Por Carlos Alberto dos Santos Dutra (*)
A realidade dos massacres contra os povos indígenas em Mato Grosso do Sul desde há muito se mantém escondida nas dobras da história mal contada pelos memorialistas e seus feitos heróicos que praticamente inventaram esse Estado de feições e cores multiculturais. Eis que agora, entretanto, esse caldo de cultura toma corpo e salta aos borbotões em rios de sangue, dizendo que nada vai bem nestas terras Guarani e Ofaié.
Desde o vergonhoso caso Marçal Guarani que se arrastou décadas pelos escaninhos da impunidade, passando por Marcos Verón e tantos outros que trilharam a estrada e tombaram na busca pela terra sem males, até chegar no massacre ocorrido em Guaiviry, que vitimou o cacique Nísio Gomes, em Aral Moreira-MS, barbaramente assassinado no dia 18 último, os ‘sonhos Guarani’ ainda estão por vir….
A centena de acampamentos de lona preta ao longo das estradas federais e estaduais, e as dezenas de áreas em litígio ocupadas por indígenas que reivindicam o direito de primis ocupandi, há muito deixaram de freqüentar as estatísticas dos órgãos governamentais agrários e fundiários; há muito deixaram de compor a minuta dos projetos de pesquisas acadêmicas e ser objeto de minuciosas monografias, dissertações e teses universitárias. Agora o que se tem é a dor e a realidade cruenta que salta do papel e respinga na cara de todos, para que o cidadão desperte.
A maior parte dos processos de regularização fundiária das terras indígenas em Mato Grosso do Sul padecem de um vicio congênito que é o de submeterem-se à ingerência do poder político local, à semelhança das velhas cepas dos coronéis da república que primeiramente povoaram e praticamente tomaram de assalto ambos os lados das faldas da serra de Maracajú, no pós-guerra contra o Paraguai. Por isso as demarcações de terras se arrastam no tempo, expondo a fragilidade indígena ao mando da força e o jugo dos grandes proprietários de terras.
É o que está acontecendo neste Estado, onde, em ondas sucessivas de repetidos assassinatos contra grupos indígenas, semeia-se ao lado de corpos crivados de balas, a sensação de que se vive num Estado que só submete os pequenos. Enquanto aguardam pela identificação e delimitação de suas áreas, um a um do povo Guarani vai tombando, semeando cruzes, misturando-se ao pó e ao capim braquiária e a cana, e seu dono, de hálito de pólvora e bovinos métodos de extermínio.
“A situação de insegurança e medo vivida pelas populações indígenas é insustentável”, escreveram os alunos indígenas da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade de Amambai, incentivados pela professora e antropóloga Aline Crespe, como forma de protesto. Diversas outras comunidades, pesquisadores e entidades solidarizaram-se com a denúncia, mobilizando uma corrente de divulgação que alcançou o resto do país e o exterior em defesa dos povos Guarani e demais povos indígenas que vivem situação semelhante de violência e crueldade.
Na arqueologia dos fatos a descrição dos estudantes é revoltante: “Por volta das seis horas chegaram os pistoleiros. Os homens entraram em fila já chamando pelo Nísio. Eles falavam: ‘segura o Nísio, segura o Nísio’. Quando Nísio é visto, recebe o primeiro tiro na garganta e com isso seu corpo começou tremer. Em seguida levou mais um tiro no peito e na perna. O neto pequeno de Nísio viu o avô no chão e correu para agarrar o avô. Com isso um pistoleiro veio e começou a bater no rosto de Nísio com a arma. Mais duas pessoas foram assassinadas. Alguns outros receberam tiros mas sobreviveram (…)”.
A indignação só não é maior porque essa violência toda tem nome e o endereço de seus autores é conhecido por todos. Os assim chamados governantes deste Estado há muito solapam a sorte indígena e lucram com eles. Porque prostituir, alienar e matar indígenas de fome, de doença, pelo uso do agrotóxico, pelo trabalho escravo ou vendo-o atropelado na via pública que cruza esta terra de cerrados e pantanais, os Órgãos Governamentais há tempo assistem esse quadro sem nada fazer para salvar este povo do extermínio e alcançar-lhes um cadinho de justiça.
É urgente que a sociedade sul-mato-grossense desperte do sono da indiferença e indigne-se com o seu preconceito, passando a pressionar os poderes instituídos a reverem suas ultrapassadas teses em relação à posse e o uso da terra e a sua relação com os povos indígenas. Porque não é mais possível ficar indiferente diante das páginas dos jornais e das imagens na internet que desnudam a omissão de um Estado que finge ter orgulho de possuir a segunda maior população indígena do país e ao mesmo tempo envergonha-se de nada poder fazer por ela.
Por fim, no campo da ordem pública urge rever a prática do judiciário Guaicuru, cujas decisões refletem jurássicos conceitos, paridos ainda no tempo das frentes de expansão agropastoril capitalista que adentraram o solo do Oeste brasileiro, e cujas decisões do alto do pretório, até hoje, só têm resultado em dor e morte para as populações nativas do campo.
Mais do que a letra fria da lei, espera o cacique Nisio Gomes, a exemplo do saudoso cacique Marcos Verón e seu colar de lágrimas de Nossa Senhora no peito já descansando em terra estranha, que o momento seja de despertar: hora de dar um basta a essa visão carcomida de legalidade praticada pela classe mandatária de um Estado onde ‘um boi vale mais que uma criança indígena’, e onde homens venerados, à lá Hans Kelsen, acostumaram-se a pregar o Direito sem nunca ter de falar de Justiça.
(*) é mestre em história e pesquisador da UFMS.
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