A #partidA é um movimento e uma proposta de partido por e para mulheres, explica Tiburi: ‘questões concernentes aos direitos humanos, à solidariedade, à defesa das pautas do campo da esquerda entram no nosso feminismo’
Por Isabela Fraga, no Vozerio/Opera Mundi
Nas últimas semanas têm sido realizados encontros em várias cidades – Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre – para discutir a formação da #partidA, um partido feminista que pretende se embrenhar nas fissuras da política e torná-la democrática de fato. Conversamos com a filósofa Marcia Tiburi, uma das pensadoras do movimento, para entender: faz sentido misturar o feminismo nas práticas de governo tradicionais?
Qual o lugar da #partidA como um partido em meio à crise da representação partidária?
Marcia Tiburi: Eu entendo que existem muitos afetos em jogo na política hoje em dia. E a política sempre foi construída na base de afetos, embora ela apareça para as pessoas como uma construção puramente lógica, racional e estratégica. É claro que o caráter lógico e estratégico permeia os processos, mas a #partidA surge propondo outro afeto político, na contramão do afeto que sustenta, por exemplo, a estrutura autoritária na qual a gente vive e que faz parte da própria história do Brasil, que tem uma história bastante autoritária, escravocrata e cheia de ditaduras.
O afeto que permeia o autoritarismo brasileiro é o ódio, que em certas épocas cresce e aparece com muita força. É o rechaço do outro, a negação do outro, a incapacidade de incluir o outro. Esse ódio sempre esteve latente, e eu acredito até que ele seja de fato estrutural da ordem política conhecida no Brasil e no mundo. Por isso, quando a #partidA surge, é movida por esse afeto “revolucionário” — entre aspas, porque não pretendemos destruir nem colocar uma outra estrutura em cena — digamos assim, trocar um poder por outro.
O que eu vejo é que a gente transforma a ideia de partido numa outra coisa, a gente ressignifica a ideia de partido. E colocamos no lugar do termo poder — na história do patriarcado, da dominação masculina — a potência. Certo, vivemos numa crise de representação, mas, para as mulheres, essa crise sempre existiu. As mulheres nunca foram representadas na política. E, junto com as mulheres, todos os grupos oprimidos, toda uma população que deveria ser cidadã e que foi alienada dos seus direitos de cidadania. Chamar de feminismo já quer dizer que não somos tradicionais.
Justificativas de teor moral são muito mencionadas por quem prefere se manter fora da política tradicional, que seria “suja” e corrupta — como você mesma diz algumas vezes. Quais os problemas dessa visão? A #partidA (ou, melhor, as mulheres até agora envolvidas) não vê problemas em sujar as mãos ou não há sujeira de fato?
Criou-se no Brasil uma cultura antipolítica cujo discurso há muito tempo é: o poder corrompe, o poder é ruim, a política é um campo minado e um lugar terrível para se estar. Associamos a política à corrupção, à sujeira, ao mal. Essa ideia de política serve a quem? Serve a quem está no poder. E, no caso, o nome concreto do poder que está em jogo hoje e no qual a #partidA quer intervir é o poder enquanto governo. Por isso nós precisamos da forma “partido”. Só que, por ser um partido feminista, ele já não é um partido como os outros — porque um partido feminista não é como os outros. Os valores, as práticas, os direitos desejados pelas mulheres são bastante diferentes dos valores, das práticas e dos modos de existir dos partidos tradicionais.
Existem muitas pessoas ligadas à #partidA que convivem com instituições — seja algum partido de fato, universidades, poder judiciário ou a mídia. E essas pessoas não têm medo de viver em instituições. O partido é apenas mais uma instituição que deve nos servir como meio, e não como fim. Nisso, encontramos uma coisa muito bonita da #partidA: a ético-política feminista, um conceito que eu defendo teoricamente. E isso muda tudo, porque assim como as pessoas têm preconceito em relação a partidos, a esse “sujar as mãos”, pensam que a forma partido é a forma que fomenta essa corrupção toda. Não precisa ser assim, e é por isso que nós almejamos uma bancada feminista. E almejamos a forma partido, mesmo que nós não venhamos a formalizar a #partidA — porque é possível que a nossa #partidA se mantenha como movimento, como já é.
Pode ser que nós não formalizemos um partido porque talvez nós não precisemos da forma partido burocratizada e inscrita no TRE. Mas o que queremos é funcionar como um partido, pois o nosso movimento quer atingir a governalidade. Assim, propomos radicalmente uma democracia feminista, porque não acreditamos na existência de uma democracia que não contemple uma pauta, um projeto feminista.
Gosto de citar a Mary Wollstonecraft, que no século 18 brigava com Rousseau. Ela falava que o feminismo é uma luta pelos direitos da humanidade. Se a humanidade é de homens e as mulheres participam dela, então está errado. Queremos um feminismo que inclua todas as pessoas e singularidades. É por isso que a gente expande, aumenta, recria o feminismo — uma busca por singularidades, por uma democracia que, como escrevi esses dias, é uma democracia hard, não é a democracia de fachada.
Mas se a #partidA não se transformar num partido formalizado, como intervir no governo?
Uma das ideias que transitam hoje em certos grupos, sobretudo aqui em São Paulo (vamos ver como isso vai se constituir nas outras cidades), é que a gente apoie candidatos de outros partidos. A proposta da #partidA é empoderar mulheres e todos aqueles sujeitos que se reconhecem como mulheres e que desejam fazer política feminista. E também quem não se diz mulher, mas que é feminista. Acreditamos também no feminismo dos homens — ele é mais complicado e precisa ser mais elaborado, inscrito dentro de um contexto. Hoje, vivemos num contexto de cotas para mulheres. Na nossa #partidA, teremos cotas para homens (risos). Brincando, mas também falando sério: é importante que os sujeitos dos privilégios na nossa cultura atual tenham a experiência das cotas. É provável que a gente não seja um partido formalizado para as próximas eleições. Mas a ideia é que a gente crie uma campanha — na minha cabeça, vamos ter todas as prefeitas do Brasil, as vereadoras etc. A gente quer a eleição, é nesse patamar de luta que a gente vai se inserir.
Para superar a questão da uniformidade necessária ao conceito de partido, Carla Rodrigues, no blog do IMS, propõe que o referencial da partidA seja vazio. Como você entende essa proposta? Como levar isso para a construção do partido neste momento de sua formação?
Eu entendi que o referencial vazio é um espaço de criação da política. Acho que esse referencial vazio tem a ver com a potência de construção de uma nova história, de um novo — seja histórico, filosófico, do pensamento, político. Estamos construindo uma nova política real, concreta, hard. Então, ao mesmo tempo que a #partidA é um nome de acolhida, ela é um “lançar”, o #partiu. Partir rumo a uma aventura, no sentido de uma viagem, de explorar novas terras, o espaço desconhecido. Esse campo da política, tratado hoje em dia como uma selva cheia de monstros, é o espaço que a gente precisa atingir de maneira lendária. Entendo a #partidA como naqueles filmes de aventura, nos quais as pessoas vão para um lugar desconhecido. #partidA já virou o referencial, porque grafamos a hashtag que faz referência ao #partiu, e o A representa uma inversão, uma brincadeira. A gente leva tudo muito a sério, mas é num clima de criação.
Na Suécia, a Feminist Intitiative foi o primeiro partido feminista europeu a conseguir um assento no parlamento. Em maio deste ano, a Inglaterra oficializou seu primeiro partido feminista. Também há partidos feministas na Índia e nas Filipinas. Como a #partidA se insere nesse cenário global? Quais as influências e inspirações?
Não teve essa influência direta. Eu sou muito brasileira e muito ligada no que acontece no Brasil. É claro que está todo mundo sentindo uma emoção radical desde 2013, desde os acontecimentos no Egito e na Grécia, tudo isso pegou muito a gente. Mas não há uma influência mais direta e estratégica. A #partidA é bem brasileiro, algo que vai ser construído do nosso jeito.
Num congresso brasileiro de conservadorismo inédito como o de hoje (assim como a população que o elegeu, em sua maior parte contrária à regulação do aborto), no qual pautas retrógradas têm ganhado cada vez mais espaço, como um partido feminista pode ganhar força?
Isso vai acontecer primeiramente em um nível de movimento — as coisas não são de um dia para o outro. E o Brasil precisa de uma bancada feminista forte, é por isso que vamos lutar. A bancada que temos hoje não é possível, não é justa, não é decente. Não é possível aceitar a política como ela está colocada ali. Essa bancada “BBB” [bancada do Boi, da Bíblia e da Bala] não faz sentido no nosso país. Esperamos que a nossa ético-política feminista seja tão forte e acolha de tal maneira os anseios e as potências brasileiras que a gente possa mudar justamente esse cenário. Os atores desse cenário precisam ser outros.
Muitos mencionam as disputas internas do feminismo como um problema na formação de uma organização “única”. A jornalista Yvonne Roberts disse no jornal britânico The Observer que “Uma aliança política de mulheres seria instável e eventualmente implodiria”. Alguns partidos feministas pelo mundo de fato tiveram vidas curtas (como a Austrália, Belarússia e Islândia). Como fazer durar a #partidA no jogo da política tradicional?
Isso precisa ser entendido dentro da história, da circunstância política de cada país. No caso do Brasil, também vamos precisar pensar. Qual a característica do poder patriarcal, do poder enquanto dominação masculina? A permanência no poder. O poder quer mais poder. O nosso poder é potência, é poder para fazer, para transformar — que vai servir à transformação da sociedade. Nesse sentido, se o partido realizar seu projeto e depois deixar de existir, eu não vejo mal algum. Ao mesmo tempo, enquanto as condições históricas que o obrigaram a existir não se transformarem, nós vamos querer continuar existindo.
Nosso sonho é uma sociedade em que não exista mais autoritarismo, onde os direitos de todas as pessoas estejam realizados e que a gente não precise mais viver em luta. É claro que isso é uma utopia. Assim, em termos muito práticos, vamos precisar reproduzir nossa metodologia de atuação celular nesta construção da #partidA. Não podemos atuar como partidos atuam, de cima para baixo. Precisamos construir de maneira participativa e criativa as nossas demandas e decisões. Conversar com as pessoas, reconhecer as demandas singulares e coletivas num clima de sinceridade e respeito.
Acreditamos de verdade que vamos crescer e avançar com uma operação política diferente, porque é dialógica. Existe uma afetividade que move todos os feminismos, mas não existe um feminismo como pensamento único — ele sempre foi diverso e complexo. Então não existe um feminismo que tenha mais razão do que o outro. Para mim, o feminismo é essa construção dessa diferença. O pensamento único tende ao autoritarismo, e o feminismo nunca poderia ser um autoritarismo.
E vocês pensam em se identificar com uma esquerda ou com uma direita ou isso não é importante?
Isso é muito importante, tanto quanto é desimportante. Os feminismos e a democracia feminista é uma superação da dicotomia direita/esquerda. Nós somos a superação disso. Como? A direita não reconhece a existência do feminismo. A esquerda também é conservadora perto do feminismo. Por isso eu costumo dizer que o feminismo é ainda mais à esquerda, mas na verdade ele é uma superação dessa dicotomia.
Os partidos ainda acreditam que as mulheres possam estar ali na forma de cotas, que elas possam fazer o feminismo da mesma forma subalterna, secundária e inessencial em relação ao que significa a proposta socialista, por exemplo, no caso da esquerda. Então a gente não tem nenhum partido de esquerda que seja feminista. Pois nós teremos uma #partidA feminista de maneira essencial, prioritária e fundamental. E as questões concernentes aos direitos humanos, à solidariedade, à defesa das pautas do campo da esquerda, tudo isso entra no nosso feminismo. Mas numa inversão do jogo, o que é fundamental.
Eu sou filiada ao PSOL, adoro as pessoas e as propostas, mas não é suficiente para aquilo que eu penso em termos de política. Em se propor feminista, a #partidA propõe um lugar de protagonismo das mulheres, próprio do feminismo em sua história.
Como têm sido os encontros da #partidA até agora?
Na verdade, ainda estamos no começo das nossas reuniões. Só tivemos três até agora, e o número de pessoas que aparecem nos encontros têm aumentado. As pessoas têm chegado na partidA com muita curiosidade, alegria e muito comprometimento. O desejo de fazer é muito emocionante. Uma coisa muito bonita que tem acontecido é o diálogo entre as gerações: feministas históricas e meninas mais novas que estão começando, é lindo.
Quais os próximos passos da #partidA?
Temos uma reunião marcada dia 27, sábado, em Goiânia. Mas têm sido pensadas reuniões em Curitiba — que vai acontecer no final de julho —, Belo Horizonte, Palmas, Salvador e Brasília. A #partidA tem um desejo de espontaneidade, então a gente espera as pessoas — e as pessoas vêm. A gente espera as feministas e as feministas estão chegando! (risos) Isso é lindo, porque é uma nova onda, é uma outra história que estamos construindo. As meninas mais novas, sobretudo, dizem: “eu sinto que estou fazendo história!” E o legal é que tudo isso nasceu de uma ideia muito louca, a de criar um partido feminista. O feminismo é muito anárquico, um anarquismo que deu certo. Então a ideia de um partido provoca: as feministas se sentiram convocadas porque foram provocadas a pensar uma coisa meio contraditória — o oxímoro do partido feminista. A #partidA é meio absurda, uma torção do poder tradicional.
Entrevista original publicada no site Vozerio.
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Destaque: Marcha das Mulheres no último dia 08 de março, em São Paulo. Mídia Ninja