“Naquela noite eu soube que, se não o deixasse, eu morreria.”
Por Katrin Bennhold
OSLO – Ela correu para salvar sua vida. Seu marido a havia estuprado novamente naquela noite, dessa vez com mais violência que nunca em 15 anos de casamento. Ele a forçou a ter relações sexuais diversas vezes, a sufocou e ameaçou matá-la. Quando ela fugiu nas primeiras horas de 23 de março de 2008 -desceu as escadas, atravessou o pátio, chegou à rua e subiu em um táxi-, ele a alcançou antes que o motorista pudesse partir. Ela correu e finalmente chegou a uma delegacia.
“Você precisa estar disposta a deixar para trás toda a sua vida, sua identidade de esposa, de uma família normal”, disse a mulher, hoje com 43 anos, em uma entrevista. “Você precisa estar pronta para chamar de estuprador o homem que você já amou. Eu não conseguia fazer isso antes. Mas naquela noite soube que se não o deixasse eu morreria.”
A Noruega disputa com seus vizinhos nórdicos o título de país com maior igualdade de gêneros do mundo. Mas ela ainda parece parar na porta do quarto do casal.
A violência sexual contra mulheres na Escandinávia compartilha características vistas em sociedades menos igualitárias: é muito comum e raramente denunciada, e os que a cometem são ainda mais raramente condenados. Antigos preconceitos sobre prerrogativas masculinas e suposições modernas sobre a emancipação feminina conspiram para criar um muro de silêncio, vergonha e ambiguidade jurídica.
Uma em cada dez mulheres norueguesas com mais de 15 anos foi violentada, segundo a maior organização de abrigo do país, o Secretariado do Movimento de Abrigo. Mas pelo menos 80% dos casos nunca são levados à atenção das autoridades, e somente 10% deles terminam em condenação, segundo o Ministério da Justiça.
Em nenhum lugar esse tabu é mais persistente do que na casa da família, há muito fora do alcance da polícia e do Estado.
“A maioria dos estupros acontece em casa”, disse Tove Smaadahl, diretora geral do Movimento de Abrigo.
Em uma pesquisa feita em 2005 pelo Instituto Norueguês de Pesquisa Urbana e Regional, 9% das mulheres entrevistadas que tinham um relacionamento disseram sofrer agressão sexual.
“Não, não temos igualdade entre homens e mulheres”, disse Smaadahl, “não enquanto não abordarmos o estupro entre o casal.”
Sexo, casamento e a lei
Na maior parte da história, a lei do estupro em muitos países esteve na mesma categoria que o furto de propriedade, cometido por um homem contra outra pessoa. Ela evoluiu para algo mais próximo do rompimento de contrato pela mulher estuprada, cuja família agora estava com a honra comprometida, antes de finalmente aumentar o consenso de que o corpo de uma mulher deve ser controlado por ela e que qualquer um que viole esse controle está cometendo um crime.
Mas a Noruega ainda é um dos 127 países -incluindo 12 membros da União Europeia- que não criminalizam explicitamente o estupro no casamento, segundo uma pesquisa das Nações Unidas publicada em julho.
Laura Turquet, principal autora do relatório Progresso das Mulheres do Mundo 2011 da ONU, considera crucial criminalizar explicitamente o estupro conjugal, tanto de modo simbólico quanto prático. “A legislação explícita envia uma mensagem clara para a polícia e os tribunais de que a violência sexual nunca é uma questão privada”, ela disse.
Segundo um estudo de 2009 entre 11 países europeus, de coautoria de Liz Kelly, diretora da Unidade de Estudos de Abusos contra Mulheres e Crianças da Universidade Metropolitana de Londres, uma das raras comparações internacionais até agora realizadas, 61% dos estupros ocorreram em um espaço privado, frequentemente a casa da vítima ou do perpetrador. Dois terços dos suspeitos eram conhecidos da vítima e 25% eram parceiros atuais ou anteriores.
Como é citado no relatório, 40% dos estupros em que o perpetrador não conhecia a vítima mas foi identificado foram processados, com a condenação de mais de 70%. Em comparação, somente 14% dos suspeitos de estupro entre parceiros foram condenados.
Identidade destroçada
O marido da mulher norueguesa que fugiu desesperada naquela noite de março é um mecânico de automóveis, um homem descrito pelos amigos dela como “um sujeito comum”. Quando ela finalmente o levou ao tribunal, ele admitiu que a espancava mas foi absolvido de estupro. Recebeu uma ordem de restrição de um ano e a própria mãe dela lhe disse para voltar para o marido.
“É por isso que tão poucas mulheres procuram a polícia”, lamentou Inger-Lise W. Larsen, que dirige o maior abrigo para mulheres em Oslo desde 2007.
O abrigo já refugiou as filhas e irmãs de imigrantes decididos a vingar a honra da família -mas também esposas de embaixadores, policiais e diretores de empresas. Cerca de 350 mulheres e 300 crianças a procuram todo ano; 70% sofreram violência sexual, física e psicológica durante quatro anos antes de chegar lá.
Mulheres norueguesas e de classe média de qualquer origem tendem a sentir mais vergonha por ser estupradas e espancadas do que outras mulheres no abrigo. “Essas mulheres construíram toda uma identidade, uma fantasia sobre um relacionamento e a família”, disse Anne-Cecilie Johnsen, psicóloga especializada em aconselhamento sobre estupro.
Quando há crianças envolvidas, é ainda mais difícil se afastar. Havia a impossibilidade de admitir que “o pai do seu filho é um estuprador”, disse uma mulher. Além disso, “desde que você permanece no casamento você tem uma certa dose de controle”, ela completou.
“Sim, você é espancada; sim, você é estuprada. Mas também pode administrar a situação e mantê-lo longe da criança.”
“Não apenas uma questão feminina”
Knut Storberget, ministro da Justiça e da Polícia da Noruega, recentemente aderiu a uma iniciativa da ONU de homens contra a violência contra mulheres, juntamente com o primeiro-ministro da Espanha, José Luis Rodríguez Zapatero, e o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.
“Esta não é apenas uma questão feminina”, disse a vice de Storberget, Astri Aas-Hansen, que encomendou um estudo ambicioso para traçar o perfil dos estupradores.
O problema, segundo Helle Nesvold, uma médica no mais antigo centro de tratamento do estupro da Noruega, é que as boas intenções nem sempre se traduzem em bons resultados.
A maioria das vítimas de estupro, particularmente de agressão matrimonial, não procuram o hospital para o exame forense, ela disse. Até 60% das que o fazem preferem não envolver a polícia.
“Mesmo em casos relatados à polícia, esta nem sempre utiliza todas as evidências que coletamos”, ela disse, apontando para uma sala cheia de arquivos. Mas “a situação está melhorando gradualmente”, acrescentou.
Nesvold disse que muitas mulheres que sofreram agressão sexual se recusam a falar sobre a experiência. “Precisamos de uma estrutura muito mais abrangente, em que as mulheres expostas à violência doméstica sejam sistematicamente indagadas sobre abuso sexual”, ela disse.
Por que a violência sexual ainda é tão predominante em países onde a igualdade de gênero deu passos tão gigantescos? Alguns especialistas afirmam que, conforme a sociedade avança na distribuição de poder entre os gêneros, pode haver uma transição em que a violência cresce como última forma da dominação masculina.
“Quanto mais independentes as mulheres são dos homens e mais iguais em termos de salário, posição social e educação, maior a probabilidade de encontrarmos esse tipo de crime”, disse Aas-Hansen. “Quando um crime acontece no quarto do casal, este deixa de ser privado.”
Colaborou Louise Loftus, de Paris
Enviada por Ruben Siqueira.