“Que diminuam e não aumentem uma das mais injustas e maiores desigualdades sociais existentes no mundo. Que se preocupem mais com pessoas com fome e sem teto e não com pessoas cujos salários já sejam mais do que suficientes para cobrir suas despesas próprias e as de suas famílias ‘do nascimento ao velório'”, escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos. Eis o artigo
Alguns dados sobre o anteprojeto da nova Loman (Lei Orgânica da Magistratura) estão sendo divulgados com bastante repercussão, provocando reações críticas relacionadas com o surpreendente número de vantagens autoatribuidas pelo Poder Judiciário ao seu trabalho.
Num país onde o nível salarial de grande parte do povo não alcança sequer o valor do auxílio moradia, (R$ 4.377,73) – esse já em vigor e acrescentado aos vencimentos das/os juízas/es brasileiras/os – estão sendo propostos várias outras vantagens semelhantes, conforme publica a Zero Hora do dia 12 deste junho:
“A minuta do anteprojeto do estatuto discutida no Supremo Tribunal Federal (STF), amplia benefícios para juízes e suas famílias que vão do berço ao velório. Auxílios-transporte, alimentação, moradia, saúde, mudança e capacitação constam no texto, que ainda traz um auxílio funeral, extensivo a quem já está aposentado. Pela redação, que precisa ser aprovada por STF e Congresso, filhos de juízes teriam a maior parte dos estudos custeados com dinheiro público, já que são previstas verbas indenizatórias para creche e educação. Um desembargador com salário de R$30,4 mil teria 1,5 mil de auxílio creche ou educação por filho até os 24 anos de idade. A minuta também preserva vantagens, a exemplo dos 60 dias de férias e agrega o passaporte diplomático para viagens a trabalho.”
Como sempre acontece com a defesa de privilégios, não faltam explicações procurando sustentar vantagens de custo tão alto para o povo. A começar pelo fato de esse não ter o poder de influir minimamente na fixação dos seus salários, seria de todo conveniente o Poder Judiciário avaliar o mérito, a conveniência e a oportunidade de um tratamento tão escandalosamente desigual de remuneração se for comparado com as condições econômicas vividas por esse mesmo povo.
Tenta-se mostrar como necessários salários tão altos pela extraordinária relevância das funções judiciais, a dedicação exclusiva às suas funções, os riscos inerentes ao seu tipo de trabalho, não raro exposto ao ódio e à vingança, além de outras advertências relacionadas com a “dignidade do cargo”.
Essas explicações não convencem. De muito pouco ou de nada disso fogem as características de muitas outras atividades, trabalhos e profissões, sejam públicas ou privadas. Se a chamada “dignidade do cargo”, ademais, precisasse ser garantida pelo valor de salários e vacina contra a corrupção moral, os maiores escândalos financeiros da história não teriam sido criados justamente por gente rica.
Pelo que se lê no Código de ética da magistratura, por outro lado, causa estranheza ver-se alguma compatibilidade entre a proposta da nova Loman e boa parte das disposições do mesmo. Já em seus “considerandos, lê-se o seguinte:
“Considerando que o Código de Ética da Magistratura traduz compromisso institucional com a excelência na prestação do serviço público de distribuir Justiça e, assim, mecanismo para fortalecer a legitimidade do Poder Judiciário; Considerando que a adoção de Código de Ética da Magistratura é instrumento essencial para os juízes incrementarem a confiança da sociedade em sua autoridade moral; Considerando que é fundamental para a magistratura brasileira cultivar princípios éticos, pois lhe cabe também função educativa e exemplar de cidadania em face dos demais grupos sociais; Considerando que a Lei veda ao magistrado “procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções” e compete-lhe o dever de “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular” (LC nº 35/79, arts. 35, inciso VIII, e 56, inciso II)” etc…
Autoridade moral, compromisso com a distribuição da justiça, cultivo de princípios éticos, função educativa e exemplar de cidadania face aos demais grupos sociais, procedimento compatível com a dignidade, a honra e o decoro das suas funções, conduta irrepreensível na vida pública e particular. Quais desses compromissos éticos, de resto indispensáveis a muitas outras prestações de serviço público, dependem exclusivamente de dinheiro e justificam uma remuneração ao custo visivelmente despropositado como o previsto nessa nova proposta de Loman?
Com a agravante de ela prever como parte integrante dos novos salários, “verbas indenizatórias”. Já que indenizar é reparar a prática de um dano, deveria advertir-se o projeto da nova Loman que, transformado em lei, seus efeitos vão provocar um dano moral a todo o povo, sem possibilidade de esse poder ser ressarcido do grande prejuízo daí decorrente.
Um projeto desse tipo, ainda mais partindo de quem parte, revela um evidente desvio de poder, um verdadeiro abuso de autoridade, uma insensibilidade social e ética, um escárnio à pobreza e à miséria de grande parte do nosso povo, um autêntico assédio “legal” (?) ao dinheiro público, sabidamente devedor da implementação de políticas públicasmuito mais urgentes e necessárias, em defesa de gente vítima de injustiças históricas praticadas contra seus direitos humanos fundamentais. Que diminuam e não aumentem uma das mais injustas e maiores desigualdades sociais existentes no mundo. Que se preocupem mais com pessoas com fome e sem teto e não com pessoas cujos salários já sejam mais do que suficientes para cobrir suas despesas próprias e as de suas famílias “do nascimento ao velório”.
Quem quer receber vencimentos no valor proposto por esse projeto de Loman vai perder toda autoridade moral, sem a qual qualquer sentença deixa de ser respeitada como legal e justa para ser julgada pelo povo, a quem ela deveria servir (artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal), como uma infiel, irracional e absurda afirmação de prevalecida autoridade. Poderá ser até “engolida” como muita gente pobre já as engole, sob outras desigualdades que lhe são impostas, indiferentes ou até hostis à sua condição de vida, mas jamais serão aceitas como necessárias.
Além de tudo, vantagens desse tipo – isso é estranho partindo de um Poder garante de aplicação das leis – são manifestamente inconstitucionais, tanto pelo disposto no art. 5º , quanto pelo disposto no art. 37 da Constituição Federal, pois, em matéria de fixação de salários, o Judiciário exerce função administrativa e não jurisdicional. Submete-se, como qualquer outro Poder do Estado, aos princípios da administração pública, entre esses o da moralidade e o da legalidade, e são esses, exatamente, os desrespeitados pela nova proposta, também à luz do Código de Ética da Magistratura.
Resta a esperança de que, como já aconteceu com parte da magistratura brasileira em relação ao auxílio moradia, desta vez haja uma denúncia unânime das/os juízas/es brasileiras/os contrária a esse anteprojeto de nova Loman e se, por infelicidade, for transformado em lei, uma renúncia massiva às vantagens ilícitas por ele previstas demonstre o repúdio de todas/os as/os juízas/es do país aos privilégios imorais propostos na sua redação.