Encontro motivou os participantes na busca pelo Bem Viver, em oposição ao atual sistema de opressão do capital
Desde o dia 22 de novembro, missionários do Cimi, indígenas e convidados participam do III Encontro Nacional de Formação do Cimi, cujo tema foi “O sonho, a realidade do bem viver frente ao modelo de desenvolvimento”. Foram cerca de 120 participantes que contaram com a assessoria de professores, pesquisadores, lideranças indígenas, assessores de movimentos sociais, para estudar propostas de Bem Viver, e o que impede que ele exista em nosso atual modelo de economia e sociedade. Místicas, relatos de vida e momentos rituais de oração também marcaram esses quatro dias de encontro.
O evento teve início com uma mística de abertura e apresentação da pauta. Depois, Dom Dimas Lara Barbosa, secretário geral da CNBB, deu o seu testemunho sobre a situação dos povos indígenas e falou a importância da comunicação na luta contra o preconceito para com estes povos. Em seguida, deu-se início a primeira mesa, com o tema “Elementos para a busca do Bem Viver para todos e sempre”, com o assessor Teológico do Cimi, Pe. Paulo Suess.
Grande parte da fala de Suess girou em torno do viver bem frente ao sistema capitalista, onde há a comercialização pelo lucro, a colonização, a mercantilização de tudo que é possível. “No capitalismo, sempre se quer mais e melhor. Precisamos aprender a viver com melhor, com menos”, afirmou Suess. Então, o bem viver é essa busca contínua do equilíbrio, pois o sistema em que vivemos não garante que todos tenham bem viver, apenas alguns. Como bom exemplo de equilíbrio, ele apresentou as próprias sociedades indígenas. “E na nossa sociedade? Como equilibrar nossa sociedade de crescimento, concorrência, aceleração e desenvolvimento com a busca por uma terra sem males?” questionou.
No dia 23, pela manhã, a palestra “O Bem Viver como alternativa ao modelo atual”, contou com a contribuição de Pablo Dávalos, economista e professor da Universidade Católica do Equador. Ele falou sobre a ruptura radical que consiste o Bem Viver, frente a uma sociedade capitalista de processos de acumulação violentos. Ressaltou também a importância de se construir marcos conceituais para criar alternativas ao capitalismo e suas práticas. “O liberalismo não compreende o bem viver. O marxismo também é insuficiente para entender este conceito”, afirmou. Assim, a luta deve ser prática e teórica, criando novos conceitos, referenciais.
Também durante sua fala, Dávalos fez uma leitura cotidiana, mostrando que os atuais governos chamados progressistas, na América Latina, são ameaças aos povos, porque o processo de acumulação violenta continua e despoja toda a população de sua cultura, seus territórios. E o professor foi enfático. “Tudo isso acontece com o nosso consentimento, pois há uma espécie de disciplina social! A esse novo sistema eu chamo de pós-neoliberalismo”. Dávalos comparou o neoliberalismo com o pós-neoliberalismo, afirmando que no primeiro, há privatização e acumulação monetária. No segundo, há uma sede em tomar os territórios, a soberania das populações e seu meio ambiente.
Na América Latina, o que acontece atualmente, de acordo com Dávalos, é a criminalização de quem defende sua terra, seu espaço. A situação se repete em vários países, como México, Equador, Bolívia, Guatemala e Brasil. Mas tal processo só é possível devido à segurança jurídica que os investidores capitalistas têm, o que significa criminalização de movimentos sociais.
Mudanças climáticas e grandes projetos
Ainda no dia 23, durante a tarde, o engenheiro florestal e membro da Via Campesina, Luiz Zarref, destacou o problema das mudanças climáticas na palestra “Mudanças Climáticas e Justiça Ambiental”. “É fundamental termos a clareza de que é o capitalismo que leva à crise ambiental que vivemos”, disse iniciando a palestra. Para Zarref, passamos atualmente por uma grande crise do modelo de produção hegemônico (capitalismo) que se divide em várias crises pontuais: crise alimentar, energética, política, ambiental, ou seja, uma crise sistêmica. Mas, de acordo com Zarref, a discussão sobre os impactos do ser humano já existe há mais de dois séculos, com o início da Revolução Industrial. Ser humano e natureza vêm sendo explorados pelo capital há séculos, mas o homem se aliena. A natureza não. Ela se revolta e não se submete. “O planeta sempre estará gritando contra o capitalismo!”, ressaltou. E é isso que se observa atualmente com todas as mudanças climáticas existentes.
Sobre o termo mudanças climáticas, ele lembrou que ainda não é algo muito preciso para a maioria da sociedade. No próprio meio científico ainda gera discussões, visto que é um conceito novo, criado nos últimos 10 anos, de que o planeta está passando por grandes transformações de forma muito rápida. Zarref apresentou alguns exemplos de que estas mudanças já são nítidas: secas na Amazônia, como nunca se viu, aumento da temperatura dos oceanos e mudança de toda a dinâmica do planeta. “Os impactos são muito fortes e o capitalismo vem tentando apresentar propostas para diminuir estes problemas, mas na verdade são falsas soluções”, afirmou Zarref. O capital propõe mudanças na matriz energética, mas não propõe a discussão sobre aonde vão as energias. Sugerem a fabricação de carros ecológicos, mas não discutem o transporte coletivo. Ou seja, o capitalismo tem toda uma engenharia para lidar com a questão ambiental, para tentar sobreviver e o processo de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD) é uma destas artimanhas. “O REDD não é dinheiro fácil, eles não querem que o desmatamento acabe, e sim os grandes territórios, como as terras indígenas”, afirmou. E muitas Ong’s já adotaram a idéia e servem de intermediários para comunidades tradicionais receberem o “benefício”. Mas o que seria o REDD? Zarref tentou colocar de uma forma mais simples e clara: seria pagar para não desmatar mais.
Para Zarref é preciso pensar a autonomia dos povos e a auto-sustentação. “É preciso conhecer experiências de enfrentamento pelo mundo, conhecer os termos utilizados nas discussões da problemática”, destacou.
Grandes projetos – Tatiane Bezerra, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), e o cacique Neguinho Truká discorreram sobre os impactos dos grandes projetos nas comunidades tradicionais. Tatiane iniciou sua fala questionando: “Desenvolvimento para quê e para quem?”. Esta pergunta norteou sua apresentação sobre as demandas por energia que o capitalismo exige, e para onde vai tanta energia produzida com base em grandes violências. Tatiane apresentou vários dados sobre produção e gasto de energia. “São mais de 1,5 milhões de pessoas atingidas por barragens que não têm mais nenhum direito! O povo Guarani até hoje reivindica suas terras onde está construída a Usina de Itaipu”, relembrou.
A palestrante também lembrou como é feita a repressão às comunidades que se organizam contra esse avanço do capital, contra as barragens, contra as transposições e apresentou quais são as políticas das empresas: ganhar pelo menor preço na licitação do Megawate e depois negar direitos ambientais e sociais, reprimir o povo organizado.
Já Neguinho Truká apresentou o cenário não através de dados, mas dos fatos que acontecem nas terras indígenas. “Nas faixas da transposição do Rio São Francisco, as famílias sedentas são removidas; há 3 km do rio, em Cabrobró, a população utiliza água de carros pipa para beber”, afirmou.
Assim, Neguinho foi mostrando como a transposição do rio São Francisco traz sofrimento para as comunidades. “Muito lugar está desertificado, agora tem prostituição infantil, uso de drogas, somos prejudicados pela falta de água e o governo reserva muito mais para a nossa região”, declarou. “O São Francisco depende de todos nós! Esta é a nossa bandeira de luta!”, finalizou.
Estado, poder e os governos na América Latina
No penúltimo dia do encontro, os participantes acompanharam exposições de pesquisadores e acadêmicos sobre Estado e Poder e os Governos de esquerda na América Latina. O antropólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Lino João de Oliveira Neves, durante a mesa “Estado e poder”, fez uma pequena abordagem histórica sobre o que é o Estado Nação, política e poder, fazendo em seguida uma relação do tema com o movimento indígena.
Num primeiro momento, Neves mostrou que os termos de Estado, Estado Nação, Território, Soberania, são todos forjados no iluminismo e no nascimento de uma modernidade ocidental. Mas, essa modernidade é a afirmação de uma única ordem de saber: o saber europeu. Com as colonizações, esta ordem única de cultura é instituída nas colônias. “É a negação de outras culturas e isso é efetivado de várias formas: com a invisibilização, a subordinação, a exclusão e por fim a eliminação total do outro”. Mas a situação começa a se modificar. De acordo com Neves, até a década de 1970, tudo ocorreu como o colonizador queria. “Mas depois disso o índio diz: ‘Quero ser eu! Não quero ser europeu!’”. Assim começa a resistência consciente e política. Se antes a luta era no corpo a corpo, a partir deste momento começa a ser de afirmação de sua cultura, sua forma de organização, sua língua.
Lino acredita que negar o ser político que é o indígena é uma forma de o Estado despolitizar e enfraquecer a luta desses povos. “As demandas políticas dos indígenas viram soluções técnicas e o Estado age para camuflar a atuação dos povos nas suas próprias conquistas”, destacou.
Governos de “esquerda” – “Os governos da América Latina (A.L.) estão acelerando a crise civilizacional”. César Sanson, pesquisador do CEPAT e parceiro do IHU, depois de fazer todo um apanhado sobre as crises energéticas, as crises ambientais, mudanças climáticas, ressaltou que os governos ditos de esquerda são sim grandes aceleradores desse modelo neo-desenvolvimentista. Na segunda palestra do dia 24, ele destacou que governos dos países latinoamericanos têm uma forte referência no modelo desenvolvimentista dos anos 1950.
De acordo com Sanson, os governos existentes hoje na A.L. são neo-desenvolvimentistas. “O papel do Estado é alavancar o desenvolvimento. Para isso ele aparece em três facetas: o Estado investidor, financiador e o Estado social”. O Estado banca grandes obras para alavancar o desenvolvimento, financiando para a exploração do capital privado; ele financia a fusão de grandes conglomerados para competir com empresas transnacionais e elabora programas sociais compensatórios, por exemplo o bolsa família.
Esse modelo cria tensões com os movimentos sociais, que foram grandes forças para elegê-los. Sanson destacou que os indígenas são grandes entraves a essa lógica e por isso são tão perseguidos. “Os movimentos sociais em geral não podem se deixar iludir: a inclusão social não pode vir do consumo, mas da resolução de problemas como na saúde, na educação. É preciso perceber que o crescimento não é ilimitado e o movimento não pode se deixar iludir!”, declarou.
Ainda nesta discussão dos Estados Latino Americanos, o economista Pablo Dávalos destacou que poucas vezes na história houve tantos estados partilhando da mesma concepção. “É a mesma dinâmica de acumulação capitalista!”, afirmou. Mas para compreender como a A. L. chegou a essa situação, Dávalos voltou aos anos 1990, e destacou a forte atuação dos movimentos sociais em toda a América Latina. “Foram esse movimentos que derrotaram o neoliberalismo! E os partidos políticos se valeram desta energia dos movimentos para se elegerem.”, lembrou.
Para Dávalos, os movimentos sociais foram se calando, se paralisando, após as eleições dos chamados partidos de esquerda, mas é preciso recuperar a agenda dos movimentos sociais! Voltar a ser radicais, voltar às raízes para conseguir uma democracia plurinacional.
Experiências indígenas de Bem Viver
Finalizando as mesas do Seminário, nesta quarta-feira, dois indígenas puderam relatar suas experiências de Bem Viver para os participantes. Os povos indígenas têm sua maneira própria de viver que foge da lógica do consumismo, das violências, do desrespeito à natureza, e faz com que sejam exemplos vivos do que se pôde entender nesses três dias de seminário sobre Bem Viver.
Rosivaldo Ferreira da Silva, mais conhecido como cacique Babau do Povo Tupinambá da Serra do Padeiro, relatou sua vida em comunidade, seu costumes, a forma de economia e de preservação da cultura e da memória dos antepassados de seu povo. Para ele, muito das violências que seu povo sofre é pelo fato de serem alegres, felizes e viverem em harmonia, o que revolta os fazendeiros, os depredadores da natureza, os representantes do capital. “Em nossas terras, não há violência doméstica, respeitamos a natureza, temos sistemas de roças comunitárias, aprimoramos a comercialização de nossos produtos em parceria com a nossa associação! Temos muita fartura, porque ninguém pode ter dignidade passando fome! Fazemos coleta seletiva, produzimos excedente como reserva, caso haja algum imprevisto”, relatou. Babau mostrou como respeitam a terra e os ciclos de vida. “Nosso modelo de vida é estável, a gente ri, é alegre, é feliz, a gente faz muita festa! Temos vida e vida com felicidade!”.
Já Maurício Guarani, mostrou uma realidade diferente. “Antes do branco chegar a gente tinha o bem viver completo: tínhamos casa, caça, peixes, frutas nativas. Tínhamos o jeito de ser guarani. Mas quando o branco “descobriu” o Brasil, perdemos todo o nosso território!”, lembrou. Maurício relatou que hoje a grande luta do povo Guarani é para conseguir seus direitos. “A lei garante nossas terras, mas isso não garante nada na prática. Nossas famílias vivem na beira das estradas, debaixo de lona. Os fazendeiros não querem nem que os indígenas fiquem perto de suas cercas”. O governo não reconhece o modo de vida guarani, e só o povo sabe como conseguiram sobreviver por mais de 500 anos, com sua língua e costumes próprios. “O problema está colocado: precisamos sobreviver, precisamos de nossas terras e precisamos que reconheçam a nação guarani. E eu estava pensando bem aqui e vi que o Bem Viver Guarani não existe mais, porque não temos terra, não podemos plantar!”, ressaltou. Ou seja, a terra é o principal fator que falta para que o povo Guarani retome o seu jeito de ser, seu Bem Viver.
Estudos
Os participantes do Seminário também se reuniram em grupos e apresentaram as conclusões de seus estudos sobre os temas propostos no evento. O encontro terminou na manhã desta quinta-feira, com uma celebração presidida pelo presidente do Cimi, Dom Erwin Kräutler.
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