“Quando a favela é muito grande, as pessoas circulam muito pouco pela cidade, então podemos falar em espaços segregados porque a sociabilidade é muito pequena. Por exemplo, tem uma favela aqui perto da Barra da Tijuca que fica a cinco minutos da praia, e muitas crianças e adolescentes daquela favela não vão à praia porque acham que aquele espaço não pertence a elas”, explicou Ângela.
Ângela Paiva é mestre em Educação pela Universidade de Connecticut (EUA) e em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, onde também fez o doutorado. Atualmente, é professora na PUC-Rio. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que fatores foram determinantes para que, na última década, houvesse um crescimento na universalização do ensino básico?
Ângela Paiva – Desde a década de 1990, no governo FHC, houve a universalização do ensino básico. No final dessa década, 98% das crianças de seis anos de idade estavam ingressando no ensino fundamental. O grande problema é que essas crianças não ficam na escola. Temos uma evasão muito grande, principalmente a partir da quinta série.
IHU On-Line – Qual é a relação da escola com o espaço habitacional de seus alunos?
Ângela Paiva – Nossa pesquisa analisa as escolas que atendem as crianças da favela. Várias dessas escolas estão inclusive localizadas dentro das favelas maiores. Então, temos uma escola com um grupo muito homogêneo. É um grupo que vem de famílias que têm pouquíssima cultura escolar, então é um lugar onde há uma confluência perversa desses fatores que levam a prática educacional a não ter êxito.
Temos professores que são preparados para atender outro tipo de aluno, e aí eles vão dar aula onde só tem alunos que não fazem ideia de que aquele sistema escolar pode fazer sentido. O que nós vimos é que podemos distinguir os professores em dois tipos: de primeira a quarta série, nós temos um professor que faz o papel de herói, pois ele luta para que aquela criança saia daquele círculo vicioso de evasão escolar. E depois, da quinta a oitava série, vimos que os professores perdem muito a esperança, eles sabem que a escola não está conseguindo fazer com que aquele aluno aprenda. Esse professor percebe que aquele ensino não tem muito significado para aquele aluno. Fora todas as dificuldades materiais das escolas públicas que atendem esses alunos da favela.
IHU On-Line – A visão e a aposta que famílias de baixa e alta renda fazem na escola são as mesmas?
Ângela Paiva – As famílias de classe média e alta, famílias de renda maior, têm uma aposta um tanto automática. É muito comum, nas escolas que atendem as crianças de classe mais abastadas, dizer que as escolas estão sozinhas. Isso porque não há muito envolvimento dos pais, que trabalham o dia todo. Essa é a grande queixa. As famílias populares já fazem uma aposta enorme. Essa coisa de dizer que as famílias de classe popular não dão valor à educação não é verdade, porque toda mãe e todo pai sabe que aquele é o caminho certo, mas, neste caso, é um caminho muito mais difícil. A aposta, portanto, é a mesma, pois é na educação. Mas, para famílias de classe mais alta, esse é um caminho muito natural.
IHU On-Line – Porque a segregação urbana é melhor representada pelas favelas?
Ângela Paiva – No caso do Rio de Janeiro, nós temos uma verdadeira segregação urbana porque há tanto favelas localizadas longe da cidade como ao lado da cidade, mas que não se comunicam. Quando a favela é muito grande, as pessoas circulam muito pouco pela cidade, então podemos falar em espaços segregados porque a sociabilidade é muito pequena. Por exemplo, há uma favela aqui perto da Barra da Tijuca que fica a cinco minutos da praia, e muitas crianças e adolescentes daquela favela não vão à praia porque acham que aquele espaço não pertence a elas. Então, podemos certamente falar numa sociabilidade muito segregada, provocada por essa localização fechada que é a favela.
IHU On-Line – Em sua opinião, depois desta pesquisa, qual é o papel da escola pública?
Ângela Paiva – O papel da escola pública é furar esse ciclo. Estávamos falando aí em espaços segregados, então, nesse sentido, o papel é transformar a escola pública numa escola verdadeiramente republicana. Ou seja, é preciso dar oportunidades para que as crianças tenham uma educação de qualidade.
Nós já conseguimos a universalização do ensino, mas as crianças não ficam na escola ou são mal alfabetizadas, o que chamam de analfabeto funcional. Então, é uma escola que não oferece uma qualificação para o mercado de trabalho, a escola pública que atende esses espaços segregados é uma escola que enfrenta muita dificuldade. Penso que as políticas públicas devem estar muito focalizadas nessas escolas, provendo profissionais, materiais. Nós visitamos escolas em que a diretora era a inspetora também.
Uma escola não pode funcionar assim. Você entra numa escola de classe média e vê inspetores em todos os andares do lugar. Então, você entra numa escola pública de primeira a quarta série e já imagina quantos problemas que podem acontecer em cada dia letivo. O remédio é fazer políticas educacionais sustentadas que não dependam somente do governo, que sejam políticas de Estado e que não terminem quando o governo acaba. Além disso, é preciso prover mais ainda do que para as outras escolas em função da escassez que esses alunos já têm ao seu redor.
IHU On-Line – Entre os alunos, morar na favela faz uma diferença fundamental em decorrência da exposição à cultura da violência e da pobreza?
Ângela Paiva – Ao morar na favela, você tem uma dificuldade a mais. A sociedade brasileira como um todo tem vários problemas sociais a serem resolvidos, mas o fato de morar na favela, para as crianças, pode vir a ser um complicador. Porém, não necessariamente, porque há famílias muito exitosas dentro das favelas. Temos que ter muito cuidado aqui para não fazer uma representação de que a favela é só problema, só violência. Na favela, há milhares de famílias trabalhadoras, só que com mais dificuldade, pois tudo é mais escasso e difícil. Eles são lutadores. A favela é muito complexa porque a dificuldade maior faz com que os alunos estejam muito mais propensos à violência já que convivem muito mais com o tráfico de drogas, com mais desemprego. Então, é um ambiente que puxa para baixo. É como se ali tivesse uma sociabilização negativa.
IHU On-Line – É da escola a responsabilidade para mudar essa realidade de pobreza e violência?
Ângela Paiva – Claro que não é a escola sozinha que vai mudar isso, mas a escola é fundamental. Não há nenhum país que tenha conseguido fazer uma redistribuição da sua riqueza sem ter passado pela escolarização dos seus cidadãos. É fundamental a escolarização. A escola não vai resolver todas as questões sociais, mas, sem uma escola de qualidade e que proporcione o desenvolvimento das competências de cada um, não vamos chegar a lugar nenhum.
Essa pesquisa teve uma questão interessante para mostrar a complexidade da análise que é o seguinte: em cada favela, você tem aspectos distintos, mas o que ficou muito claro é a diferença entre o primeiro e o segundo segmento, ou seja, a diferença da atitude do professor de primeira a quarta série em relação ao professor da quinta em diante.
A segunda diferença são os professores que trabalham dentro e fora da favela. Os que trabalham fora da favela têm uma tendência muito maior em fazer uma representação negativa. Os professores que trabalham na favela problematizam mais, eles têm uma reflexão mais matizada dos problemas que as crianças enfrentam.
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