Estado se omite para não enfrentar corporações, e comunidades declaram criação da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim em São Luís
Por Vias de Fato
Representantes de povos e comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas do Maranhão, comunidades ameaçadas de despejo por construtoras em São Luís, movimentos sociais e sindicais, pesquisadores das universidades maranhenses (UFMA e UEMA) e do IFMA (Instituto Federal do Maranhão) estiveram com as comunidades que fazem parte da área da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim para uma assembleia bastante representativa da diversidade do povo maranhense no dia 17 de maio.
Nessa data, as comunidades da Reserva chegaram à conclusão de que não dá para ficar esperando a boa vontade do Estado do Maranhão e do governo brasileiro, e declararam criada a Reserva Extrativista na Ilha de São Luís, numa mostra histórica de autonomia, autodeterminação e insurgência contra uma situação que as vulnerabiliza e invisibiliza. Como nas palavras de Máxima Pires, da comunidade de Rio dos Cachorros, essa resistência das lutas assegura a autonomia dos territórios.
A unidade de conservação ambiental do tipo reserva extrativista carrega consigo o simbolismo dos seringueiros da época de Chico Mendes: foram eles os primeiros a tomar uma atitude parecida e, para fazerem frente ao avanço do latifúndio no Acre, em plena Amazônia brasileira, criaram uma reserva desse tipo.
Décadas depois, movimento parecido acontece no Maranhão, com as comunidades da Resex de Tauá-Mirim, na necessidade de fazer frente às corporações que têm invadido a área localizada entre o Itaqui-Bacanga e a Ilha de Tauá-Mirim, a sudeste de São Luís, declararam a criação da unidade, após esperarem anos por um simples pronunciamento do governo maranhense, que é a peça que falta para que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) finalize o processo de criação da Resex.
Tal como os companheiros de Chico Mendes, as comunidades abrangidas pela reserva veem em sua criação uma forma de assegurarem seu direito ao território. São comunidades centenárias, como Porto Grande, Cajueiro, Limoeiro, Tauá-Mirim, Rio dos Cachorros, Taim, Embaubal, Jacamim, entre outras, tanto dentro da Ilha de São Luís quanto na Ilha de Tauá-Mirim.
Além das ameaças que sempre estiveram presentes e se aprofundaram a partir da chegada da instalação da megamineradora Vale e da instalação da planta de processamento de bauxita Alumar (Alcoa), o surto de desenvolvimentismo não inclusivo vivido antes sob a oligarquia Sarney e ao qual o governador Flávio Dino ainda não teve coragem de enfrentar, mantem sob as comunidades a constante ameaça de, após uma história de mais de 100 anos, serem varridas do mapa: a todo dia chegam e se instalam empreendimentos dos mais diversos, que ameaçam tanto as comunidades quanto a preservação ambiental em São Luís. São fábricas de bebidas, fertilizantes, termelétrica, e empresas que orbitam em torno desses empreendimentos maiores, que aterram riachos e manguezais, dizimam o pescado e invertem a lógica, dizendo-se proprietárias do lugar e acusando os moradores que lá estão desde muito tempo de “invasores”.
Foi para enfrentar essa lógica que indígenas dos povos Gamela e Krenyê, comunidades quilombolas e camponesas dos municípios de Santa Helena, Itapecuru-Mirim, Pinheiro, Chapadinha, Pirapemas, além de entidades como GEDMMA/UFMA, NERA/UFMA, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Movimento Quilombo Urbano, Central Sindical Popular (CSP-Conlutas), sindicatos de trabalhadores rurais, comunidades ameaçadas de despejo nos municípios da Ilha de São Luís, entre vários outros participantes, testemunharam o grito de emancipação dado com a instalação do Comitê Gestor da Resex de Tauá-Mirim, com muitas delas participando como entidades convidadas com assento no Conselho.
Resistência
Para Clodoaldo, morador do Taim e histórico defensor da causa, essa é uma luta que está apenas começando. “A cada conquista aparecem mais obstáculos. A luta pela Resex, não só eu, mas como todos que estão aqui, estamos lutando por nossas terras. Eles vêm com rebocadores, com as dragas, destruindo tudo, mas nós não vamos desistir”, afirmou.
A luta pela Resex, que avançou em consolidação pelas próprias comunidades a partir da assembleia do dia 17, serve ainda para unir outras lutas parecidas no Maranhão, sufocadas pelos grandes empreendimentos, que contam ainda com poderoso apoio estatal, contra as populações. E as comunidades vão se identificando umas com as outras, num processo de integração que impressiona, como destacou Anacleta, da comunidade quilombola Santa Rosa dos Pretos, no município de Itapecuru-Mirim (recém-titulada pelo Governo Federal após a greve de fome e ocupação do Incra/MA pelo Movimento Quilombola do Maranhão, Moquibom): “Essa é a integração e unidade das comunidades. Como eu me sinto no Taim (área da Resex)? Para mim não tem diferença de Santa Rosa!”.
Essa unidade também é destacada na análise de Horácio Antunes, professor da UFMA, que avalia a importância da unidade das comunidades para o avanço das mesmas. “É importante essa identificação com a luta, em saber que essa é uma luta de todos”.
Clóvis, do movimento de pescadores e da comunidade do Cajueiro, tem visão parecida sobre o assunto. Ele lembrou a disputa que as corporações vêm travando para se apossarem do território de sua comunidade, onde se pretende construir um porto para exportação, entre outros produtos, da celulose produzida pela Suzano, que avança sobre outras comunidades do interior do estado com suas plantações de eucalipto. Sobre a Suzano, um parêntese revelador do silêncio do governo Dino sobre a Resex: no início do ano, o governador barrou a tomada violenta do Cajueiro autorizada pelos governos da oligarquia Sarney, mas agora, recentemente, voltou a anunciar a construção de um porto na área, justamente para beneficiar a Suzano, não por acaso, doadora de sua campanha à eleição. “Indenização é uma farsa. Na verdade, é uma expulsão”, denunciou Clóvis sobre a tentativa de retirada dos moradores. “A gente precisa brigar pela Reserva. As comunidades estão sofrendo muita pressão, por isso temos de caminhar juntos. Outro dia [o ameaçado] foi Taim, hoje é Cajueiro. Já há ameaçadas também para as comunidades de Tauá-Mirim. Por isso precisamos caminhar juntos”, completou.
Eleonora, de Rio dos Cachorros, reforçou a importância de se preservar a área e sua identidade. “Esse sentimento de pertencimento ao nosso território, que não interessa para as multinacionais, nem para os governos estadual, federal, municipal, é esse sentimento que vai nos manter no nosso território. E a reserva é importante nesse processo. Nada é mais importante para cada um que se manter no Rio dos Cachorros, no território dos Gamela, em Santa Rosa dos Pretos. Para nós, por exemplo, uma de nossas maiores riquezas que temos é a nossa água”, destacou.
Carlos, do Jacamim, frisou a história de resistência que marca os moradores da região. “Nossa luta não é de hoje, e se a terra toda não foi tomada, é porque temos nossos ancestrais que vinham lutando, e hoje compete a nós continuarmos a luta”.
Ameaças
A participação das demais comunidades da Ilha foi importante também para demonstrar de forma mais concreta que a população sofre ameaças em várias frentes. Segundo relatou Rafael Silva, advogado da CPT/MA, há 183 despejos forçados para serem cumpridos pela Polícia Militar do Maranhão. Desses, 121 são na Ilha de São Luís, sendo 67 determinados pela Comarca da Cidade de São José de Ribamar, município de 170 mil habitantes, que concentra 2,5% da população do Estado, mas que tem 40% dos mandados de reintegração de posse. A relação desses despejos com a especulação imobiliária na região e com a presença das grandes construtoras pode ser vista desde a chamada Estrada de Ribamar, via que a liga o município à capital. Assim, a população sofre ameaças tanto de jagunços ligados às empresas como pela justiça maranhense. A resistência das comunidades ameaçadas também cresce, com todas elas se solidarizando e criando vínculos que evitam os despejos, com as demais sempre indo ao socorro da “bola da vez”, ou seja, da comunidade cujo processo de expulsão é iminente.
Além disso, há a estratégia de se requerer que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realize audiência pública sobre a dramática situação em Ribamar e os vínculos disso tudo com a grilagem de terras no município. Assim o Maranhão, além de se destacar como o estado com o maior número de conflitos e ameaçadas no campo, destaca-se ainda pelo elevado déficit habitacional e pela ameaça às comunidades também de áreas urbanas.
Sobre o processo de criação da Reserva de Tauá-Mirim, o destaque do silêncio incômodo e revelador do governo do Maranhão. Mesmo sem haver obstáculo técnico ao reconhecimento oficial da Reserva, o Estado, tal como nos tempos de Roseana Sarney, não se manifesta pela sua criação, única peça que falta para esse reconhecimento. Ao contrário: demonstra interesse em continuar a ser o braço de apoio das corporações, como no caso do porto da Suzano Papel e Celulose. Para piorar a situação, o município vem articulando alterações no Plano Diretor de São Luís com o intuito de transformar a área, reconhecida até hoje como rural, em industrial e área de retroporto, uma forma estimular a entrega da área para o grande capital em prejuízo da população.
Como a carta não é critério obrigatório para a criação, mas apenas uma manifestação simbólica e de anuência com a Reserva, sobram questionamentos também para o Governo Federal e para os órgãos responsáveis pelo reconhecimento. Além disso, as comunidades estão conscientes que o reconhecimento não extingue o processo de lutas, “mas assegura o território, e isso só vai se concretizar se continuarmos na resistência”, nas palavras de Máxima, ou, no dizer de Rosana, do Taim: “Tudo o que temos em nossas comunidades é fruto de muita luta, não tem isso de ninguém bonzinho que nos deu. E assim temos de construir o presente, se não, não teremos futuro”.
INSURGÊNCIA PARA FORTALECER A RESISTÊNCIA ANTE AS AMEAÇAS
Assim, ao soar do tambor de crioula do Taim, que se apresentou durante esse momento histórico, que contou com a presença de camponeses, pescadores, indígenas, quilombolas, movimentos sociais, pesquisadores, sindicalistas, comunidades ameaçadas de despejos, entre outras testemunhas, os moradores da Resex de Tauá-Mirim cantaram e bradaram: “Já chega de tanto sofrer, já chega de tanto esperar”, e declararam instituída a criação da Resex.
Para marcar a insurgência, Gegê Grafite, do Movimento Quilombo Urbano, desenhou a marca da Resex de Tauá-Mirim nas paredes da Casa das Águas do Taim – um dos frutos da resistência de que fala Rosana Mesquita (a Casa das Águas foi construída pela Alumar em razão da compensação ambiental causada pelo aterramento de manguezal na área e pelo assoreamento do canal de pesca da comunidade). O passo seguinte foi discutir a instalação do Comitê Gestor da Reserva, com representantes das comunidades e de apoiadores nas mais diversas instâncias. O passo seguinte foi grafitar também a placa de localização do Taim, retirando o nome da Mineradora Urano e pondo as marcas da Resex. E assim, fortalecendo sua identidade e resistências e contando sua história, as comunidades vão promovendo elas mesmas aquilo que o Estado se nega a reconhecer: suas próprias existências.
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Imagem: Reprodução da página do Vias de Fato.
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Rita Vieria.