático com imprevisíveis impactos biológicos e sociais. A perda de recursos naturais e hídricos prejudicará diretamente os povos indígenas. Aos indígenas será cortada a água! É isso que se chama respeito ao meio ambiente? Como viver no seco? De que os índios se alimentarão, já que lhes faltará o peixe? Será que Dona Dilma vai providenciar cestas básicas semanais para as famílias indígenas sobreviverem naquela região?

IHU On-Line – Quais os argumentos de quem é contra e a favor dessa iniciativa?

Erwin Kräutler – Quem é a favor da usina alega que ela vai criar milhares de empregos e trazer “progresso”. Os empregos serão em sua imensa maioria passageiros. E a argumentação de que Belo Monte vai trazer o sonhado progresso para a região já conheço da época da construção da Transamazônica. Naquele tempo, alguns enriqueceram de fato, mas o progresso que se esperava até hoje não chegou. Promessas nunca faltaram, inclusive do asfaltamento da rodovia e lá se foram quase quarenta anos desde a sua inauguração.

A situação de nossos hospitais e de nossas escolas públicas é simplesmente calamitosa. Em nenhuma cidade da região do Xingu existe saneamento básico merecedor deste nome. Esgoto a céu aberto ou então canalizado para o mesmo rio em que a pouca distância do lugar do despejo dos dejetos é captada a água “potável” para a população urbana.

A cidade é tão violenta que a polícia não dá conta. Viajar em ônibus para outra cidade é muito arriscado. Há casos em que um ônibus é assaltado duas vezes na mesma viagem.

E agora, por causa de Belo Monte tudo vai mudar? Precisa-se realmente criar um projeto tão monstruoso para que finalmente sejam respeitados a dignidade e os direitos constitucionais de brasileiras e brasileiros e levadas em conta as necessidade básicas da população? Promessas de migalhas que caem da mesa de um grande projeto após beneficiar as empresas e os políticos de plantão?

Os empresários e comerciantes apostam na hidrelétrica porque pensam que vão faturar em cima dela e sonham com uma Altamira inundada, não por água, mas por dinheiro. A ingenuidade de uns é tamanha que chega ao ponto de pensarem que seus estabelecimentos serão beneficiados por compras maciças de insumos e materiais necessários para a construção dos paredões e canais.

Mais espantoso ainda é que os poderes municipal, estadual e federal nem sequer se preocupam com a vinda ao Xingu de milhares de pessoas e famílias em busca de oportunidades de emprego, tão logo que seja dado o tiro de largada para a construção. Altamira não tem a mínima infraeestrutura para acolher tantas pessoas. Pior, ninguém tem ideia onde essas famílias vão morar. Sem dúvida vão inchar as periferias da cidade, aliás aquelas mesmas baixadas que depois da barragem feita serão tomadas pelo lago artificial. Não há planejamento, não há perspectiva, não há políticas públicas para essas famílias. Da parte do governo, de modo especial de seu setor energético, o que há são vagas promessas de “solução”, mas nenhum desses tecnocratas se dá o luxo de fornecer detalhes, pois na verdade, eles mesmos nem sabem o que vai acontecer e nem sequer se afligem com isso, pois não está em jogo o futuro de suas próprias famílias, de seus filhos e netos. Como tantas vezes ocorreu com projetos similares, vai se improvisar algumas medidas e depois se entregará o povo à sua própria sorte. Pergunto, se existe um exemplo pelo Brasil afora que realmente prove o contrário?

Os estudos de impactos feitos pelo governo falam em “ruas“ que vão para o fundo. Não se referem às “moradias” ao longo dessas ruas e muito menos às pessoas que residem nessas casas. Bairros inteiros serão tomados pelas águas do reservatório. O povo que lá reside fez suas casas em alvenaria ou madeira ao longo dos anos passados com muito suor e sacrifício. No entanto, a maioria não dispõe de Título de Registro de Propriedade.

IHU On-Line – O senhor se afeiçoou ao Xingu desde pequeno, quando recebia cartas de seu tio que morava no Brasil. Que outros aspectos contribuíram para que o senhor tivesse tanto carinho por esta região e seus habitantes?

Erwin Kräutler – É verdade que desde a minha infância sonhei com o Xingu sem ter ideia onde ficava. Quando na geografia estudávamos a América do Sul, achei o Xingu e identifiquei-o como afluente do Amazonas. Meu tio falou com carinho dos povos do Xingu, dos seringueiros, dos pescadores, mas de modo especial dos índios. Vir para a Amazônia talvez tenha sido o meu destino, minha sina. Mesmo assim não acredito em “destino” como uma espécie de força cega. Eu acredito antes em vocação no sentido mais profundo de um “chamado”, na linha do que diz o profeta Ezequiel: “A mão do Senhor veio sobre mim e me conduziu…” (Ez 37,1).

Fato é que não fui “mandado” para o Brasil e o Xingu. Foi escolha minha, decisão que eu mesmo tomei. Somente a comuniquei aos meus superiores de congregação que concordaram e assim embarquei poucos meses após minha ordenação sacerdotal para o Brasil. O Xingu tornou-se minha nova pátria. Nunca vivi o meu ministério de Padre em outro canto do mundo ou em outra região do Brasil. Quando fui nomeado bispo começou uma nova etapa em minha vida. Tornei-me responsável por toda a Prelazia do Xingu, com seus 365 mil quilômetros quadrados a maior circunscrição eclesiástica do Brasil, quase o equivalente aos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina juntos. Logo após a minha sagração comecei a cumprir o que leigas e leigos pediram ao bispo novo: visitar as comunidades dispersas neste vasto território e “sentir na pele o que elas e eles estão sentindo há tanto tempo”.

Tendo contato direto com o povo e experimentando pessoalmente a realidade em que vive, me afeiçoei ainda mais a essa gente que se tornou “meu povo” e me aceitou como seu bispo-irmão. Nunca me esqueço do grito deste povo quando, em 1983, fui preso pela Polícia Militar por solidarizar-me com canavieiros da Transamazônica, explorados e maltratados. Esperando há nove meses o pagamento da safra, bloquearam em protesto a estrada. Ao ser jogado no chão, manietado e preso por um brutamontes de policial, o povo gritou: “Larga ele! Ele é nosso bispo!” Sempre entendi minha missão também como defensor intransigente da dignidade e dos direitos humanos, especialmente das pessoas que o sistema neoliberal vigente considera como “supérfluas” ou “descartáveis”. Assumi, de modo particular, a defesa das crianças, das mulheres e dos povos indígenas, secularmente desprezados e discriminados até os dias de hoje. Também os colonos ameaçados de expulsão de suas terras ou sem acesso a um lote em que pudessem plantar e colher para sustentar suas famílias, sempre podem contar com meu engajamento em seu favor.

Com esse empenho naturalmente não ganhei apenas amigos. Há gente que se sente prejudicada em seus interesses e ambições e reage prontamente com ameaças e difamações. Há quatro anos estou sob proteção policial 24 horas. Quatro PMs se revezam em dois turnos, moram na minha casa e me acompanham sempre onde quer que esteja, também nas viagens às comunidades do interior, nas celebrações, reuniões, visitas e encontros.
IHU On-Line – Em entrevista ao jornal Valor, o presidente da Eletrobrás, José Antonio Muniz Lopes, diz que em Altamira existem onze etnias indígenas e, dessas, quatro são contra e sete são a favor de Belo Monte. Mencionou ainda que as etnias contrárias ao projeto pertencem ao Alto Xingu, onde a obra não tem nenhuma interferência. Como o senhor se posiciona diante das declarações?

Erwin Kräutler – O presidente da Eletrobrás, José Antônio Muniz Lopes, sempre desdenhou da luta indígena contra Belo Monte e com a afirmação de que nas etnias do Alto Xingu o projeto não tenha nenhuma interferência ele mais uma vez esconde as cartas. Ele sabe perfeitamente que o projeto do aproveitamento do Xingu para gerar energia não se limita ao Belo Monte, mas sacrificará o Rio Xingu em toda a sua extensão de mais de 2000 quilômetros. É mero cinismo do presidente da Eletrobrás que, da altura do cargo que lhe foi outorgado pelo presidente Lula, não vê nenhuma necessidade de dar satisfação a quem quer que seja e muito menos de discutir os prós e contras do projeto. Jamais engoliu o fato de uma índia ter esfregado um facão no seu rosto e suas reações desdenhosas certamente são consequência deste incidente que o humilhou diante das câmeras de TV do mundo inteiro. Não me consta que ele tenha visitado as aldeias indígenas do Xingu e por isso está desautorizado a afirmar quantas etnias estão a favor e quantas contra Belo Monte. É bem verdade que alguns indígenas foram cooptados pela Eletronorte que usa de todos os meios para convencer os índios de que Belo Monte vai beneficiar as aldeias. No entanto, afirmar categoricamente que uma “etnia” é a favor e outra contra é mera conjetura.

IHU On-Line – Qual a influência da Eletrobrás em Altamira?

Erwin Kräutler – A Eletrobrás adotou, desde que abriu seu escritório em Altamira, a estratégia de cooptação dos diversos segmentos da sociedade e dos povos indígenas para os seus interesses. Foge, porém, de qualquer discussão pública onde teria que responder a questões e argumentos dos que são contrários ao projeto. Eu mesmo posso provar essa atitude pouco democrática. Tempos atrás a juventude estudantil de Altamira promoveu um evento em que defensores e opositores de Belo Monte pudessem apresentar sua posição a favor ou contra. A Eletronorte, sem justificar-se, brilhou pela ausência ou, em outras palavras, manifestou mais uma vez a sua covardia.

Aliás, quem ainda confia na Eletronorte? Ela foi responsável por outra usina hidrelétrica, a de Balbina, o pior projeto de geração de energia no Brasil, no rio Uatumã, AM, que o próprio presidente da República na ocasião em que me recebeu em audiência (22 de julho de 2009) classificou de “monumento da insanidade”.
IHU On-Line – O rio Xingu tem épocas de cheias e secas? Acontece de, em períodos de cheias, alagar alguns pontos da cidade? Como isso interfere na vida da população?

Erwin Kräutler – É verdade que o volume d’água do Xingu oscila dependendo da época. A diferença entre o inverno e o verão é bastante acentuada. O verão se caracteriza por extensas praias douradas e baixo nível de água no leito principal do rio. As praias são sempre procuradas e frequentadas nos fins de semana pelo povo de Altamira que jamais pode imaginar que irão desaparecer para sempre. No inverno, na estação das chuvas, algumas áreas no perímetro urbano são alagadas todos os anos e por isso oficialmente interditadas para habitação humana. Mesmo assim, famílias sem recursos montaram seus barracos aí e todos os anos tem que ser removidas para escolas públicas ou para o parque de exposição até o rio baixar.

A inundação prevista em consequência do projeto Belo Monte nada tem a ver com as “cheias” anuais, mas alagará áreas habitadas que nunca ou raras vezes foram atingidas pelo Xingu. Nos 45 anos que vivo no Xingu vivenciei duas enchentes maiores que, de fato, atingiram quase toda a baixada de Altamira. Mas foram realmente exceções. O lago artificial, no entanto, ultrapassará – e muito – as maiores enchentes já verificadas, fazendo de Altamira uma península em meio a águas estagnadas e isso não apenas por algumas semanas mas para sempre, de modo irreversível.

IHU On-Line – O último relatório do Cimi revela que mais de 60 índios foram mortos no ano passado. A que o senhor atribui tanta violência contra os povos indígenas? Essas mortes têm alguma relação entre si?

Erwin Kräutler – O Conselho Indigenista Missionário – CIMI publica, desde 1993, anualmente um relatório sobre as mais variadas formas de violência perpetradas no Brasil contra os povos indígenas. Esses crimes violam frontalmente a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Várias vezes fui perguntado, até quando o CIMI estaria disposto a ir a público com tais dados estarrecedores. Sempre respondo que, enquanto existir uma única morte violenta de uma índia ou um índio, o CIMI não se calará. Se nós nos calarmos o sangue derramado gritará do solo brasileiro ao céu. É uma chaga aberta que atravessa todo o país. E existe um detalhe. Os dados de que dispomos são fornecidos por nossos missionários que vivem junto aos povos indígenas e por matérias publicadas em jornais. Não se trata de uma exaustiva estatística anual que revela todos os crimes. Relatamos somente aqueles de que tivemos notícia. O número de mortes e agressões violentas, portanto, não se restringe ao relatório por nós divulgado. Ultrapassa-o. Há, sem dúvida muito mais mortes de índios e violências contra esses povos.

A maior parte destes crimes está relacionada às terras, de que os índios foram expulsos ou que lhes foram roubadas. Os conflitos ocorreram por causa da invasão de terras indígenas por parte dos diversos grupos econômicos, de modo especial fazendeiros, usineiros, madeireiros e empresas de energia elétrica. Há ainda indígenas que estão vivendo encurralados em áreas tão diminutas que sua vida se torna um inferno nesta terra e por isso optam, antes do tempo, pela vida no céu, no além, onde acreditam poder viver sossegados e como Guarani de verdade. Com esta fé e esperança escolhem o suicídio. É macabro, mas a mais pura verdade.

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