Antônio Claret Fernandes* – Combate Racismo Ambiental
Jairo, dos Munduruku do Tapajós, fora incisivo em seu depoimento no simpósio promovido por equipe da Universidade Federal do Pará, no dia 17 de maio, em Altamira: ‘índio não quer ser peça de museu, quer ser um povo vivo!’.
Seu grito soa como uma profecia! Alguém que se move e esperneia frente à ameaça de extinção pela prepotência do Capital, materializado em nomes e endereços reais e concretos. O projeto neocolonial em implantação na Amazônia, com expansão intensiva do capitalismo a qualquer custo, é uma salada mista com vários ingredientes, entre os quais se destacam a força bruta, a pressão psicológica, a cooptação e o preconceito.
A Transamazônica fora aberta pela força bruta, no sentido literal, durante a Ditadura Militar. O slogan era ‘terra sem homem para homem sem terra’. Claro! Os indígenas, habitantes dessas florestas, não eram considerados ‘homens’ nem gente.
Um morador de Altamira, orgulhoso de ter sido caçador à época, levanta a camisa e mostra as marcas da flechada, que lhe perfurara a barriga, deixando aquela horrível cicatriz. Quem eram esses tais caçadores? O que exatamente eles faziam? Eram ‘profissionais’ conhecedores dos segredos da floresta, em geral amigos dos indígenas, contratados pelos militares aparentemente para lhes garantir a ‘mistura’ com carne de caça. Só aparentemente, pois a verdadeira função deles, e aí está a força brutal, era caçar indígenas, tangê-los – como se faz com gado – e matá-los, sem dó nem piedade, ao menor sinal de resistência. Assim, abriam caminho para a estrada em meio à floresta, quebrando a resistência da flecha com o peso da bala.
A recente ‘expedição de estudos’ no Tapajós, por sua vez, é um típico exemplo de pressão psicológica, igualmente brutal. Usa-se o máximo de força para encontrar-se o mínimo de resistência. Ela contara com quase 200 policiais armados com o intento de garantir estudos que ‘tinham que ser feitos’ na cheia do rio para fins de implantação de barragem.
Essa expedição obtivera êxito do ponto de vista do Capital – ‘cumprindo rigorosamente o cronograma’, como afirmara o governo -, mas deixara um rastro de indignação entre os Munduruku, que colocaram, de uma vez por todas, as barbas de molho. E reagiram! Ocuparam o canteiro de obras de Belo Monte, entre os dias 2 a 9 de maio, quando o deixaram, forçados por uma Liminar de reintegração de posse. Em vista do completo descaso do governo e Norte Energia em ouvi-los, ocuparam de novo o canteiro da barragem no dia 27 de maio, agora por tempo indeterminado.
A Força Nacional que, em Belo Monte, praticamente mora no canteiro de obras, também é um mau exemplo do uso escancarado da pressão psicológica estatal em prol do privado.
Essa demonstração de força, ainda que como sinal de fraqueza, tem um efeito perverso sobre as pessoas. Um morador próximo à Comunidade São Francisco, no km 27, disse que ‘os policiais passam por ali todos os dias’. É claro que os operários, confinados e revistados em cada entrada e saída, padecem ainda mais.
Um terceiro ingrediente é a tática do espelho, que continua como forma de cooptação, naturalmente agora com propostas e objetos mais sofisticados. Quinhentos milhões servem de entretenimento para políticos dos onze municípios da área de influência de Belo Monte. Como cães caçadores, disputam entre si os pequenos fiapos de carne no terreiro dos palácios. Dão-se por satisfeitos, às vezes, pois, historicamente, não tinham nem os ossos. Porém mesmo as migalhas, como carga transportada em caminhão descoberto, caem pelo caminho, deixando o povo apenas nas promessas. É comum ver-se a placa que garantiu o voto e os papéis da formalidade de Belo Monte, mas não a obra.
Porém, de todos os ingredientes dessa salada promíscua do público-privado, num arranjo bem engendrado, o mais nefasto, no último período, caindo como um golpe mortal sobre os indígenas, tem sido o preconceito. Norte Energia e governo partem do princípio de que eles não têm capacidade organizativa e não conseguem escrever nem uma carta para expor seu ponto de vista.
Esse preconceito recai por tabela sobre os não-índios. O Tratamento que deveria ser especial ao indígena, mas que se torna preconceituoso, se revela, na prática, como proibição ao não-índio de manifestar-se. Diante até de boatos, eles sofrem interditos proibitórios e, durante as manifestações indígenas, os não-índios são investigados pela Polícia Federal e Civil, acreditando que, assim, atingem o cérebro da organização.
A pergunta há mais de 500 anos era se o selvagem tinha alma. Essa não é muito diferente dos questionamentos e comentários existentes hoje. De qualquer forma, o objetivo é o mesmo, lá e aqui: criar as condições objetivas para a dominação, o massacre, a completa extinção. O preconceito é o primeiro passo para dizimar-se um povo. É nesse contexto que o grito de Jairo no dia do simpósio se revela como profecia. Por trás da frase ‘índio não quer ser peça de museu’ está o pressentimento dos povos da floresta de que governos e empresas estão dispostos a reduzi-los à figura estereotipada do índio puro, exótico, folclórico, que não obstrui o avanço do Capital. Incorporação sim, obstrução não!
A história é farta desses exemplos. Povos dizimados intencionalmente, como por ironia, ainda são homenageados pelos dominadores, colocando seus nomes em suas mercadorias reais ou mercadorias em potencial. Assim os Aimorés se transformam em marca de biscoito e, os Guarani, em aqüífero.
Nessa disputa ferrenha entre o canhão, alimentado por uma voracidade sem fim, e a flecha, firmada numa cultura mais que milenar – com suas contradições normais, mas com princípios e valores de uma importância inegável -, rompem-se os túmulos da história, e dos sepulcros caiados ressurgem posições carregadas de preconceito. Guerra é guerra, e os inimigos dos povos não mandam flores.
O mito da malvadeza indígena, dos eternos canibais, ganha força entre o povo. Uma bondosa mulher em Minas Gerais, quando soubera de nossa viagem em missão ao Pará, em setembro de 2011, fizera um comentário inocente, mas carregado de preconceito:
– Você não tem medo dos índios?
Respondi-lhe, prontamente:
– Não! Nosso medo é dos inimigos dos índios.
É isso que se planta sobre os indígenas na cabeça do povo brasileiro! E quem tenta contrapor-se a essa ideia, como o faz o CIMI, é colocado de lado, ou é vítima de calúnias para deslegitimar o seu trabalho.
Entre a população de Altamira e arredores, reascendem-se, também, os comentários maldosos: ‘índio não trabalha, ele não precisa de tanta terra!’. E todo mundo tem um caso para contar.
Em Brasil Novo, cidade a 45 km de Altamira, um colono simples disse: ‘onde morava, em Pernambuco, iam índios lá em casa pedir qualquer coisa. De uma feita, chegaram dez e, para testá-los, pedi que buscassem lenha. Cada um trouxe um graveto de nada, como se fosse Guaxo para fazer ninho’. E o colono ria que só!
No Km 18, sentido Altamira/Marabá, bem próximo ao canteiro de obra de Belo Monte, lideranças da comunidade acolheram os Munduruku, que ficaram ali até o dia 26, véspera da segunda ocupação da barragem no mês de maio. O comentário geral na Vila foram os mais absurdos: ‘eles vão expulsar daqui todos os não-índios; o pessoal está aborrecido com as lideranças, que não deviam ter acolhido essa gente; eles estão até ameaçando pessoas na porta’.
Ainda bem que os que participam mesmo da comunidade não deram ouvidos a essas conversas. E puderam degustar, com seus próprios olhos e ouvidos, de uma sabedoria ímpar. Durante todo o domingo ficaram reunidos, atentos, debatendo os seus problemas, prontos a enfrentar seus desafios. À noite, jovens indígenas tocaram violão e cantaram hinos na comunidade.
Essa ressurreição do preconceito, como uma doença crônica cuja ferida, cicatrizada por cima, na superfície, começa a abrir-se e sangrar, doendo terrivelmente, tem relação com o antigo e bem arquitetado plano de colonização da Amazônia e do Brasil inteiro.
Hoje ninguém afirma que o índio não tem alma. Isso porque hoje, do ponto de vista da exploração, ter ou não ter alma não significa absolutamente nada. Os capitalistas, por exemplo, não têm ‘alma’, e tem-se dado muitíssimo bem nos seus negócios. Ao menos nos seus negócios!
Não se diz, então, que o índio não tem alma. Mas se planta e se reaviva o preconceito contra o indígena, pois esse, sim, faz muita diferença; o preconceito cai na boca do povo, ganha a sociedade, e forma a platéia que irá bater palma, aplaudir, e votar em quem provoca, hoje, o genocídio indígena. O preconceito faz um milagre às avessas, transformando vítimas em bandidos. O preconceito, hoje, quebra as pernas e a resistência dos nativos. Jairo tem razão! Nessa conjuntura – que vai pra muito além do governo, mas que tem a sua participação ativa -, os indígenas estão condenados a virar peça de museu.
Com o início da construção de Belo Monte, muitos indígenas perambulam pelas ruas de Altamira. Alguns em situação de pedinte, ou, lastimavelmente, entregues ao alcoolismo e, mesmo, a outros tipos de droga. Por quê? A qualidade de vida nas aldeias, a despeito dos discursos e das bugigangas, vem piorando. A casa do índio em Altamira, com capacidade para receber 80 pessoas, fica abarrotada, com até 180 pessoas. Se a serpente chega e mexe no ninho do pássaro, atacando-lhe os ovos e os filhotes, é normal que saia voando por aí, perdido, sem rumo. E fique totalmente vulnerável a outros predadores. É isso que está ocorrendo com os indígenas. O próprio abandono faz parte do jogo, pois gera mais preconceito, o que os fragiliza.
A correlação de força, no momento, é desfavorável para qualquer povo em luta. Essa situação piora se empresas e governos, além das armas, têm uma sociedade carregada de preconceito. Um time fraco tem boas chances de vitória com uma boa torcida. Num time já forte, como é o caso de Belo Monte, com um orçamento superior a 30 bilhões de reais, e com uma conjunção de esforços do capital privado e estatal – significando que, no limite, eles têm a seu favor a Justiça e as armas -, suas chances crescem, astronomicamente. É uma situação covarde, de fuzis sofisticados contra arcos e flechas. Mas é a realidade.
Está evidente que a pressão sobre as terras indígenas especialmente na Amazônia vai continuar crescendo. O que está em disputa é muito mais que Belo Monte, no Xingu, e Teles Pires, no Tapajós. O agronegócio, as mineradoras, as empresas da área de energia não vão lhes dar sossego até abocanhar tudo e sugar a última gota de sangue da Amazônia, e dos seus diferentes povos.
Cá na ponta, governos/empresas e indígenas se enfrentam, numa disputa desigual. No Congresso e no Senado, tramitam os Projetos de Emendas à Constituição; direitos incorporados a duras penas, com esforço do CIMI e outras entidades, agora podem cair por terra, pois o Capital, que tem nome e endereço, é insaciavelmente faminto. Dentre os 513 deputados que compõem o Congresso, menos de 5, se muito, teriam coragem de posicionar-se a favor dos indígenas, dar sua cara a tapa, correndo o risco de perder o financiamento de sua campanha e não se reeleger no próximo pleito.
A banda segue tocando, numa criminosa harmonia. Entidades e lutadores históricos aparelharam-se, contagiados pelo canto da Sereia, repetindo o mesmo refrão de que o sacrifício de alguns seria para o bem de todos. Uma falácia! Muitas associações, sindicatos e outras entidades, as mais diversas, estão ainda calados, ou acuados, vendo a banda passar.
Em cumprimento de reintegração de posse ontem, 30 de maio, na fazenda Buriti, em Campo Grande, a Polícia Federal e Militar mataram um indígena, dos Terena, de 36 anos, e feriram outros quatro. Em Belo Monte, indígenas de diversas etnias, liderados pelos Munduruku do Tapajós, permanecem no canteiro de obras desde o dia 27 de maio apesar de Liminar de reintegração de posse. O risco de conflito é iminente! Um amigo nosso, profundo defensor e conhecedor dos povos indígenas, disse que os ‘caciques’, lideranças políticas, retiraram-se do campo de batalha, e ficaram os guerreiros, sinal evidente de que pretendem resistir. Quantos mais ainda haverão de morrer?
Essa banda doida tem maestros loucos – ou melhor, segue no ritmo capitalista -, que apostam tudo nos cifrões e num projeto de poder sem projeto de nação duradouro. Há que se tocarem notas destoantes – muitas, e com muito mais força! – na flauta do indígena, na linha do pescador, na mente do operário, no coração do povo, nas trincheiras da história, até jogar por terra o ‘senhor preconceito’. Os diferentes povos têm direito à sua autodeterminação, decidindo o que é melhor para os territórios onde moram e para suas vidas, e para o país; e o povo não pode sobreviver do farelo do pão já que é ele que planta o trigo, amassa e assa o pão inteiro.
*Padre missionário na Prelazia do Xingu e militante do MAB.
Verdadeiro e triste.