Autênticos em 1500, hoje ou em 2154?

João Pacheco de Oliveira

É comum jornais, filmes e comerciais de TV suporem que os índios são (ou deveriam ser) iguais àqueles descritos pelos primeiros cronistas, inteiramente exteriores ao universo ocidental. Nessa representação, o tempo transcorreu de modo absolutamente diverso para “brancos” e “índios”. Uns, os não indígenas, estão situados na História e se caracterizam pela variabilidade, mudança e complexidade. Os outros, os indígenas, são como estátuas de pedra, que apenas podem apresentar-se como idênticas ao que antes (supostamente) eram.

Recusar ao índio a História e o exercício da própria voz, imaginando-o apenas antes da chegada dos brancos, é um expediente útil para silenciar sobre o violento processo de colonização, propiciando uma autoanistia aos colonizadores. É essa categoria redonda, inteiramente infensa à História, plena de seduções e lisa de culpas, que o senso comum repete e consagra incessantemente. Em estudos anteriores, eu apontei um artifício narrativo que chamei de “o efeito túnel do tempo”. O artifício garantia a qualquer não índio, como em um passe de mágica, uma flagrante superioridade em relação a qualquer indígena. É também com base nisso que a tutela, apesar de autoritária e etnocêntrica, veio a ser simploriamente legitimada como instituto necessário e até filantrópico.

Tal ideia está muito viva nas mais variadas manifestações discursivas dos brasileiros: artes, literatura, chiste e linguagem cotidiana. Os índios seriam algo apenas relativo ao passado colonial do Brasil, havendo uma enorme e generalizada dificuldade em compreender os índios atuais.

O reconhecimento se limita a faixas da Amazônia, onde ainda haveria grupos isolados e arredios (“índios verdadeiros”). Os demais são ditos apenas “remanescentes”, índios “misturados”e, no limite, “falsos índios”. Pretende-se instituir uma polaridade entre as culturas indígenas “intocadas” (seriam as autênticas) e aquelas afetadas por “processos de aculturação” (seriam inautênticas). Partindo daí, setores da administração pública colocam em segundo plano as demandas de “índios” no Nordeste, seja omitindose face ao reconhecimento de suas terras, seja criminalizando suas lideranças e enquadrando-as em um regime carcerário próprio de praticantes de crimes hediondos (vide www.abant.org.br).

Os direitos indígenas, tais como definidos na Constituição de 1988 e na Convenção 169 (acolhida no Brasil em 2003), não decorrm, porém, de uma condição de pureza cultural a ser comprovada nos índios e coletividades indígenas atuais, mas sim do reconhecimento pelo Estado de sua condição de descendentes da população autóctone. Trata-se de um mecanismo compensatório pela expropriação territorial, pelo extermínio de incontáveis etnias e pela perda de uma significativa parcela de seu patrimônio cultural.

Não é justificado estabelecer parâmetros arbitrários para definir o que é (ou o que deva ser) uma cultura indígena. A incorporação de rituais, crenças e práticas exógenas não necessariamente significa que aquela cultura já não seria “autenticamente indígena”ou pertencesse a “índios aculturados”. Para constituir analiticamente uma cultura, é preciso par tir do que pensam, fazem e sentem os seus portadores atuais. É preciso libertar-se do efeito “túnel do tempo”, da abordagem objetificante e da relação tutelar.

Os debates sobre Belo Monte nos evidenciam essa complexidade. Ali se expressam as velhas concepções sobre os indígenas, que alimentam tanto argumentos desenvolvimentistas quanto ambiguidades do discurso tutelar. Manifesta-se também uma tensão no interior do novo paradigma, uma vez que os indígenas buscam exercer o seu protagonismo, mesmo assumindo posições temporariamente antagônicas — como no caso da aldeia Paquiçamba. Aprender a respeitar e a lidar com a contemporaneidade do indígena será um aprendizado importante para as autoridades.

Os embates ideológicos fizeram curiosamente reviver o potencial utópico da figura do índio, apropriando-se agora da poderosa máquina de fabricação de mitos que é o cinema e remetendo-os ao futuro. A retórica dos ecologistas estabeleceu um paralelo entre os Na’vi e os indígenas atuais da região, visando a apontar os riscos para o ecossistema amazônico e mesmo planetário. A disputa pela autenticidade remete agora a 2154!

JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA é antropólogo, professor titular do Museu Nacional/UFRJ.

Fonte: O Globo de 18/04/2010, via saite da ABA.

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