Isso está acontecendo em pelo menos três dos maiores projetos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC): Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, que estão em construção e Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, em fase de licenciamento ambiental. Leia mais sobre as ameaças à sobrevivência dos indígenas isolados na Amazônia.
Telma Monteiro
A organização não governamental britânica Survival International denunciou, em 19 de maio, a ameaça à sobrevivência de grupos indígenas isolados em função da construção das duas usinas do Rio Madeira – Santo Antônio e Jirau, em Rondônia. Em comunicado, a ONG informa que há quatro comunidades de indígenas isolados ameaçados pelas obras.
A Survival cita a expedição promovida pela Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé em parceria com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e outros[1], em dezembro de 2009, que comprovou a presença de indígenas isolados em fuga na região onde está sendo construída a usina de Jirau. O relatório concluiu que eles fugiram do território que ocupam na região formada pela Estação Ecológica Serra dos Três Irmãos/Mujica Nava, Parque Nacional do Mapinguari, situadas numa faixa entre 10 e 30 quilômetros das obras da usina de Jirau.
Indígenas isolados nas obras de Santo Antônio
Em 2006 a FUNAI alertou o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) sobre a existência de mais Terras Indígenas (TIs), além daquelas citadas nos estudos ambientais, que seriam afetadas pelos empreendimentos no rio Madeira e sobre a existência de indígenas isolados. No Estudo de Impacto Ambiental (EIA) há uma lista de apenas cinco TIs que seriam afetadas pelas usinas Santo Antônio e Jirau.
O Parecer Técnico do Ibama analisou o EIA para a emissão da Licença Prévia (LP) das duas usinas – Santo Antônio e Jirau. Nele os técnicos assinalam a existência de indígenas isolados, de localização imprecisa, na região de Porto Velho, Rondônia, onde estavam planejadas as hidrelétricas.
Os remanescentes de isolados habitam Terras Indígenas já delimitadas e/ou legalmente protegidas. Mas o EIA não considerou nenhuma TI demarcada que será diretamente afetada, ignorando que três delas estão diretamente sob a influência dos empreendimentos: as TI Karipuna, Karitiana e Uru Eu Wau Wau.
Entre as condicionantes da LP que foi concedida para as duas usinas, a 2.27 estabelece que os indígenas isolados sejam incluídos no âmbito do Programa de Apoio às Comunidades Indígenas.
A TI Karitiana, uma das cinco mencionadas no EIA, foi homologada em agosto de 1986, com mais de 89 mil hectares. O resultado do processo de regularização revelou alguns problemas. Um trecho substancial dessa TI ficou fora do processo e uma parte dela se sobrepôs à Floresta Nacional (FLONA) do Bom Futuro. Essa situação – ao mesmo tempo jurisdição do Ibama e da FUNAI – colocou em risco a vida dos indígenas isolados devido às dificuldades nas ações de proteção à TI. Conflitos entre as instituições são, nesse caso, letais.
Mais importante nesse contexto é que justamente no interior da FLONA do Bom Futuro há indícios da presença de indígenas não contatados, os chamados indígenas isolados ou em isolamento voluntário. Na época em que foi realizado o Projeto Básico Ambiental (PBA) da hidrelétrica Santo Antônio, em fevereiro de 2008, a FUNAI estava conduzindo um processo para revisão dos limites da TI Karitiana; essa revisão pretendia atender à reivindicação dos indígenas que queriam recuperar parte do seu território tradicional e resolver o impasse da sobreposição com a FLONA.
No próprio PBA da usina de Santo Antônio, documento indispensável para a concessão da Licença de Instalação (LI), está consignado que a FUNAI encaminharia a confirmação da existência de indígenas isolados na região, através da sua Coordenação Geral de Índios Isolados (CGII). A FUNAI teria, então, a título de urgência, que dar andamento aos procedimentos pertinentes às informações sobre quais grupos indígenas isolados estariam no interior da FLONA do Bom Futuro.
Dentre as ações emergenciais previstas nesse PBA consta a vigilância e proteção da TI Karitiana: “encaminhar no curto prazo as medidas necessárias para um levantamento sobre grupos indígenas isolados que possivelmente se encontram no interior na área da Floresta Nacional do Bom Futuro”. A responsabilidade, aqui, foi transferida do consórcio para a FUNAI.
Diante disso, a FUNAI preparou um Plano de Trabalho – março de 2008 – para informar ao consórcio responsável pela usina de Santo Antônio – na época, o Madeira Energia S/A(MESA) – da necessidade de apoio financeiro para as despesas na identificação da área de indígenas isolados que seriam atingidos direta ou indiretamente pela usina, pelo reservatório e pela construção do canteiro de obras. Os recursos deveriam sair do consórcio, e até hoje não se tem notícia do cumprimento do acordo.
O PBA da usina de Santo Antônio comprova que o consórcio sabia da existência dos isolados na região da FLONA do Bom Futuro e sabia dos vestígios de sua presença em outros lugares. Dados da própria FUNAI e relatórios técnicos da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, de Rondônia, já confirmavam a existência de grupos de indígenas isolados na área de influência direta e indireta das usinas de Santo Antônio e Jirau.
Embora evidente o conhecimento da presença dos grupos de isolados na região de influência das usinas, o consórcio se eximiu da responsabilidade. A construção foi iniciada depois da obtenção da Licença de Instalação (LI) sem o cuidado de acompanhar o andamento do plano.
Ficou para 2009, através do relatório da mais recente expedição da Kanindé e FUNAI, depois do adiantado das obras, a confirmação da existência de indígenas isolados na região das usinas do Madeira. Embora estivesse explícito no PBA da usina de Santo Antônio o conhecimento da presença dos indígenas isolados que requeria, conforme a própria solicitação da FUNAI, estudos mais abrangentes, o presidente do Ibama assinou a LI e desconsiderou os riscos para a sua sobrevivência.
A FUNAI não teria capacidade para atender às “medidas emergenciais” estabelecidas pelos empreendedores no PBA sem a necessária estrutura e sem recursos. O Plano de Trabalho apresentado pela FUNAI era claro:
“Os grupos isolados e as terras onde habitam, passíveis de serem atingidos, estão localizados à margem esquerda do rio Madeira, nas áreas Jacareúba/Katawixi e MujicaNava/Serra Três Irmãos, em duas referências geográficas, no estado do Amazonas; e à margem direita, nas áreas no rio Candeias e nos igarapés Oriente, Formoso e Cachoeira do Remo (região das Terras Indígenas Karipuna e Karitiana e FLONA Bom Futuro), em três referências geográficas, no estado de Rondônia.”
O custo total proposto pela FUNAI, no Plano de Trabalho, seria de R$ 794 mil, que cobririam os três anos de pesquisas em campo, necessários para oficializar geograficamente a presença dos grupos isolados. Mesmo assim, a FUNAI acabou emitindo um parecer dando sua anuência aos projetos das usinas do Madeira.
Indígenas isolados nas obras de Jirau
A companhia francesa GDF Suez (inserir link da campanha) e a construtora brasileira Camargo Corrêa são parceiras no consórcio Energia Sustentável do Brasil (ESBR) e responsáveis pela construção da usina de Jirau, no rio Madeira. As empresas do consórcio ESBR também já sabiam da presença dos isolados na região, através do PBA da usina de Santo Antônio e dos documentos da própria FUNAI no processo de licenciamento ambiental.
Os primeiros responsáveis, desde 2001, pelos estudos ambientais e de viabilidade econômica das duas usinas – Santo Antônio e Jirau – eram a empresa estatal Furnas Centrais Elétricas e a Construtora Norberto Odebrecht. O consórcio formado pelas duas empresas arrematou no primeiro leilão, em 2008, a usina de Santo Antônio e concorreu ao segundo para “ganhar” Jirau, também.
O plano de construir as duas usinas não deu certo. A sonhada economia de escala naufragou nas águas do rio Madeira. Para surpresa do setor, o consórcio vencedor de Jirau, ainda em 2008, foi outro, liderado pela gigante francesa GDF Suez e pela construtora Camargo Corrêa. Sob o pretexto de economizar R$ 1 bilhão, o presidente do consórcio anunciou logo depois do leilão que iria alterar a localização da usina para 9,2 quilômetros rio abaixo. Da Cachoeira de Jirau para a Ilha do Padre ou Caldeirão do Inferno.
Embora a Licença Prévia tenha sido concedida para implantação da usina na Cachoeira de Jirau, o presidente do Ibama não fez objeções à alteração ilegal. Ele aproveitou também para atender a outro pedido do consórcio vencedor e criou uma licença de instalação – ilegal – para o canteiro de obras. A LI chamada de “definitiva” só saiu sete meses depois quando as obras estavam a pleno vapor.
O PBA de Jirau, elaborado num piscar de olhos, primeiro para o canteiro de obras e depois para o resto, tem um capítulo dedicado ao Programa de Apoio às Comunidades Indígenas – Avaliação e Monitoramento de Impactos Socioambientais. Um dos itens desse programa é o Subprograma de Informação de Índios Isolados (PBA, p 329) que apresenta a proposta de levantar apenas informações adicionais dos grupos de indígenas isolados na área de perambulação da TI Uru-Eu-Wau-Wau.
Ao se referir TI Uru-Eu-Wau-Wau o texto indica que há presença de indígenas isolados como os Parakuara e os Jurureís, assim como dois grupos cujos nomes são desconhecidos, citando um Diagnóstico Etnoambiental, produzido pela ONG Kanindé, em 2002.
Embora tendo que cumprir um programa específico no PBA sobre o tema dos isolados, o consórcio formado pela GDF Suez e Camargo Corrêa transferiu a sua responsabilidade para a FUNAI. Alegou que a “política específica e diferenciada destinada ao tratamento de índios isolados” seria atribuição da instituição que detém treinamento e metodologias próprias.
O objetivo do Subprograma de Informação de Índios Isolados no PBA da usina de Jirau seria averiguar a presença de indígenas isolados na TI Uru-Eu-Wau-Wau através de informações fornecidas por entrevistas dos membros dos grupos residentes na TI. As entrevistas seriam uma forma de resgatar “a memória social sobre os índios isolados (contatos, guerras inter tribais, características culturais), área e deslocamento supostamente atribuídos a esses povos, expectativas de contato e possibilidade de ter que dividir espaço territorial com esses povos.”. Não se tem notícia de que essa “averiguação” tenha sido iniciada.
Para reforçar que a presença dos isolados sempre foi do conhecimento tanto dos responsáveis pela usina de Santo Antônio como dos de Jirau, basta conhecer o parecer do Ibama sobre a LI de Jirau, de maio de 2009. Na página 102, o Ibama confirma a importância do Plano Emergencial de Proteção e Vigilância de Terras Indígenas do Complexo Madeira e suas diretrizes para implementar ações emergenciais de Proteção e Vigilância de Terras Indígenas, inclusive índios isolados. Essa deveria ser uma condicionante, diz o texto, “de uma eventual Licença de Instalação”.
Indígenas isolados em Belo Monte
Outro caso grave é a presença de indígenas isolados na região dos rios Xingu e Bacajá, descrita desde a década de 1970. Há estudos que comprovam a presença de isolados nas cabeceiras do Igarapé Ipiaçava e de um grupo isolado (ou grupos isolados) na TI Koatinemo. A usina de Belo Monte, no rio Xingu, está planejada para ser construída próxima das áreas de perambulação desses grupos isolados.
O território de perambulação de um grupo isolado está localizado a menos de 100 km (em linha reta) do local onde está previsto o barramento do rio Xingu, no sítio Pimental, na Volta Grande do Xingu.
O EIA de Belo Monte apresenta superficialmente a questão dos indígenas isolados e lista dois grupos que ainda precisam ser identificados. O Parecer Técnico do Ibama que analisa o Componente Indígena do EIA de Belo Monte faz referência aos impactos que podem afetar os indígenas isolados, como a ação de grileiros e a ameaça à integridade física e cultural nas áreas que ocupam.
O parecer reforça o fato de que a redução da vazão na Volta Grande do Xingu vai gerar efeitos em cadeia sobre a ictiofauna nas florestas marginais ou inundáveis; o movimento migratório criará aumento populacional da região e provocará a pressão sobre os recursos naturais; essa pressão levará às invasões das terras indígenas onde perambulam os grupos isolados.
Os técnicos do Ibama recomendaram que antes do leilão de compra de energia de Belo Monte, ocorrido em 20 de abril, o poder público deveria coordenar e articular ações para proteção dos indígenas isolados. Seria preciso publicar uma portaria para restrição de uso entre as Terras Indígenas Trincheira Bacajá e Koatinemo.
O Governo Federal está ciente da presença desses grupos isolados na região do Xingu. O Programa Territórios da Cidadania, do Ministério da Justiça destinou agora, em 2010, R$ 2,78 milhões para ações de Localização e Proteção de Povos Indígenas Isolados ou de Recente Contato. A FUNAI é a responsável para executar essas ações através da Coordenação Geral dos Índios Isolados (CGII).
A região do Xingu onde pretendem construir Belo Monte está incluída entre as ações. O recurso disponível é de R$ 120 mil para o levantamento de informações e monitoramento sobre as três referências de presença de indígenas isolados em áreas das TIs Cachoeira Seca, Mengragnoti, Koatinemo, na região do Xingu.
Mesmo assim, a despeito das omissões sobre a presença de grupos indígenas isolados, o processo de licenciamento de Belo Monte continua célere e com promessas de concessão da licença ilegal para canteiro de obras.
[1] A expedição foi realizada pela equipe e em parceria com: Coordenação Geral de Índios Isolados – CGII/Funai: Egipson Nunes Correia- Indigenista; SIPAM– Sistema de Proteção da Amazônia / CR.PV: Rogério Vargas Motta – Analista Intelectual/ DEAMB; Centro de Trabalho Indigenista-CTI: Ivan Hamamoto Marques Silva – Aux. de Chefe de Frente; KANINDÉ – Associação de Defesa Etnoambiental: Leonardo Jose da Cruz Sousa – Gestor Ambiental
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