A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de legalizar nacionalmente o casamento homoafetivo (que já era permitido em 36 dos 50 estados), nesta sexta (26), coroa décadas de ativismo e militância por direitos e se torna referência para outros países.
Ou seja, não foram os cinco magistrados que votaram pela equidade os que devem ser ovacionados, mas milhões de pessoas, famosas e anônimas, que deram suor, sangue e a própria vida para que isso acontecesse. Prova disso é que, no momento da votação, mais da metade da população norte-americana já concordava com a mudança.
Por aqui, o casamento civil homoafetivo avançou em maio de 2013, quando uma resolução aprovada no Conselho Nacional de Justiça (175/2013) obrigou os cartórios em todo o país a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo e a converter em casamento a união estável homoafetiva – que já havia sido aprovada pelo Supremo Tribunal Federal.
Aqui como lá, também resultado da pressão dos movimentos e organizações sociais, apesar do apoio popular aos direitos da população LGBTT ser menor do que nos EUA.
Não significa, contudo, que a situação está resolvida. Primeiro, porque o Partido Social Cristão (do pastor Marco Feliciano) entrou com uma ação direita de inconstitucionalidade no Supremo, afirmando que o CNJ não teria poder para tomar essa decisão.
Além disso, como temos separação entre os poderes, a decisão do CNJ guia, prioritariamente, o entendimento de outros tribunais quanto à constitucionalidade de pleitos nesse sentido. Faz-se necessário que isso seja compartilhado por outros poderes, como o Executivo federal – que também já avançou quanto à concessão de direitos previdenciários, por exemplo – para facilitar a vida dos casais. E olha que nem estou falando sobre a polêmica questão da adoção.
Entidades e movimentos que atuam nessa área defendem a aprovação de leis e emendas constitucionais para uma consolidação segura desse cenário e a universalização dos direitos revistos aos casais héteros sem dores de cabeça. Há projetos no parlamento tramitando nesse sentido – e no sentido contrário, claro.
O Congresso Nacional que, por vez ou outra, transpira as mais bizarras formas de preconceito através de seus militares empedernidos, pastores enfurecidos ou ruralistas enraivecidos, é fruto do tecido social em que está inserido – e sim, a sua esbórnia que ganha as páginas policiais, digo, de política, é um reflexo de nós mesmos.
Eles somos nós. Ou, em última instância, fazem crer que são.
E a letargia deles também é nossa. Porque, na prática, uma (não) decisão tomada pelo Legislativo tem em seu âmago o mesmo preconceito das piadas maldosas contra homossexuais, transsexuais e transgêneros ou dos pequenos machismos em que nós (e não me excluo disso) nos afundamos no cotidiano. O que difere é o tamanho do impacto, não sua natureza.
Legislativo que transfere, vez ou outra, por omissão, para o Supremo Tribunal Federal ou para o Conselho Nacional de Justiça o papel de tornar real a garantia constitucional da dignidade.
E depois fica com mimimi, reclamando que suas prerrogativas foram ignoradas.
Como já disse aqui várias vezes, ainda bem que decisões legais do Supremo Tribunal Federal não são (sempre) tomadas com base em pesquisas de opinião pública. Afinal de contas, uma democracia verdadeira passa pelo respeito às minorias, garantindo sua dignidade mediante a uma maioria que é avassaladoramente violenta.
Nem todo lugar é a Irlanda para poder declarar constitucional, através de votação popular, o casamento homoafetivo.
Direito ao aborto de fetos anencéfalos, direito a realizar pesquisas com células-tronco embrionárias, direito a reivindicar a descriminalização das drogas, direito de punir a violência contra a mulher mesmo sem a denúncia por parte desta foram decisões do Supremo que garantiram mais direitos.
Não perguntei para o crucifixo que está à espreita no plenário do STF se todas essas decisões demonstram um padrão progressista. Mas há esperança de que a Constituição Federal de 1988 continue, através de decisões naquele plenário, a sair do papel.
Até porque temos outras pautas a vir: a descriminalização das drogas, a ampliação do direito ao aborto, a manutenção do conceito de trabalho escravo, a possibilidade de terceirização de todas as atividades da empresa, a redução da maioridade penal para 16 anos, a redução da idade mínima para trabalhar para 12 anos…
Meia dúzia de autodeclarados representantes da Verdade (se é que a Verdade existe) não podem decidir se o restante da população terá ou não direito à dignidade.
E não sou eu quem diz isso. Em Mateus, capítulo 22, versículo 21, o livro sagrado do cristianismo deixa bem claro o que o pessoal de hoje quer fazer de conta que não entende: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus”.
Ou, do popular: ado, ado, ado, cada um no seu quadrado.
Dizem que falta informação e por isso temos uma sociedade que pensa de forma tão excludente. Mas isso não basta. Deve-se saber como trabalhar com essa informação que recebemos, refletir sobre ela. Entramos aqui na questão da consciência social, que não se aprende nos bancos de escola, mas no trato com a sociedade.
O contato com o “outro”, e com suas diferenças, contribui para fomentar essa consciência. Ou seja, aceitar que as pessoas têm direito à própria vida e ao próprio corpo e que não é com uma sociedade ditatorial e sumária que se resolverão os problemas.
A New York Gay Pride, deste domingo (28), certamente será mais animada do que nunca. Ainda mais quando passar ao lado do bar Stonewall Inn, local do início da revolta de 28 de junho de 1969 – quando, cansados da violência policial, gays, lésbicas, transexuais pela primeira vez tiraram a condição de oprimidos do armário e colocaram o movimento na rua. Movimento que levou, 46 anos depois, à decisão desta sexta.
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Imagem: Celebração em frente ao bar Stonewall Inn, na noite desta sexta (26), em Nova Iorque (Foto Gabriela Barros)