Patrimônio brasileiro, as cerâmicas karajá são também matéria-prima de livro recém-lançado
“Quando habitavam no fundo das águas, o ambiente era frio e restrito, mas eles estavam contentes e eram gordos. Certo dia, um jovem karajá encontrou uma passagem na Ilha do Bananal, saiu e ficou encantado com o espaço para correr, com as praias e riquezas do Rio Araguaia. Ele voltou, reuniu outros jovens, e tentou voltar para a superfície, mas a passagem tinha sido fechada por ordem de Koboi, chefe do povo das águas, e estava guardada por uma cobra. Então os Karajá resolveram se espalhar pelo Araguaia. Kynyxiwe, o herói mitológico que se encontrava entre eles, ensinou tudo o que os Karajá sabem.” (Manuel Ferreira Lima Filho, In: Os Filhos do Araguaia)
Por Yago Rodrigues Alvim, no Jornal Opção
No dialeto feminino iny (acento til no “y”), Ritxoko significa “bonecas cerâmica”. São as mulheres do povo Karajá que as modelam, queimam, pintam e comercializam. Do século XIX para cá, as bonecas tem despertado a curiosidade e fascínio de pesquisadores e estudiosos, colecionadores e comerciantes. Em 2012, graças à iniciativa do Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás (UFG), as cerâmicas karajá foram reconhecidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial brasileiro.
Recém-lançado, o livro “Ritxoko” fala das bonecas e do povo Karajá. Ele é fruto de conversas entre pesquisadores do projeto “Bonecas Karajá: arte, memória e identidade indígena no Araguaia”, do Museu Antropológico da UFG. Com organização da professora Telma Camargo da Silva, o livro dá continuidade às experiências de campo, enquanto uma obra que reflete a pesquisa desenvolvida em meio ao processo de patrimonialização das bonecas karajá.
“Rixoko” é uma coletânea de seis artigos. Integrantes da pesquisa inicial, os professores Telma e Manuel Ferreira Lima Filho são autores dos textos que compõem o livro. Além deles, mais quatro pesquisadores, com trabalhos ligados a análise da produção e representatividade da boneca cerâmica, aderiram à ideia e partilham da autoria do livro. São eles Ana Lúcia Dutra da Fonseca Rondon, Chang Whan, Patrícia de Mendonça Rodrigues e Sandra Maria Christiani de la Torre Lacerda Campos.
Os seis artigos, que compõem o livro, seguem o caminho dos estudos sobre cultura material. A professora Telma, ao apresentar “Ritxoko”, discorre sobre o lugar que as “coisas” têm na Antropologia ao longo do tempo. Das etnografias clássicas, ela cita os colares e braceletes registrados no livro de Malinowski, “Os Argonautas do Pacífico Ocidental” (1922). Deixada de lado, a cultura material teve um lugar marginal na Antropologia por um tempo; o que mudou a partir da década de 1960. Assim, a boneca cerâmica karajá atraiu estudos, enquanto “coisa”/cultura material, por demonstrar como o povo Karajá se organiza e constitui socialmente.
Guiados por este entendimento, que as bonecas são uma forma de expressão, os textos abordam diversos tópicos, tais como gênero, território, objeto e corporalidade, memória, resiliência, técnica e transmissão de conhecimento e arte indígena; a fim de contribuírem para uma “reflexão sobre os processos de patrimonialização e de salvaguarda dos bens” da pátria –– como alude a professora.
Karajá
Os primeiros Karajá ascenderam do fundo das águas e passaram a viver na planície do grande rio e de seus afluentes. É esta a crença de passado dos povos Karajá que vivem no médio curso do Rio Araguaia. De acordo com dados de 2011 da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), existem, aproximadamente, vinte aldeias karajá com uma população de 3 mil pessoas. A área de pesquisa do projeto “Bonecas Karajá”, que deu origem ao livro, era delimitada às aldeias de Santa Isabel do Morro, Werebia, Watau e JK na Ilha do Bananau, no Estado do Tocantins.
O ofício das mulheres karajá se distingue nas diferentes localidades, seja pela matéria-prima, forma de transmissão do conhecimento ou circulação das bonecas cerâmica. Esse é o mote que conduziu a escritura de Telma. A professora diz da trajetória histórica e cultural de circulação de ceramistas e do saber fazer ritxoko em aldeias distantes do próprio território karajá.
Já Patrícia Rodrigues escreve sobre a resiliência do povo diante as rupturas e mudanças vivenciadas pelo povo, devido ao contato com os colonizadores. Ela escreve sobre essa relação conflituosa, entre os karajá e a sociedade nacional, que se intensificaram em meados das décadas de 1940/50. Foi nessa época que houve uma “eclosão criativa das ceramistas”, diz. Segundo ela, um modo de fazer tradicional das bonecas se viu perante um modo de fazer inovador, o que representa uma forma de sustentação moral e cultural dos karajá.
Manuel Ferreira se reinsere em campo na aldeia de Santa Isabel do Morro, por meio de seu diário de campo, no artigo segundo do livro. Revisitando também autores de outras obras, ele analisa diversos tópicos, tais como as relações de gênero, tempo/memória e o exercício da “cidadania patrimonial” ou “jogo do patrimônio imaterial”.
O conjunto de bonecas karajá é denominado como “família” e é dado como presente às meninas. Por mais que “boneca” dê a ideia de brinquedo, elas não têm um sentido apenas recreativo. É sobre o que Sandra Campos discorre em seu artigo. A família representam diferentes fases de idade, divisões etárias que são identificados graças aos ornamentos e características físicas das bonecas. A autora também escreve sobre a relação entre tradição e inovação.
Por meio da semiótica, a autora Chang Whan analisa, no quarto artigo do livro, a saliência abdominal, denominada “prega ventral” ou hãwky iweryky (barriga de mulher), presente nas figuras em meio à materialidade e à história cultural, como explica Telma no capítulo de introdução. Como Whan e Campos, a autora do penúltimo artigo que integra a coletânea, Ana Rondon, parte de seu trabalho acadêmico. Ela fala da boneca cerâmica enquanto artefato entre arte e cultura ou, mais especificamente, arte e cultura material indígena brasileira.
Além disso, Rondon questiona as nomeadas fases “simbólica” e “realista”, da arte karajá, das quais estudiosos argumentam que uma implicaria a extinção da outra. Elas também são conhecidas como fases “antiga” e “moderna”. Rondon defende que a presença de estilos não significam supressão ou substituição, afinal seria uma perspectiva evolucionista.
Estes são alguns dos temas dos artigos presentes na coletânea “Ritxoko”. Ainda que notadamente acadêmico e de caráter antropológico, o livro tem uma linguagem acessível, fácil de compreensão. Vale a leitura para descobrir um pouco mais dessa ilha de Bananal, a maior ilha fluvial do mundo, donde se originam as histórias das mulheres karajá, que são mestras ceramistas e continuam a espalhar ensinamentos sobre o oficio de fazer bonecas karajá; afinal, como disse Darcy Ribeiro ainda no ano de 1987, elas são “a mais bela representação humana da figura humana alcançada pelos índios do Brasil”.
Autores
Integrantes da pesquisa “Projetos Bonecas Karajá”, Manuel e a também organizadora Telma são autores de um artigo, cada. O professor Manuel escreve “Nas trilhas das ritxoo karajá”; já Telma, além da apresentação e introdução, é autora de “As oleiras karajá e o modo de fazer ritxoko: o conhecimento circula, expressa identidade e marca o território”.
Telma Camargo da Silva nasceu na cidade de Jaraguá, em Goiás, no ano de 1952. Pós-doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Ph.d. em Antropologia pela Universidade da Cidade de Nova Iorque, ela atua como professora do programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFG e coordenadora do Núcleo de Estudos de Antropologia, Patrimônio Cultural, Memória e Expressões Museais (NEAP) da Faculdade de Ciências Sociais da UFG.
Também integrante do NEAP, Manuel é pesquisador do CNPq, bolsista de pós-doutorado sênior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), da Federal do Rio (UFRJ), e da Capes na Universidade de Washington, em Saint Louis (EUA). Ele também atua como professor adjunto da Faculdade de Ciências Sociais da UFG. Em 1991, Manuel publicou “Hetohoky: um rito Karajá” e, em 2001, o livro “O (de)sencanto do Oeste”.
Autora do artigo “As ritxoko como objeto artístico e cultural”, Ana Lúcia Dutra da Fonseca Rondon é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela Estadual do Rio (UERJ). Atualmente, ela trabalha na Escola Sesc de Ensino Médio do Rio de Janeiro. Ana tem textos publicados pelo Salão Nacional de Artes Plásticas, Rede Nacional Artes Visuais e pela Revista Tribos.
Chang Whan, autora de “Hãwky iweryky –– a saliência ventral nas ritxoko”, é doutora em Artes Visuais –– Imagem e Cultura pela UFRJ, com pesquisa em arte e cultura material karajá. Atualmente, é pós-doutoranda em Sociologia da Imagem na Universidade Federal Fluminense (UFF), gestora científica de documentação cultural e curadora do Museu do Índio do Rio de Janeiro, entidade pela qual publicou o livro “INY/Karajá –– Bero Mahãdu”, no ano de 2012 (Funai).
Patrícia de Mendonça Rodrigues, autora do artigo “Transformando dor em arte: o ofício das ceramistas karajá como forma de resiliência histórica”, publicou o livro “Vida Cerimonial e Luto entre os Javaé da Ilha do Bananal”. Consultora autônoma, ela é Ph.D. em Antropologia pela Universidade de Chicago.
Já Sandra Maria Christiani de la Torre Lacerda Campos, que escreveu o artigo “Bonecas karajá: para além do brinquedo” –– também presente no livro ––, é bacharel e licenciada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Sandra cursou mestrado e doutorado com a tese “Bonecas Karajá – Modelando inovações, transmitindo tradições”. Desde 1988, ela atua como etnóloga e pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP com estudos das coleções e culturas ameríndias brasileiras.
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Destaque: Em 2012, graças à iniciativa do Museu Antropológico da UFG, as cerâmicas karajá foram reconhecidas pelo Iphan como patrimônio imaterial brasileiro. Foto: Acervo Iphan/ Telma Camargo.