Os Guarani. O contínuo caminhar de um povo. Entrevista especial com Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin

Unisinos – Para os índios guarani, não há distinção entre vida natural e sobrenatural. Por isso, explicam Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin, os acontecimentos cotidianos têm, além de uma base objetiva, um viés subjetivo

“O povo guarani se considera eleito, mas precisa viver em um mundo imperfeito. Cada pessoa precisa aprender a conviver e a estabelecer um equilíbrio entre duas naturezas que a constituem – a humana e a divina. É esta ambivalência que constitui o desafio da vida humana, e que impele o guarani a superar sua natureza finita e buscar a perfeição que lhe aproxima da condição divina. Aprender a conviver e a conhecer os outros seres que habitam os limites do seu território é uma das estratégias deste povo. Talvez, por isso, suas atitudes não sejam propriamente de conflito e de enfrentamento aberto, mesmo quando há invasões em suas terras”. É assim que Roberto Antonio Liebgott, vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi/RS e sua esposa, Iara Tatiana Bonin, doutora em Educação e professora da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, definem o povo guarani.

Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, eles enfatizam que a marca distinta dos guarani “é a sua mobilidade”. Nesse sentido, “a vida guarani pode ser pensada como um ‘contínuo caminhar’”. Segundo eles, tal estilo de vida caracterizado pela mobilidade colabora para “a produção de saberes, para a circulação maior de bens, de sementes, de ervas medicinais, e ainda proporciona às pessoas o desenvolvimento de certas capacidades que são consideradas importantes para assegurar o bem viver”.

Iara Tatiana Bonin é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, mestre em Educação pela Universidade de Brasília – UnB. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, realizou o doutorado também em Educação. Por sete anos, atuou no Conselho Indígena de Roraima; e, por onze, no Conselho Indigenista Missionário – CIMI.

Roberto Antonio Liebgott é  vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi/RS e acompanha , há muitos anos, a luta e a trajetória do povo guarani no RS. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quem são os guarani? Quantos subgrupos fazem parte desta etnia indígena e quais suas características?

Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin – O povo Guarani era, de acordo com muitos relatos históricos, constituído por mais de quatro milhões de pessoas. Ocupava especialmente a região de mata úmida dos Rios da Bacia Platina, tendo chegado até a Bacia Amazônica.

Este povo, também denominado Awá (termo que, em português, significa gente) é parte do grande tronco linguístico Tupi, e pertencente à família Guarani. São hoje mais de 280 mil pessoas, subdivididas em grupos (parcialidades), assim definidos: Kaiowá (também referidos na literatura acadêmica como Kaiová, Kayová ou Paï-Tavyterã), Nhandeva (referidos ainda como Xiripá e Ava Katu Ete), os Mbyá e ainda Guaraios (Bolívia). As comunidades estão distribuídas em mais de 400 aldeias em quatro países da América do Sul. Seu território tradicional atualmente se estende sobre grande parte do Brasil, principalmente no sul, ao norte da Argentina, oeste da Bolívia e em todo o Paraguai. Há mais de quatro milhões de falantes de guarani e, no Paraguai, ela se tornou uma das línguas oficiais.

Entre as parcialidades do povo guarani, existem diferenças importantes, relativas aos costumes, expressões linguísticas, rituais, estilos de pensar e de viver. No entanto, pode-se dizer que existem unidades agregadoras, a partir das quais eles se articulam (sem, contudo, se confundir) e mantém intensa intercomunicação. Dentro de uma mesma parcialidade também há distinções – que tem a ver com idade, gênero, lugar social, local de moradia, entre outros aspectos.

Tudo isso nos leva a reconhecer, mais uma vez, a pluralidade de maneiras de viver, que decorre das múltiplas histórias vividas por estes grupos e das relações que vão estabelecendo entre si e com os demais. Não há, portanto, um único e definitivo “jeito de ser guarani” e não seria possível “traduzir” seu estilo de pensar e de viver em poucas palavras. É necessário considerar as específicas e variadas situações em que eles vivem, as mudanças que se processam em suas práticas cotidianas, como efeito de muitos fatores, as alternativas que eles vão construindo para continuar vivendo em coletividades, no dinamismo de suas experiências riquíssimas de vida.

Guarani na América Latina

Em termos de localização, de modo geral, os Kaiowá vivem hoje em pequenas parcelas de seu território tradicional, em Mato Grosso do Sul, com uma população (no Brasil) superior a 40 mil pessoas. Os Nhandeva vivem no Sul do Brasil, Paraguai e Argentina, enquanto que os Mbya, que são em maior número, vivem na Argentina, Paraguai e Brasil, concentrando-se, de modo especial, no Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (há um grupo familiar que vive hoje no estado do Pará). Os Mbya são conhecidos pela grande mobilidade, que corresponde a uma forma de percepção e de ocupação do território, mas também representa um estilo de relação constituído entre as pessoas que habitam esses lugares.

IHU On-Line – Que aspectos culturais são próprios da tradição guarani? O que vocês destacam na história deste povo, desde a sua origem?

Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin – Podemos destacar dois aspectos importantes da cultura guarani. O primeiro diz respeito à dimensão sagrada, que está presente no cotidiano da vida destes grupos. Esta é uma questão complexa, não sendo possível resumir sua cosmologia (amplamente descrita por Curt Nimuendajú, Bartomeu Meliá, Peirre Clastres, Graciela Chamorro, entre outros pesquisadores) em poucas palavras. No entanto, uma consideração importante pode ser feita nesta direção: para os guarani, não há uma distinção absoluta, ou uma linha divisória que separa aspectos da vida natural e sobrenatural. Assim, as ações cotidianas são marcadas por certa ritualidade, as explicações para os acontecimentos têm uma base objetiva e também subjetiva, as razões para algumas práticas e condutas são de ordem material e também espiritual.

De acordo com muitos pesquisadores, que tem realizado estudos acadêmicos em diferentes épocas, o povo guarani se considera eleito, mas precisa viver em um mundo imperfeito. Cada pessoa precisa aprender a conviver e a estabelecer um equilíbrio entre duas naturezas que a constituem – a humana e a divina. É esta ambivalência que constitui o desafio da vida humana, e que impele o guarani a superar sua natureza finita e buscar a perfeição que lhe aproxima da condição divina. Aprender a conviver e a conhecer os outros seres que habitam os limites do seu território é uma das estratégias deste povo. Talvez, por isso, suas atitudes não sejam propriamente de conflito e de enfrentamento aberto, mesmo quando há invasões em suas terras.

Em uma comunidade guarani é indispensável à existência de uma casa de reza, a Opy. Nela se estreitam os vínculos com o Sagrado, se realizam os rituais mais importantes, se estabelecem as condições para se ter saúde, se realizam os processos de nomeação e de cura. E nos rituais sempre está presente o cachimbo – petynguá, com o qual fazem uma espécie de defumação, que possibilita a purificação, em alguns casos, e permite a transformação de um certo objeto comum, em objeto guarani. Também nos rituais se observa o uso do bastão de taquara – o taquapy – da flauta, do violão, da rabeca, do maracá, que são alguns dos instrumentos que elevam o canto e dão força comunicativa aos rituais. Tudo isso é parte indispensável para o bem viver, na concepção Guarani.

O valor da palavra

Um segundo aspecto diz respeito à palavra, que para os guarani é um importante elemento de constituição da pessoa e de elaboração contínua de seu modo de viver. Estudiosos como Curt Nimuendajú e Bartomeu Meliá afirmam que os guarani são “o povo da palavra”, e a prática de escutar e de falar configura sua organização social, política, religiosa. Graciela Chamorro afirma, ainda, que a espiritualidade guarani é uma “experiência da palavra” ancorada em uma complexa teologia que só se pode observar frente a um estudo profundo e prolongado.

É pela palavra que a pessoa guarani vai sendo constituída, e essa produção se inicia antes mesmo do nascimento de um novo ser, ou de sua concepção propriamente dita. Para eles a vida se inicia quando um componente divino é enviado e se coloca a caminho, até chagar e fazer morada em um corpo guarani. Essa porção divina é enviada em forma de palavra-alma e se torna pessoa à medida que vai sendo pronunciada, lida, inventada, através de palavras que são proferidas pelos pais, pelos líderes religiosos, pela comunidade, em diferentes momentos cotidianos e rituais. Observa-se, assim, que a palavra é um componente central no dia-a-dia dos guarani e ela se converte em conselhos e ensinamentos (dos pais para os filhos, dos anciãos – karaí – para os jovens, e assim por diante). Uma das maiores preocupações dos pais é assegurar o desenvolvimento da criança e faz necessário dizer que eles são extremamente afetivos e cuidadosos com ela, tratando-a como se fosse um hóspede querido, para que, então, se acostume com a vida, condição finita e humana. Ao longo da vida, uma pessoa guarani precisa aprender certas condutas que lhe permitam aproximar-se cada vez mais de sua porção divina, e, portanto da palavra que expressa a sua alma. Assim, o respeito a várias regras, no dia-a- dia, assegura que nela se mantenha e se aprimore as características divinas – ser generoso, escutar a palavra dos outros, compartilhar, ser leve, manter-se alegre, são manifestações de divindade. O contrário pode também ocorrer quando, por exemplo, as pessoas desrespeitam as regras sociais e, neste caso, a porção humana prevalecerá e elas estarão cada vez mais próximas dos animais.

O significado central da palavra na vida dos guarani pode ser pensado, ainda, pelas formas como eles definem e organizam a chefia: pode-se dizer que o poder de alguém nestas sociedades não se estabelece pela coerção de um chefe que possui o direito de ser ouvido, e sim pela capacidade oratória desse chefe, que tem o dever de falar, de ser convincente naquilo que diz, utilizando, para isso, as palavras com sinceridade e falando com o coração. Os guarani nos falam continuamente que a palavra deve expressar a verdade, o bom sentimento, e deixar ver aquilo que somos. E, por acreditar nisso, eles são notáveis no exercício da tolerância, na diplomacia e do respeito pelos outros. Eles acreditam que a palavra tem o poder de construir o entendimento, quando proferida com sinceridade, por isso a principal forma de luta política desse povo se dá por meio do discurso – sempre que convidados a falar, eles elaboram sua intervenção de modo a estabelecer o entendimento e o respeito (partem, quase sempre de uma fala mais elogiosa, que valoriza o interlocutor), e só então apresentam sua reivindicação, para que esta possa ser efetivamente ouvida e compreendida. Ocorre que, na dinâmica das relações políticas da sociedade ocidental contemporânea, a palavra não funciona, necessariamente, como expressão da verdade e da mútua compreensão e, talvez, por isso, muitas vezes os discursos guarani não são vistos como formas de luta e nem como expressões de um firme posicionamento.

É importante destacar, ainda como aspecto relevante, a dinamicidade da língua: os guarani mantém, de um modo geral, a comunicação cotidiana em sua própria língua, sendo o português e o espanhol línguas utilizadas para estabelecer relações com os outros. Em cada uma das parcialidades da etnia guarani, a língua falada apresenta diferenças importantes, de pronúncia, de estilo, de expressões, em função da realidade cultural, social e política nas regiões onde vivem.

IHU On-Line – Que vínculo os índios guarani mantêm com a terra?

Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin – Embora este povo possua vínculos ancestrais com um amplo território, eles vivem, em grande maioria, em pequenas porções de terra, com áreas que variam entre 5 a 500 hectares. No Brasil, a situação mais complexa é a de Mato Grosso do Sul, onde poucas áreas estão efetivamente demarcadas, sendo que uma grande parcela da população Kaiowá vive confinada em pequenas reservas e ou em acampamentos de beira de estradas. No Rio Grande do Sul, também existem diversas comunidades Mbyá vivendo às margens das rodovias. É preciso dizer, antes de mais nada, que esta não é uma opção dos guarani e, sim, uma condição que a eles foi imposta em função do modelo de ocupação e de desenvolvimento regional e nacional.

Viver em pequenas porções de terra não é adequado a um povo para quem a terra é fonte de vida, é lugar onde se restabelecem elos entre eles e seus ancestrais, onde se celebra a vida, onde se cultiva a porção divina que vive em cada pessoa, e onde se organiza o viver. Sobre ela se estrutura o nhande rekó – o modo de ser guarani.

Ainda em relação aos vínculos dos guarani com a terra, é importante lembrar que uma marca distintiva deste povo é sua mobilidade. Neste sentido, a vida guarani pode ser pensada como um “contínuo caminhar”. Eles se movimentam num amplo território, hoje compartilhado com muitas outras pessoas (e constituído também pela presença de cidades, de fazendas, de plantações, de matas). No entender de muitos estudiosos que se dedicam à cultura guarani, a mobilidade não se refere apenas a um modo de relacionamento com a terra, mas constitui também o nhande rekó, que prevê a mobilidade das pessoas e das famílias entre os grupos e a mobilidade dos grupos no interior do território mais amplo. Como estilo de vida, a mobilidade colabora para a produção de saberes, para a circulação maior de bens, de sementes, de ervas medicinais, e ainda proporciona às pessoas o desenvolvimento de certas capacidades que são consideradas importantes para assegurar o bem viver. Neste perambular constante, os guarani vão incorporando elementos de distintas regiões e culturas aos seus modos de viver, e vão também restabelecendo laços de parentesco, de colaboração, de partilha, aspectos fundamentais para a cultura e para a tradição deste povo.

Os guarani possuem vínculos com um território geográfico amplo, não mais contínuo como no passado, que é compartilhado por diferentes sociedades e no qual eles se mantém perambulando, estabelecendo intercâmbios, formando aldeias em locais estratégicos, constituindo referenciais simbólicos e práticos. As formas de ocupação acontecem, portanto, através de deslocamentos concretos desses grupos, mas também pressupõem uma dimensão religiosa.

IHU On-Line – Por que alguns guarani vivem à beira das estradas, em especial na região Sul do Rio Grande do Sul? Que aspectos antropológicos explicam esse fato?

Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin – Os vínculos dos guarani com seu território são profundos e envolvem elementos materiais e espirituais, conforme assinalamos anteriormente. Para os guarani, a vida, em toda a plenitude e potencialidade, só pode se concretizar em um tekoha – um espaço específico onde se pode viver ao estilo guarani. De acordo com Bartomeu Melià, um tekoha não é um lugar qualquer, e sim um espaço assim identificado com a intervenção dos espíritos, que orientam o olhar do xamã (o Karaí). Neste lugar é que se dão as condições para que se realize o modo de ser guarani, e ele deve apresentar uma série de características que envolvem aspectos ambientais, sociais e sobrenaturais. É necessário que o Karaí sonhe com este local e, em geral, um tekoha deve ter água e matas, campos, animais, ervas, espaço para plantar e cultivar alimentos (o milho, a mandioca, batata doce, amendoim, feijão, melancia, abobora).

Neste sentido, quando os guarani ocupam um espaço ínfimo, à beira de uma rodovia, o que estariam nos dizendo? Quase sempre essa ocupação é, na verdade, o limite mais próximo que eles conseguem estar de uma área mais ampla, identificada como um tekohá, e que quase sempre se situa “do lado de dentro” das cercas que dividem certas propriedades.

Na atualidade, há uma intensa mobilização deste povo para que se realize a demarcação de suas terras, embora eles não utilizem estratégias de impacto e visibilidade, tal como fazem outros povos que ocasionalmente bloqueiam estradas, ocupam sedes de órgãos de assistência, etc. Existem cerca de 150 terras guarani a serem demarcadas no Brasil, e esta é uma responsabilidade do governo federal. No entanto, os poderes públicos têm agido de maneira negligente, desrespeitando prazos para os procedimentos demarcatórios, omitindo-se em conflitos que colocam em risco a vida de algumas destas comunidades e deixando de cumprir os preceitos constitucionais que estabelecem, clara e irrefutavelmente, o direito dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam. Em todo o ano de 2009, o governo Lula emitiu apenas um decreto de homologação de terra para o povo guarani. O decreto, assinado em 21/12/2009, homologa a demarcação da terra indígena Arroio-Korá, no Mato Grosso do Sul, com 7.175 hectares. Infelizmente, dois dias depois, na véspera do dia de Natal, o ministro Gilmar Mendes, do STF, concedeu liminar aos fazendeiros e os indígenas não puderam comemorar nem mesmo esta única homologação.

A luta pela terra

Também devido à luta por suas terras e por serem obrigados a viverem confinados em pequenos espaços territoriais, várias lideranças indígenas têm sido vítimas de violências. O povo guarani é o que mais sofre violências no Brasil. O estado de Mato Grosso do Sul, onde vive o maior contingente populacional deste povo, continua sendo recordista violências e desrespeito aos direitos indígenas. Em 2009, o estado continuou se destacando no número de assassinatos de lideranças indígenas: foram 33 vítimas de assassinatos, mais da metade dos casos de todo o país.

A prioridade do governo federal, evidenciada em diversas decisões tomadas nestes últimos anos, tem sido a de incentivar grandes empreendimentos econômicos, mesmo que estes possuam grandes impactos local, regional, ecológico e social. Infelizmente, muitas das obras construídas ou projetadas incidem sobre terras indígenas, e também os investimentos em monoculturas, que exigem amplas áreas de terra, acabam por desrespeitar limites de terras indígenas, dificultando as demarcações e gerando tensões e conflitos expressivos em determinadas regiões. No governo do presidente Lula registram-se os maiores índices de lucratividade de empresas, de instituições bancárias, e os menores números de demarcações iniciadas e finalizadas, e tais dados nos informam sobre o lugar que ocupa a temática indígena neste contexto. Também nestes anos verifica-se um crescimento assustador nos índices de violência praticada contra o povo guarani.

IHU On-Line – Que lições Sepé Tiaraju deixa para os guarani?

Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin – Uma consideração inicial importante se faz necessária, quando abordamos essa questão: embora o povo guarani, tal como a maioria dos povos indígenas que conhecemos, não vincule sua história a certos nomes, a certos heróis, a feitos individuais exemplares, como nós o fazemos, na atualidade pode-se dizer que Sepé Tiaraju é um nome relevante para eles, e isso se explica por diferentes razões. Possivelmente, por ter liderado um movimento de resistência significativo na história desse povo, Sepé seria lembrado, juntamente com outros tantos líderes. No entanto, na atualidade, o nome deste líder traz à memória os acontecimentos de mais de 250 anos, que marcam um processo de luta e de defesa das terras por eles ocupadas. Sepé é então um nome que faz lembrar e celebrar, no canto, na dança, nas palavras dos homens e mulheres de hoje, a histórica resistência de seus antepassados, em defesa da terra e da liberdade.

Assim, quando os guarani dirigem-se para São Gabriel, a cada ano, na data em que ocorreu o massacre de mais de 1500 guarani, no conflito que envolveu os exércitos de Espanha e de Portugal, em disputa pela posse deste território, eles não apenas o fazem para lembrar de Sepé Tiaraju como um herói; eles seguem em caminhada, para lá realizar seus rituais, para proferir suas palavras e aconselhar os jovens. Lá eles também celebram a resistência, reativam o sonho e a esperança de ver garantidas as suas terras. Esta é, portanto, uma ocasião de encontro, e serve para dar materialidade à palavra, recontando acontecimentos marcantes, discutindo os atuais problemas e especialmente, escutando os discursos proferidos pelos karaí, que descrevem e, assim, antecipam o futuro desejado.

IHU On-Line – Qual a importância da cultura guarani na formação da identidade do povo gaúcho?

Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin – A resistência do povo guarani e os duros embates travados contra os exércitos da Espanha e Portugal, em defesa da terra, são muito valorizados por alguns segmentos sociais, intelectuais, militantes das causas populares e indígenas. Em livros de história são escassas as informações sobre estes enfrentamentos e lutas e, portanto, o que se tem acesso são fragmentos e relatos de histórias. Essas histórias são transmitidas a algumas parcelas da população através da tradição oral e do imaginário mítico, que vem sendo produzido a partir dos simbolismos em torno das representações de Sepé Tiaraju.

O gauchismo tradicionalista acabou incorporando algumas representações de Sepé nos seus contos, versos, prosas, músicas. Mas essa incorporação, de fato, tende a acomodar os conflitos e tensões históricas e tudo ocorre como se houvesse uma harmoniosa integração cultural. Além disso, em algumas circunstâncias os sentidos são subvertidos – como, por exemplo, quando o brado “Alto lá, esta terra tem dono”, atribuído a Sepé Tiaraju, é incorporado a discursos de ruralistas, e passa a servir, então, como marca de uma apropriação fundiária que gerou a expulsão e a situação de vulnerabilidade que se encontram hoje os guarani. A expressão “Esta terra tem dono”, no entender guarani e no entender capitalista tem significados radicalmente distintos.

IHU On-Line – Como esses subgrupos (ou parcialidades) étnicos guarani se modificaram ao longo do tempo? Que transformações sociais e culturais marcaram a trajetória deles?

Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin – No Brasil, existem pelo menos 240 povos indígenas diferentes, étnica e culturalmente falando. As realidades também são distintas em função da geografia, das relações e formas de contato, em função das perseguições, da discriminação, das políticas de estado, das interferências dos grupos econômicos, políticos e do Estado.

Os guarani, assim como os demais povos que convivem cotidianamente com a sociedade envolvente, foram constituindo estratégias e mecanismos necessários para compreender e saber conviver com as demais culturas. As transformações ou modificações culturais são inevitáveis – aliás, não há cultura no mundo que não seja continuamente reinventada, confrontada com novas situações e com novas práticas. Exatamente porque são feitas de práticas cotidianas, e não apenas de um conjunto de aspectos vinculados à “tradição”, que as culturas – inclusive as nossas -, subsistem e se movimentam.

Tal como as culturas ocidentais e nacionais, ao longo da história, as culturas indígenas vão se adaptando, criando e recriando as maneiras e modos de ser e de viver, reelaborando saberes, convenções, crenças, estruturas políticas, econômicas, religiosas, etc. É uma pretensão um tanto eurocêntrica a que nos leva a supor que ao incorporarmos, por exemplo, o computador, as câmeras digitais, os celulares e tantos outros novos artefatos, estaríamos aprimorando nossas culturas, e que as mudanças nas culturas indígenas seriam signos de “perda cultural”.

Afirmar, no entanto que as culturas se transformam, não é o mesmo que dizer que isso ocorre da mesma maneira em todos os cantos do mundo e para todos os sujeitos. É importante ressaltar que as transformações são também resultantes de relações de poder e de jogos de força que, em muitos casos, resultam na submissão de alguns grupos ao estilo de vida ou aos padrões de outros. É assim que precisamos entender as imposições feitas aos guarani, quando estes são forçados, por exemplo, a viver em condições sub-humanas, e a sobreviver de programas assistenciais e de distribuição de cestas básicas para não morrer de fome, enquanto suas terras tradicionais continuam ocupadas, loteadas, invadidas. É preciso considerar, portanto, que a maior transformação nos modos de vida guarani decorre da não demarcação de suas terras, e da omissão do Estado no que se refere à garantia de seus direitos.

Apesar de tantas adversidades e da opressão que lhes é imposta, os modos de ser e de viver dos guarani nos mostram que é possível a existência de um mundo onde sejam respeitadas as diferenças e a pluralidade de culturas e povos. O modo de ser guarani – essa teimosia histórica em viver, em se movimentar num amplo espaço territorial, em proferir sua palavra – nos permite problematizar certas maneiras de pensar e de viver, nos questionando a estrutura fundiária concentradora, injusta, violenta, as relações com o meio ambiente que se baseiam na lucratividade e não no equilíbrio. Permite também questionar as formas como se estabelecem as fronteiras nacionais, a segregação e a exclusão geradas por elas, bem como o modelo de produção e as formas de exercício de poder.

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