Tudo começou quando Melci Karai Pa Pa Gonzalez, 28, decidiu “procurar emprego na cidade”. Ele soube que a Cooperativa Lar, com sede no município paranaense de Medianeira, estava em busca de pessoal para o frigorífico de frangos, que fica em Matelândia, distante cerca de 40 quilômetros da tribo. “Será que aceitam indígena?”, perguntou, na agência de emprego, e ouviu que podia tentar a vaga. Gonzalez conseguiu o trabalho em abril e levou mais três índios para o mesmo caminho. No começo, precisava acordar à 1h da madrugada e percorrer um bom trecho de bicicleta antes de chegar ao ponto em que o ônibus da cooperativa buscava o pessoal para o primeiro turno, que começa às 5 horas da manhã.
A chegada dos primeiros índios não chamou a atenção da área de recursos humanos da Lar, já que eles tinham a documentação em dia e também carteira de trabalho. Mas logo Gonzalez foi perguntar se o transporte poderia chegar mais perto da tribo , porque havia mais avá-guaranis interessados em emprego. O supervisor administrativo da Lar, Luiz Gubert, foi falar com o cacique e surgiram mais 30 candidatos, que começaram o período de experiência em junho.
Hoje, 41 índios trabalham no frigorífico (sendo dez mulheres) e outros estão preparando documentos, de olho em salário no fim do mês. Alguns deles já tinham feito serviços para organizações não governamentais ou para o governo, mas é a primeira vez que uma empresa privada dá uma chance para diversos membros da tribo. A cooperativa já manda um ônibus para um ponto bem mais próximo da aldeia.
O interesse dos índios por registro em carteira coincidiu com a expansão do frigorífico da Lar e a busca por candidatos – serão abertas mil vagas nos próximos seis meses, sendo 300 para preenchimento imediato. A cooperativa distribuiu panfletos pelas cidades vizinhas com oferta de emprego e salário de R$ 652 mais benefícios, como plano de saúde e vale-compras de R$ 90, entre outros.
A cooperativa também passou a oferecer R$ 100 para os empregados que indiquem nomes de pessoas que possam ser contratadas e permaneçam ao menos 90 dias no trabalho. A proximidade com o Paraguai e a facilidade que os moradores da região têm em ganhar mais comprando e vendendo mercadorias adquiridas naquele país dificultam a busca por trabalhadores fixos.
Gubert conta que a cooperativa foi verificar se havia algum impedimento legal para contratar índios. Como não encontrou, agora está disposta a aumentar o número de indígenas na equipe. Na semana passada ele foi visitar outra tribo, no município de Diamante do Oeste, e o cacique de lá ficou de levantar os nomes dos interessados. “A aldeia não tem mata suficiente para explorar e não da para plantar, porque o espaço é pequeno”, diz Gonzalez, que antes caçava tatu e quati e pescava para levar comida para a família. Depois, trabalhou na tribo, como agente de saúde, e fez bicos para conseguir dinheiro
Na Lar, ele atua na área de rependura (coloca os frangos mortos e depenados em ganchos). Em casa, tem carro e moto, galinha no quintal e planta batata doce, mandioca e cebola. Para os três filhos, sonha com um futuro melhor, que inclui uma faculdade, e satisfaz os desejos atuais. “As crianças querem roupa nova”, diz, sobre a necessidade de ter salário.
A mulher do cacique, Carmelícia, nunca havia trabalhado fora. Consultou o marido, fez a carteira de trabalho e conseguiu uma vaga na área de corte de aves. “Quero de tudo”, diz ela, que chamou outra índia para fazer os serviços da casa e deixa os três filhos com o marido, que é agente de saúde na aldeia. “Prefiro trabalhar, não caçar.” O cacique Daniel, que está completando o ensino médio e planeja cursar sociologia, defende que cada época tem seu estilo. “Nunca tivemos essa oportunidade antes”, diz, e cita o que ouviu de seu antecessor: “Agora, nosso mato é o emprego.”
Em relação à esposa, ele a orientou que teria de levar o trabalho a sério e lembrou que seria pesado acordar às 2h da manhã e só retornar por volta de 5h da tarde. Mas já comemora o aumento na renda familiar. “Antes sobrava pouquinho, tinha de economizar em tudo.”
Silvano Centurião, aquele que fez linguiça para a família, trabalha na área de embalagem. Ele está pagando uma televisão e já pensa em adquirir um rádio e uma antena parabólica, equipamento comum na aldeia, assim como geladeira, máquina de lavar roupa e telefone celular.
A corrida da aldeia Ocoy por registro em carteira é mais uma das mudanças que ocorreram lá nos últimos anos. Os índios do local não vivem mais em ocas, feitas de capim, como os antepassados. A formação do lago da usina de Itaipu, nos anos 80, alagou parte da área da tribo e dividiu seus moradores. Alguns foram morar no Paraguai e retornaram. As ocas aos poucos foram substituídas por casas de madeira e de alvenaria, construídas com a ajuda de Itaipu e da Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar). “A casa não modifica a cultura. Sou o mesmo dentro da casa”, afirma o cacique. No entanto, alguns hábitos mudaram. Em dias frios, como os vividos na semana passada, eles antes faziam fogo para se aquecer, o que não é mais necessário. Na aldeia, os moradores falam guarani, mas fora dela vencem as dificuldades para a comunicação em português.
A busca de índios por emprego não acontece apenas entre os avá-guaranis. Caingangues de Mangueirinha começaram a ser contratados há um ano pela Atlas Eletrodomésticos, de Pato Branco, Sudoeste do Paraná. Eram 30 e hoje são 60 na equipe, de um total de 1.074 trabalhadores. Taciana Pezarico, coordenadora de serviço social da Atlas, diz que a inclusão dos índios surgiu com a abertura de vagas na empresa e o interesse de alguns indígenas por outras fontes de renda, além da agricultura e do artesanato. “O projeto superou as expectativas, tanto por parte da empresa como por parte das lideranças indígenas”, conta. A Atlas planeja ampliar a contratação de caingangues.
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