Sociedade do risco – Entrevista especial com Ana Clara Torres Ribeiro

“Acredito que a noção de sociedade como um todo dá a impressão de que todos estão, de alguma maneira, sofrendo a mesma dose de risco. Se observarmos um pouco melhor o risco, é profundamente desigual na sua manifestação.  Os que morreram no Rio de Janeiro foram aqueles que habitavam as áreas que foram sujeitas ao deslizamento de terra. Quem pagou o custo desse fenômeno, em termos de vida, foram os mais pobres”


Problemas envolvendo causas naturais estão muito presentes na sociedade atual. O risco é permanente. Porém, diferente da ideia que temos de risco, este se caracteriza pelas desigualdades que permeiam as grandes cidades do país. É o que explica Ana Clara Torres Ribeiro, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em entrevista, por telefone, à IHU On-Line. Segundo ela, o risco nem sempre é conhecido, já que vivemos, na maioria das vezes, situações em que desconhecemos os condicionamentos técnicos. “Um exemplo: pego um avião, mas não sei como ele funciona, efetivamente. Quero acreditar que esteja tudo bem, mas me escapa por completo o conhecimento sobre este serviço. Existe um risco que é crescente, gerado pela associação entre técnica, ciência, interesse econômico e político, que não é, necessariamente, do conhecimento da sociedade”, diz.

Ainda que haja relações entre a sociedade do risco e a do medo, Ana Clara explica suas diferenças. “O medo é a relação daquilo que, de alguma maneira, sabemos que existe como uma ameaça. O medo é diferente do risco, ele implica no risco, mas este não gera o medo, necessariamente. A questão do medo tem que ser retratada, não necessariamente junto da sociedade de risco, mas em sua própria natureza”, afirma.

Ana Clara Torres Ribeiro é pesquisadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem experiência na área de Planejamento Urbano e Regional; Sociologia Urbana com ênfase em Teoria da Urbanização.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O Rio de Janeiro viveu nesse ano grandes problemas em função de causas naturais. Onde a ideia de sociedade do risco se apresenta em situações como essa?

Ana Clara Torres Ribeiro – Acredito que a noção de sociedade como um todo dá a impressão de que todos estão, de alguma maneira, sofrendo a mesma dose de risco. Se observarmos um pouco melhor o risco, é profundamente desigual na sua manifestação. Os que morreram no Rio de Janeiro foram aqueles que habitavam as áreas que foram sujeitas ao deslizamento de terra. Quem pagou o custo desse fenômeno, em termos de vida, foram os mais pobres. Também houve, concretamente, perdas de bens materiais, além da perda de pessoas. Isso significa que a noção de sociedade do risco dificilmente se aplica neste caso.

Não se trata de um risco global, e sim de uma manifestação concreta da desigualdade que caracteriza nossas grandes cidades, incluindo o Rio de Janeiro.

IHU On-Line – É possível mensurar os efeitos catastróficos do progresso?

Ana Clara Torres Ribeiro – O chamado progresso deve ser decomposto nos seus fenômenos, variáveis, de uma forma a ser mensurado. O progresso se constitui em um conceito tão amplo, que é difícil se chegar a um consenso sobre quais são os processos que decompõem, ou compõem, o chamado progresso. Em grande parte, historicamente, o progresso esteve associado à industrialização, urbanização, ao avanço tecnológico, e esses fenômenos são mensuráveis. O nível de industrialização, o grau de concentração urbana, isto é perfeitamente mensurável.

IHU On-Line – A senhora acha que os acidentes são estudados suficientemente?

Ana Clara Torres Ribeiro – Creio que as condições de estudo dos grandes acidentes existem. A questão é saber o que esses estudos instruem à ação da sociedade e, particularmente, à ação política dela. No que isso se transforma em termos de política real e prevenção dos acidentes. Porém, isso não significa que acidentes possam ser completamente imprevistos.

IHU On-Line – Problemas financeiros, como a crise econômica que o mundo viveu no ano passado, também geram uma ideia de ‘sociedade do medo’?

Ana Clara Torres Ribeiro – Sociedade do medo não é o mesmo que sociedade do risco. A sociedade do risco, até onde consigo entender, está relacionada, inclusive, ao desconhecimento. O risco nem sempre é conhecido. Boa parte de nós vive situações de condicionamentos técnicos que, na verdade, são condições que não conhecemos ou dominamos completamente. Um exemplo: pego um avião, mas não sei como ele funciona, efetivamente. Quero acreditar que esteja tudo bem, mas me escapa por completo o conhecimento sobre as condições de segurança que estão sendo oferecidas por aquele serviço. Existe um risco que é crescente, gerado pela associação entre técnica, ciência, interesse econômico e político, que não é, necessariamente, do conhecimento da sociedade. Isso é diferente do medo. O medo é a relação daquilo que, de alguma maneira, sabemos que existe como uma ameaça. O medo é diferente do risco, ele implica no risco, mas este não gera o medo, necessariamente.

IHU On-Line – O que é o caos, hoje?

Ana Clara Torres Ribeiro – O caos está relacionado, em parte, ao seu oposto que seria o cosmos. Temos uma versão de perfeição, ou uma ideação do que possa ser a nossa vida coletiva ou a experiência social como um todo, que pode ser reconhecida como o cosmos. Esta palavra tem origem na palavra “cosmético”, algo que é bonito, de alguma forma. O seu oposto seria o caos. Este, em grande parte, é também um termo aplicado de uma forma inadequada ou fortuita. Na verdade, não se trata de caos no sentido de uma inexistência de leis ou regras, mas de leis ou regras sociais que não são adequadas ou justas. Por exemplo, o caos urbano, na verdade não é caos, porque sabemos exatamente qual é a origem dele, ou quais são os fenômenos que estão gerando aquela situação.

IHU On-Line – O que é “sociedade de risco” e como surgiu?

Ana Clara Torres Ribeiro – Advém de uma consciência de denúncia crescente, do momento em que a técnica já não se adapta mais a uma noção positiva, mas a uma noção negativa. Cada vez mais estamos envolvidos por produtos da evolução técnica, sem sabermos o risco implicado nisso. A tese de Arlete Arruda, por exemplo, demonstra claramente uma concentração de investimentos econômicos e técnicos, que gera risco. No entanto, em grande parte, esse risco, apesar de real, não é dominado e conhecido. Essa é uma sociedade de risco porque tem um tipo de evolução que escapa do controle da sociedade.

IHU On-Line – E como o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação influencia nas mutações urbanas?

Ana Clara Torres Ribeiro – Sabemos que boa parte da vida em sociedade depende da evolução da comunicação e das linguagens. Isso significa que qualquer tipo de inovação técnica ou tecnológica que altera o processo comunicacional tem efeito direto nas relações e interações sociais. Isso muda a denominada costura do tecido social, que é feito de relações sociais.

IHU On-Line – O Brasil precisa também organizar uma Reforma Urbana?

Ana Clara Torres Ribeiro – Não tenho a menor dúvida com relação a isso. Nós tivemos grandes conquistas na Constituição de 1988, a constituição cidadã, que reconheceu, pela primeira vez, a existência de direitos urbanos. Isso, dez anos depois, deu origem ao denominado Estatuto das Cidades, que traz um conjunto de instrumentos jurídicos e urbanísticos. Estes podem ser acionados para que haja um maior acesso social ao solo urbano, equipado com serviços, com a condição de que ocorra a redução das desigualdades socioespaciais, e, portanto, da própria segregação social, que está absolutamente presente na rede urbana brasileira. Existe não só a necessidade de uma reforma, como existem instrumentos para se fazer isso.

IHU On-Line – Nos Estados Unidos, é o terrorismo que, por exemplo, faz crescer o medo. E, no Brasil, o que gera o medo?

Ana Clara Torres Ribeiro – Existe um crescimento de medo que está diretamente relacionado às evidências da violência e, também, à insegurança com relação ao futuro. Esta é uma insegurança que está na vida diária, onde não se sabe muito bem qual será a condição efetiva de reprodução da vida. Isso faz crescer o medo. Por outro lado, existe também uma destilação do medo. Há, hoje, uma indústria da segurança que vende o medo, para poder vender a segurança. Às vezes, o medo é inoculado. Além dele ter razão para existir, porque está absolutamente calcado nas evidências, existe o medo que está sendo destilado pela própria indústria de controle social. Esta aumenta o medo, muito além do próprio risco. Existem estudos importantes sobre sociedade do medo em outros países da América Latina. Citaria estudos feitos na Colômbia e no Chile. Acho que é absolutamente importante tratar a questão do medo diretamente, e não fingir que ele não existe. É preciso entendê-lo, no que ele também trás de risco, inclusive o risco de uma militarização da vida social, de afastamento entre os segmentos sociais, de perda daquilo que seria a verdadeira urbanidade. A questão do medo tem que ser retratada, não necessariamente junto da sociedade de risco, mas em sua própria natureza.

IHU On-Line – Como a senhora avalia a ação dos movimentos sociais quanto aos problemas urbanos que o Brasil vive?

Ana Clara Torres Ribeiro – Todo o programa da Reforma Urbana foi uma conquista dos movimentos sociais. Não podemos afastar a conexão entre as conquistas constitucionais, a existência de planos diretores urbanos mais democráticos, da existência de movimentos que lutaram por isso, como o orçamento participativo, por exemplo. Existe uma dinâmica social que está por trás nas conquistas dos denominados direitos urbanos. Por outro lado, existem dificuldades reais na manutenção da vitalidade desses movimentos.  Na medida em que se agrava a crise social, o desemprego, e que não existe certa segurança com relação aos direitos econômicos básicos, fica muito difícil a preservação da força dos movimentos para conquistar o que seria plenamente uma reforma urbana e, portanto, uma cidade mais justa, igualitária e fraterna. Alguns dos movimentos continuam bastante fortes, sobretudo aqueles relacionados à questão da habitação.

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