Adital – Carlitos liga com voz embargada e indignada – “mataram meu neto e jogaram que nem cachorro”. Calma Carlitos, deixa entender o que aconteceu!
“Meu neto Julio, de 16 anos foi praticamente roubado para ser levado pelo cabeçante (o responsável por arregimentar um grupo de trabalhadores) para ir cortar cana. Ele foi com o documento do tio dele. Isso foi sábado de noite. Na madrugada recebi uma ligação do cabeçante dizendo que algo muito ruim tinha acontecido, meu neto Julio havia se jogado do ônibus e morrido. O corpo dele foi levado para Nioaque e depois para a terra indígena de Caarapó. Depois só chegou o corpo aqui para nós enterrar. Não deram explicação nenhuma. Isso não pode ficar assim. Morreu que nem um animal…”.
Diante da narrativa e insistente pedido de ajuda pois queria saber a verdade. Disse não acreditar de que seu neto tivesse se jogado da janela do banheiro do ônibus que levava indígenas para trabalhar no corte de cana na usina Santa Olinda, distrito de Quebra Coco, município de Sidrolandia. Falou que no atestado de óbito constata isso, mas que ele achava isso impossível.
Depois de tentar saber um pouco mais de detalhes, senti que ele estava inconformado, buscando ajuda para elucidar mais um crime dentre os inúmeros que continuarão, provavelmente encobertos pela branca fumaça das usinas e o espesso véu da impunidade nos caminhos dos canaviais. Falei que iria comunicar ao nosso advogado em quem a comunidade tem toda confiança, para que ele os ajudasse a ver que passos deveriam ser tomados no caso. Sugeri ainda que uma ajuda imediata quem talvez pudesse dar seria o Ministério Público Federal e quem sabe a própria FUNAI.
A morte, alegadamente suicídio, de Julio Gonçalves Rocha, Kaiowá Guarani, 16 anos, filho de Arnaldo Gonçalves Rocha e Macilene Benites, moradores na aldeia do Passo Piraju. Talvez venha apenas engrossar a estatística de uma morte por homicídio, suicídio ou assassinato, por semana.
A cana não me engana
Esse foi nome de um seminário promovido pelos movimentos sociais em Campo Grande, há poucos anos, diante da euforia do expansionismo da indústria sucroalcooleira no Mato Grosso do Sul e no Brasil. Anunciava-se entusiasticamente o céu do desenvolvimento sem sequer passar pelo purgatório. O doce carro chefe do etanol tinha na direção o governador do Estado e como entusiasta agenciador o próprio presidente da república. Falava-se nas 60 usinas que estariam explodindo em meio ao verde mar da cana. Era a festa entusiasta do grande capital multinacional. Pequenos obstáculos, como a demarcação das terras dos Kiaowá Guarani, em cujas terras tradicionais várias dessas usinas estavam se implantando, não representavam maiores preocupações, pois o próprio governo do Estado juntamente com os poderosos tentáculos do agronegócio cuidariam disso. Além disso, já se previa o fim anunciado do extenuante e semiescravo trabalho do plantio e corte da cana por indígenas, nordestinos e caboclos da região. Potentes máquinas, cada uma dispensando de 80 a 100 trabalhadores entrariam em campo para fazer o seu gol, aplaudidos pelos sisudos senhores do agronegócio.
Tudo indicava um céu de brigadeiro. Finalmente o Mato Grosso do Sul estaria no rumo do desenvolvimento. À beira das estradas, nos canaviais e nas aldeias continuam sendo plantadas as cruzes de Julio, de João e Maria. É o preço amargo do açúcar e do etanol.
Povo Guarani Grande Povo
Campo Grande, 24 de junho, festa de São João, do inverno de 2010
* Assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Mato Grosso do Sul
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=48880