A entrevista é de Paolo Moiolo e está publicada no sítio chileno Noticias Aliadas, 06-05-2010. A tradução é do Cepat. Eis a entrevista.
Cada pessoa é sujeito de direitos próprios enquanto pessoa. Você lutou pelos direitos humanos nos anos da ditadura. Como está a situação hoje?
Os direitos humanos não são somente aqueles pelos quais lutamos na ditadura. São também os econômicos, sociais e culturais. São os direitos à educação, ao trabalho e à informação. São os da chamada “terceira geração”, em que, por exemplo, se fala do direito a um meio ambiente [saudável]. Em suma, os direitos humanos são integrais e indivisíveis. Como a democracia é inseparável dos direitos humanos.
Todos falam de direitos humanos, mas a realidade muitas vezes é diferente.
É certo. Há governos que assinaram, mas que não ratificaram os acordos. Por exemplo, os Estados Unidos, que até agora não ratificaram a Convenção sobre os Direitos da Criança [da ONU]. Como pode ser que uma grande potência que se assume defensora da democracia se oponha?
Isto vai muito além da vontade pessoa de Obama. É a política dos Estados Unidos que impõe sua própria vontade ao resto do mundo. Mas tudo isto pode terminar, porque nenhuma sociedade é estática. Como os direitos humanos, que são uma dinâmica permanente da vida. Uma declaração não é letra morta. É uma dinâmica na sociedade e na consciência. Creio que nos próximos anos veremos mudanças fundamentais. Hoje há um esvaziamento de valores e conteúdos, mas não devemos desesperar.
Você é Prêmio Nobel da Paz, assim como Obama. O que sentiu quando soube que o presidente norte-americano havia recebido esse prêmio?
Fiquei surpreso, mas lhe enviei uma carta de felicitações. Escrevi a Obama dizendo que me havia surpreendido com sua designação, mas que agora, como Prêmio Nobel, deveria ser coerente, trabalhando e lutando pela paz. Mas, lamentavelmente, Obama sofreu uma metamorfose. Cada dia se mimetiza mais com [o ex-presidente norte-americano] George W. Bush. Não é possível que instale sete bases militares na Colômbia, que esteja de acordo com a reativação da 4ª Frota do Exército, que mande 30.000 soldados ao Afeganistão para uma guerra perdida, acrescentando morte e dor à vida daquela gente. Inclusive à dos soldados dos Estados Unidos e da OTAN que voltam mortos ou imprestáveis para o resto da vida.
Estas são as guerras dos países ricos contra os países empobrecidos. São guerras econômicas e pela apropriação dos recursos naturais. Se esta é a política dos Estados Unidos, não tem nada a ver com a paz. Creio que a paz é outra coisa. A paz é um projeto de vida; Obama tem um projeto de morte.
Por que, então, o Comitê Nobel norueguês outorgou o Prêmio Nobel da Paz a Obama?
Francamente não sei. Para dizer a verdade, também não sei por que o deram para mim. Creio que também no meu caso se equivocaram. Porque eu sou um rebelde permanente diante de todas as injustiças. Sim, um rebelde, mas na esperança.
Mas a eleição de Obama gerou muitas esperanças, sobretudo fora dos Estados Unidos.
Creio que Obama chegou ao governo, mas não ao poder. Uma coisa é o que Obama possa querer como pessoa, e outra, bem diferente, o que possa fazer como chefe de uma potência que lhe impõe condições. É escravo de alguns centros de poder: o complexo militar norte-americano, o Pentágono, a CIA, as grandes empresas multinacionais.
Você sempre insiste muito no papel que as empresas multinacionais têm na situação mundial.
As multinacionais não têm fronteiras e se movem no mundo em função do saque dos recursos dos povos. A ONU lançou um alarme sobre a soberania alimentar. De acordo com a FAO, todos os dias 35.000 crianças morrem de fome. Como se chama isso? Este é o desafio que devemos enfrentar. As grandes multinacionais trabalham na monocultura. Mas a natureza nunca criou monoculturas, mas diversidade para produzir o equilíbrio. Estão destruindo uma criação de Deus. Só semeando a semente da solidariedade e do trabalho se pode produzir a paz e a vida.
Você é um rebelde de base cristã…
Sim, eu tenho uma base cristã, que para mim é fundamental. Minha fonte é o Evangelho. Eu cresci com os franciscanos. E sigo muito essa espiritualidade, assim como a de Charles de Foucauld.
Frequentemente se diz que a Igreja sempre está com o poder. Você concorda com essa afirmação?
Não, não a Igreja, mas a hierarquia, e também não toda. Olhe as paredes deste escritório… Ali está Evaristo Arns, arcebispo [emérito] de São Paulo. Aqui está a foto de Mons. Enrique Angelelli, um mártir, assassinado pela ditadura militar argentina. Pensemos em uma figura como Mons. Óscar Romero…
Eu sou um homem de meditação e oração. Para mim, a ação deve ter um fundo transcendente. Há valores e princípios. Todas as pessoas são irmãos ou irmãs, mesmo que sejam meus inimigos. Quando se diz “ama também o teu inimigo”, o que se está dizendo? Não fazer mal a ele, mas tratar de transformar o coração dele.
Eu sou um sobrevivente e a única coisa que me sustentou naqueles momentos foi a fé. Quando, depois de 32 dias em um calabouço imundo (porque não entrava nem luz nem nada), abriram a porta, vi escrito na parede o que um prisioneiro anterior havia escrito com seu próprio sangue: “Deus não mata”. Este é um testemunho de profunda fé.
Como foi sua prisão durante a ditadura?
Estive 14 meses preso e depois em liberdade vigiada. No dia 5 de maio de 1977 me prenderam [em Buenos Aires] e, algemado, me colocaram em um avião da morte que voou algumas horas sobre o Rio da Prata e o mar. Por fim, decidiram não me jogar por causa das fortes pressões internacionais. Devo agradecer a Deus por ainda estar aqui para trabalhar e dar testemunho. Como não se pode ter fé? Para mim a fé é vida.
Apesar de tudo, você fala sempre de esperança.
Porque, apesar de tudo, temos a capacidade de transformar a realidade. E esta é a esperança.
Como presidente da Academia Internacional de Ciências Ambientais de Veneza, o que pensar da recente Conferência Internacional sobre Mudanças Climáticas de Copenhague?
Creio que a única coisa que se obteve em Copenhague foi que não se aprovou nada. Compreendeu-se que é uma guerra entre os países pobres ou empobrecidos e os países ricos, que querem se apropriar dos recursos e que por isto metem os exércitos, as forças multinacionais, a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial… Isto é trágico.
Através da Academia de Ciências Ambientais de Veneza, da qual sou presidente, propusemos a constituição do Tribunal Penal Internacional para o Meio Ambiente e um Observatório Internacional do comportamento ambiental das empresas multinacionais que são as principais responsáveis pela destruição do meio ambiente. Pense nas empresas mineradoras e nas de soja. Pense nas empresas poluidoras do Norte que são enviadas à América Latina, Ásia e África. São as multinacionais que se apropriam das sementes e se um camponês quiser usá-las é acusado de criminoso.
E aqui, onde vê esperança?
Por exemplo, no movimento de camponeses sem terra da América Latina, que também está se difundindo pela África e Ásia, tratando desta maneira de estabelecer vínculos Sul-Sul. Estes camponeses querem a terra para trabalhá-la, não para explorá-la; para produzir vida, não morte. Ao contrário das multinacionais, que estão destruindo para ganhar mais em pouco tempo. Outra coisa em que é preciso prestar muita atenção é o movimento dos indígenas, que estão recuperando a memória [coletiva] e a língua e que estão se organizando. Outro elemento importante são os movimentos das mulheres, que estão avançando em todos os campos com sua sensibilidade, com seu modo de pensar diferente.
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