Por Matias Rempel, do Cimi Regional Mato Grosso do Sul
Pouco a pouco as pessoas foram chegando e tomando seus lugares debaixo de um puxado de palha, entendido a partir do espaço de um centro comunitário, localizado na Aldeia Terena de Cabeceira em Nioaque (MS). Acima da mesa, em palavras fortes e precisas, podia-se ler: “Povo Kinikinau fortalecendo a identidade na luta pelo bem viver”. Após mais de um século de descaminhos, aconteceu a 1° Assembleia do Povo Kinikinau, entre os dias 6 a 9 de novembro.
Na medida em que as primeiras palavras foram sendo ditas, a memória pediu licença para adentrar a reunião e a história sentiu nas linhas do tempo que seu curso definitivamente está para ser mudado. No semblante seguro dos mais velhos, no sorriso afirmado dos jovens e crianças, na força dos homens e mulheres e nos ditos gerais, entoados cada vez mais firmes “Eu sou Kinikinau”, pouco a pouco este povo vai dando os primeiros passos na reconstrução seu próprio destino, reafirmando sua identidade e retomando o curso da vivência plena de seu modo de ser. Tesouros que a duras penas lhes foram retirados no passado.
Sem território próprio, vindos das aldeias de São João (Reserva Indígena Kadiwéu) e das Aldeias Terena de Mãe Terra, Limão Verde, Cachoeirinha, Cabeceira, Lalima, entre outras, os Kinikinau durante a assembleia foram se reagrupando em torno da ideia de diversos grupos familiares, hoje divididos, que constituem um único povo comum. Para além do povo Kinikinau, de seus estudiosos e sabedores (tradicionais e acadêmicos), se fizeram presentes também representantes do povo Terena, Guarani e Kaiowá, Atikum e estudiosos não indígenas que são referência na história e cultura Kinikinau como Aila Villela Bolzan, Giovane José da Silva e Iara Quelho de Castro.
Palavras que irrompem, caminhos que se encontram
Políticas governamentais de redução territorial e uma onda sistemática de perseguições de fazendeiros, posseiros e invasores significaram para os Kinikinau, no Mato Grosso do Sul, o peso inimaginável de mais de cinco séculos de dispersões forçadas, o retalhamento de seu povo e o desmembramento total de seus territórios.
Quando em 1940, após muito translado, um pequeno grupo fixou-se na aldeia de São João em terras pertencentes ao povo Kadiwéu, local que vivem até hoje, muitos estragos já haviam sido infligidos a outros grupos Kinikinau. Estes, sistematicamente expulsos de suas terras tradicionais, acabaram por ter de viver de uma espécie de “empréstimos territoriais”, sendo acolhidos em meio a terras e grupos Indígenas Terena. Assim, os Kinikinau foram transformados em um povo “forasteiro”.
Até hoje, os indígenas Kinikinau, por terem sido vítimas das pressões dos fazendeiros e políticas de esbulho, sofrem violência física e psicológica constantes em alguns dos territórios que ocupam. Sendo chamados até de povo que “vive de favor” entre outros povos indígenas, os Kinikinau jamais conseguiu se enraizar de maneira plena, sendo por vezes seus membros menosprezados por alguns ocupantes tradicionais destas terras. A própria natureza das negociações entre órgãos governamentais, em especial o SPI, e grupos dos povos indígenas que acabaram por “acolher” o povo Kinikinau, acabou por reservar historicamente para os últimos o caráter de “prestadores de serviço” de seus anfitriões.
Com as vidas fragmentadas passaram a ter negado também seu reconhecimento étnico pelos próprios órgãos indigenistas oficiais, Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e depois pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Como se não bastassem as perseguições e migrações físicas, os Kinikinau tiveram de enfrentar o peso da invisibilidade, alicerçado pelas mãos de estudiosos que passaram a tecer teorias do desaparecimento ou simplesmente pelo esquecimento seletivo da memória, deixando de constar referências desta etnia nos documentos oficiais.
Perseguidos tiveram de trocar, sobretudo arbitrariamente, seus sobrenomes retirando de seus documentos e registros, as referências que os identificavam como pertencentes à etnia Kinikinau. Assumiu este povo, de maneira forçada, identidades alheias e impróprios destinos. Considerados subgrupo Terena por muitos anos passaram a viver nas sombras de outros povos em aparente silêncio, mas nunca esqueceram de quem são e nem de sentir o que é ser Kinikinau. Silêncio este aparente apenas para quem os via de fora. Dentro de cada um e cada uma, em cada peito, permaneceram cultivando todos os dias sua tradição e sabedoria e as repassaram dia após dia para seus filhos. Os anciões sabiam que cedo ou tarde chegaria o dia do novo despertar e por esforço próprio este povo construiu esta assembleia que significa os primeiros passos contra os malefícios de mais de um século de opressões e dispersões.
Flaviana Roberto Fernandes, mulher e ceramista Kinikinau, que pelo peso das dificuldades teve de deixar a antiga Aldeia São João, relata o que significa estar longe de seus território e povo: “A gente se sente sozinha porque a gente teve a vida interrompida, deixamos familiares e tivemos que sair da associação (de ceramistas) que tínhamos lá. Sofremos ameaças e o medo que a gente sente faz a gente trocar de lugar, viver de lugar para outro. A gente precisa de nossa terra, não sabe como juntar nosso povo de novo e mesmo que junte não poderá ser fora de nosso lugar. Precisamos nos juntar em território nosso, na nossa terra tradicional. Nós não queremos deixar do nosso costume, temos língua diferente, trajes, nosso jeito mesmo, isso só teremos em nossa terra”.
Genoveva Roberto Flores, também ceramista e mulher Kinikinau, complementa: “Fora de nossa terra nossos costumes são afetados de todos os jeitos. Desde crianças, de muito novinhos, com cinco ou seis anos, eles começam a trabalhar e aprender a ser kininkinau, a se colocar no mundo Kinikinau e participar dos dias de nosso povo. Não temos mais como fazer isso e isso nos traz dor. Fora da terra não tem como viver nossa cultura, nossos filhos não estão aprendendo a ser Kinikinau”.
Esta primeira assembleia pode ser considerada como um despertar coletiva dos Kinikinau por ser fruto proveniente de dor compartilhada e sentida nas mais diversas aldeias em que vivem os filhos deste povo. Preocupados com a continuidade de sua trajetória e com as futuras gerações, cansaram de viver alheios aos seus territórios e sem a possibilidade de dividir com os seus pares os hábitos e costumes que os caracterizam como grupo. Nicolau Flores, Kinikinau que vive na terra Kadiwéu, especificamente na Aldeia São João, traduz este sentimento em palavras. “É muito duro crescer assumindo ser outro uma vez que todo povo é diferente e cada um precisa de seu espaço. Nós temos ainda onde morar e o que comer, sabemos quem somos, mas e nossos filhos, o que será deles? Como será nosso futuro se não tivermos nossa terra e nossa cultura? Será que teremos que escutar nossos filhos perguntando a nós, que somos seus pais e o que deixamos para eles enquanto sabíamos que vivíamos em terras alheias?”
Para Inácio Roberto, professor Kinikinau. “A 1° Assembleia do Povo Kinikinau significa o fortalecimento deste povo que nunca deixou de existir, mas que agora reassume a sua grandeza histórica”.
O fato de tão importante assembleia ser realizada na Terra Indígena Terena de Nioaque denuncia por si só os problemas da falta de ocupação de espaço próprio pelos Kinikinau. Hoje suas terras tradicionais encontram-se na mão de fazendeiros. Porém o fato também revela a solidariedade do povo Terena junto à luta dos Kinikinau que, assim como representantes do conselho Aty Guasu do povo Guarani e Kaiowá, se fizeram presentes no encontro e assumiram compromisso conjunto de buscar junto a este povo a superação destas mazelas históricas que há muito lhes aflige. Genilson Roberto Flores Kinikinau em seu pronunciamento emocionado fez referencia ao fato. “Eu sou Kinikinau, vocês são Kinikinau, nós sabemos, sempre soubemos. Antes estávamos sozinhos. Era difícil dizer isso e por isso vivemos calados, mas agora com nossa união e nossos parentes não temos mais medo, não calaremos mais”.
Na assembleia falas fortes como a proferida por Albino Kinikinau trouxeram à tona o tamanho da dor de todo um povo: “É duro ver o povo massacrado, ver o povo ser queimado vivo, tentar se levantar e ser expulso a bala. Mas até hoje o povo resiste e chegou a hora de resistir novamente. Se for para lutar lutaremos, todos juntos, todos os Kinikinau que são muitos e sabemos onde estão. Juntos buscaremos nossos direitos”.
Os Kinikinau nunca adormecidos, simplesmente decidiram andar os caminhos reversos daqueles que os separaram. Percorrendo vias simbólicas se reagruparam para se reafirmar e dividir os frutos de uma cultura salvaguardada junto a cada família por gerações. “Em um só homem ou mulher que desperta e caminha, é toda uma família que se levanta”, diz Nicolau. Nas palavras de Nicolau a essência da caminhada: “Vivemos como se calados em outras aldeias, quem nos olha não sabe o que guardamos, o que somos, acha que somos apenas como os outros. Mas cada árvore dá seu fruto, com seu cheiro e seu sabor próprio, precisamos buscar nossos galhos, nossa própria árvore.” Que a partir desta histórica assembleia, novamente exale para fora do exílio e seja sentido por todos os gostos e cheiros do povo e cultura kinikinau. UNATI APEYEÁ KOINUKUNOEM! (Viva o povo Kinikinau!).