Por Luciana França
Como professora do Programa de Antropologia e Arqueologia (PAA), da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) venho por meio desta carta trazer a público algumas considerações sobre o evento ocorrido no dia 11/05/2015 em que o pesquisador Daniel Belik foi convidado pelo Anarq, por meu intermédio, a falar sobre sua pesquisa nesta Universidade. Escrevo este relato porque a “Nota de esclarecimento ao Povo Munduruku e à comunidade da UFOPA”, publicada no dia 02/06/2015 na página do Anarq no Facebook e no site Combate Racismo Ambiental e assinada por alguns docentes do PAA, não foi elaborada de maneira consensual. Por essa razão, solicitei [*] que o site Combate Racismo Ambiental também publicasse esta carta contemplando assim as minhas discordâncias com relação ao conteúdo da referida nota e à maneira pela qual ela foi elaborada.
No início de abril deste ano, convidei o pesquisador Daniel Belik para falar no Anarq – espaço criado por alguns docentes do PAA que visava justamente promover debates entre professores, alunos e convidados externos sobre temas em Antropologia e Arqueologia. Daniel Belik, bacharel em Ciências Sociais pela USP, mestre em Antropologia Social pela Universidade de Aberdeen e doutorando em Antropologia Social pela Universidade de St. Andrews, estava então desenvolvendo seu projeto de pesquisa “Guerreiros Munduruku: história, cosmologia e atualidade”, que fazia parte de um projeto maior, coordenado pelo Prof. Dr. Mark Harris, intitulado “Sistemas regionais e etnohistoria na área Tapajós-Madeira: A construção dos povos indígenas dos séculos XVII ao XIX”. Desde julho de 2014, Daniel Belik narrava-me suas tentativas de apresentar seu projeto de pesquisa aos Munduruku no intuito de conseguir a anuência para realizar uma pesquisa de campo entre eles. Segundo seus relatos, depois de algumas tentativas, a decisão indígena sobre a autorização da pesquisa foi encaminhada à Assembleia Geral dos Munduruku, na qual o pesquisador recebeu a resposta negativa e a recomendação para voltar para casa, após o quê não mais voltou às aldeias munduruku. Nessa época, Daniel estava justamente refletindo acerca das condições de dar prosseguimento à sua pesquisa. Não havendo mais a possibilidade de realizar um trabalho de campo, ele imaginava poder desenvolver seu projeto a partir de fontes documentais e bibliográficas. Foi nesse contexto, e ciente dele, que eu o chamei para fazer uma palestra na UFOPA. Para ele, eu achava, seria uma oportunidade para elaborar melhor suas questões acerca dos rumos que a pesquisa teria que então tomar a partir da recusa munduruku e para ouvir dos colegas sugestões nesse sentido. Para os alunos, seria uma ótima oportunidade para refletirem sobre um projeto de pesquisa que, em andamento, como muitas vezes acontece na prática, tem que se adaptar às condições de possibilidade de sua realização. No dia 13 de Abril de 2015, segundo consta em ata, encaminhei a proposta da palestra de Daniel Belik ao Colegiado do PAA que não se opôs, concordando que não era preciso encaminhar esse tipo de sugestão àquela instância.
No dia 11/05/2015, com a sala repleta de alunos, indígenas e não indígenas, e de alguns professores do PAA, Daniel Belik fez sua fala intitulada “Quem são os muitos Munduruku?” na qual ele procurava pensar sobre o aspecto da multiplicidade que, nos relatos etnohistóricos, caracterizava frequentemente os Munduruku. Após terminar sua fala, o debate foi aberto e um grupo de estudantes munduruku pediu a palavra para ler uma carta que haviam preparado. A carta foi publicada no mesmo dia no site Xingu Vivo para Sempre, no dia seguinte, no site Combate Racismo Ambiental e, alguns dias depois, em inglês, no blog Latin America Bureau. Nessa carta, os Munduruku sugerem que Daniel Belik teria iniciado sua pesquisa etnográfica entre eles sem a devida anuência e rejeitam-na firmemente exigindo que a autonomia indígena seja respeitada, sobretudo nesse momento político tenso em que grandes projetos de empreendimentos governamentais ameaçam a integridade física e territorial desse povo.
Após a leitura da carta, os Munduruku se dirigiram aos professores do PAA, questionando a realização daquele evento e declararam que não permaneceriam naquela sala para o debate. Retiraram-se logo em seguida. Como mediadora do evento, perguntei a Daniel Belik se ele queria dizer algo. Ele começou a falar sugerindo que conversássemos sobre o ocorrido, ao que foi abruptamente interrompido por alguns dos professores do PAA que estavam presentes e que argumentaram que o evento deveria ser suspenso naquele momento. Mais que isso, esses professores declararam que também se retirariam caso o debate continuasse. Um dos professores então ponderou que não podíamos fazer aquilo com o nosso convidado, chamou a atenção para o aspecto positivo daquela situação – a saber, a própria possibilidade daquela manifestação indígena dentro da Universidade –, sugeriu que debatêssemos ali mesmo o que acabara de acontecer e, alternativamente, que ao menos nos comprometêssemos a propor uma nova ocasião em que o pesquisador seria chamado a voltar à UFOPA para dar continuidade à sua fala e expor seu ponto de vista. Consultado quanto a essa última possibilidade, Daniel Belik concordou com a proposta e, assim, a palestra foi interrompida, sem que ele tenha tido a oportunidade de, naquele momento, se manifestar sobre o que acabara de acontecer.
Ao longo da semana seguinte, aconteceu, por e-mail, um longo debate entre os professores do PAA sobre o que havia se passado e seus desdobramentos, com muitos posicionamentos divergentes. Mas existia, aparentemente, um consenso quanto à necessidade de uma manifestação pública acerca do evento, direcionada aos Munduruku e à comunidade acadêmica da UFOPA. As dúvidas quanto a essa manifestação eram com relação a quem caberia se manifestar – o Anarq ou o PAA – e a seus termos. Nessa troca de e-mails, argumentei com meus colegas que devíamos nos manifestar explicitando o papel do Anarq e apoiando a luta e a manifestação dos Munduruku. Mas, para mim, não podíamos emitir qualquer julgamento quanto à conduta do pesquisador Daniel Belik. Não éramos instância própria para isso e, se fôssemos, teríamos necessariamente que ouvi-lo para que pudéssemos nos pronunciar.
Ao longo daquela semana, Daniel Belik me procurou e me perguntou sobre a proposta que havíamos feito de seu retorno à UFOPA para que ele tivesse a oportunidade de falar sobre o que havia ocorrido. Certa de que cumpriríamos o acordo que havíamos feito com ele e com os alunos naquela ocasião, encaminhei a pergunta aos meus colegas. Apenas alguns professores responderam à proposta e, para minha surpresa, opuseram-se ao que havia sido acordado, negando que lhe fosse dado esse espaço.
Marcamos uma reunião extraordinária do colegiado para o dia 18/05 para discutir presencialmente aquelas questões, mas os rumos do debate foram totalmente alterados a partir do momento em que a carta assinada pelas organizações indígenas (DAIN, CITA e GCI) e direcionada ao PAA foi lida e colocada imediatamente em pauta. A carta questionava a omissão do corpo docente do PAA com relação a duas situações em que a identidade indígena dos povos indígenas do Baixo Tapajós foi questionada em contraposição à pronta disposição manifestada pelos mesmos professores em dar uma resposta aos Munduruku com relação à palestra do dia 11/05. Além disso, ela sugeria que as contrastantes atitudes do corpo docente com relação aos dois conjuntos indígenas decorreria de uma diferenciação feita por esses professores entre “verdadeiros” e “falsos” índios e, mais ainda, que essa discriminação reforçaria tal oposição, sobretudo por partir de antropólogos. Nessa reunião, com a leitura dessa carta e a sala repleta de alunos e representantes do movimento indígena, não tivemos condições para conversar de forma serena e cuidadosa sobre o evento do dia 11/05. Não houve, entretanto, nenhuma outra reunião – do Anarq ou do PAA – dedicada a essa pauta.
Nos dias subsequentes, a representação discente no Colegiado me procurou pedindo o contato de Daniel Belik, porque os estudantes decidiram que deveriam chamá-lo para que ele pudesse falar sobre o ocorrido, já que, aparentemente, a tendência no PAA era de não conceder a ele esse espaço. No dia 25/05, Daniel Belik voltou à UFOPA a convite do corpo discente e fez uma fala apresentando sua versão dos acontecimentos e suas reflexões acerca dos problemas relativos à ética em trabalho de campo, a partir da própria experiência que ele estava enfrentando. Na ocasião, fez-se um debate sobre questões constitutivas do trabalho do antropólogo e Daniel pôde responder a todas as perguntas que lhe foram colocadas. Nenhum dos professores que, nos dias seguintes, viriam a assinar a “Nota de esclarecimento ao Povo Munduruku e à comunidade da UFOPA” esteve presente.
Com efeito, no mesmo dia, o assunto foi retomado por e-mail, dessa vez, fora da esfera do Colegiado, pelo Anarq, e a partir de uma minuta da nota de esclarecimento que, dias depois, veio a ser publicada. Note-se que, quando essa minuta começou a circular, no dia 25/05, já tínhamos ciência da carta do DAIN, CITA e GCI, que questionava justamente a prioridade dada ao “caso munduruku” em contraposição às omissões com relação aos casos envolvendo as populações indígenas do Baixo Tapajós. Chamei a atenção dos colegas quanto à possibilidade de que a imediata publicação daquela nota fosse compreendida como uma confirmação das acusações feitas pelas organizações indígenas supracitadas e um descaso com relação ao argumento por elas apresentado.
Além disso, a nota emitia um julgamento sobre a conduta de pesquisa de Daniel Belik. Mesmo após as alterações que foram feitas na minuta inicial para a versão definitiva, persistia o julgamento ao reconhecer que o Anarq teria oferecido “espaço de divulgação a uma pesquisa que ignorava o protocolo básico de consulta e anuência da comunidade pesquisada, conforme convenção 169 da OIT, subscrita pela ABA”. Com efeito, a carta dos Munduruku sugere isso, embora não diga explicitamente. Entretanto, a carta escrita por Daniel Belik e publicada no site Combate Racismo Ambiental uma semana após sua primeira fala na UFOPA dá outra versão dos acontecimentos. Segundo consta nessa carta, nas primeiras situações narradas na carta dos Munduruku sua presença em terra indígena deveu-se a um trabalho que ele estava realizando como contratado da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e, nas outras, seu objetivo foi de informar sobre a natureza do seu projeto de pesquisa para conseguir a anuência das comunidades, seguindo os procedimentos legais de autorização para os estudos antropológicos.
A autorização da Funai que ele obteve é precisamente de “coleta de anuência” e não de pesquisa (cf. Processo da Funai n. 08620.091622/2014-57). Nesse documento, descreve-se o objetivo do ingresso do pesquisador nos seguintes termos: “Realizar especificamente a consulta de anuência dos povos indígenas das Aldeias Sai Cinza, Caroçal do Rio das Tropas e Kato, no período determinado por esta autorização, para fins de obtenção posterior de uma Autorização para ingresso em Terra Indígena para realização de projeto de pesquisa de doutorado intitulado “Guerreiros Munduruku: História cosmologia e atualidade”.”
Ainda em sua carta-resposta, Daniel Belik afirma que o acordo feito entre ele e os Munduruku era que a decisão definitiva sobre a sua autorização aconteceria na Assembleia Geral, que ocorreu entre os dias 2 e 9 de abril de 2015, quando então seu pedido foi negado e ele foi embora sem mais voltar à Terra Indígena. Os signatários da “Nota de esclarecimento ao Povo Munduruku e à comunidade da UFOPA”, entretanto, preferiram ignorar a versão apresentada por Daniel Belik, reificando o que está apenas sugerido na carta dos Munduruku.
Na primeira troca de e-mails que mantivemos sobre esse assunto, ainda no âmbito do Colegiado, expus aos meus colegas esse meu ponto de vista. Na segunda troca de e-mails, já apenas entre os professores ligados ao Anarq, reafirmei minha discordância quanto ao juízo sobre a conduta do pesquisador que a nota expressava e declarei que eu não me dispunha a assiná-la tal como estava. Disse ainda que não desejava mais estar vinculada ao Anarq e, sem qualquer consulta ou comunicado, fui excluída daquela conversa. Depois soube que aquela troca de e-mails foi continuada e que dela resultou a nota, publicada no dia 02/06, no site Combate Racismo Ambiental e nas redes sociais, por onde eu tomei conhecimento dela.
No dia anterior à publicação da nota do Anarq, na reunião extraordinária do Colegiado do dia 01/06, em que estiveram presentes a Reitora da UFOPA e o Procurador da UFOPA, um grupo de alunos dos cursos de Antropologia e Arqueologia apresentou uma carta/manifesto em que expressam sua insatisfação com relação à postura adotada por alguns professores do PAA. A carta foi publicada em uma página do Facebook criada por esses alunos para divulgar a causa por eles defendida. A carta dos estudantes, sem citar nomes, faz críticas a uma maioria do corpo docente do PAA, defende o direito das minorias e exige que as opiniões divergentes sejam respeitadas. Fala explicitamente de decisões “conduzidas e impostas por uma maioria construída na base das relações de interesses pessoais ou do próprio grupo, com enorme dificuldade em ouvir as vozes dissonantes, sejam estas de alunos ou de outros professores”. Por toda a situação que procurei descrever neste relato, ao ler a carta/manifesto dos alunos, não pude deixar de me sentir contemplada por ela e reconhecer que, de fato, os problemas ali apontados são bastante reais.
Quero, por fim, deixar claro que minhas críticas dirigem-se apenas às atitudes tomadas por parte de meus colegas, professores do PAA. Embora discorde da nota do Anarq, por seu conteúdo e pela maneira como foi elaborada, considero a manifestação dos Munduruku no dia 11/05 absolutamente legítima e positiva. Para a Universidade e, particularmente, para a antropologia, de um ponto de vista político e epistemológico, esse tipo de situação nos coloca diante de uma nova condição de produção do conhecimento científico: aqueles que até há pouco tempo atrás figuravam, quando muito, apenas como “objeto” de nosso interesse acadêmico podem, cada vez mais, ter real (e radical) protagonismo sobre as pesquisas que são realizadas sobre/com eles. Resta-nos saber aproveitar essa oportunidade no sentido de multiplicar as vozes com as quais dialogamos, em vez de silenciar aquelas das quais discordamos a priori a partir da produção de simples maniqueísmos.
Santarém, 23 de Junho de 2015
Luciana Barroso C. França
Professora do Programa de Antropologia e Arqueologia da UFOPA
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[*] Nota: solicitação acolhida espontaneamente por este blog, embora a questão não configure motivo para o exercício do direito de resposta. (TP)
Mais sobre a questão:
Quem são os muitos Daniel Bellik? [Carta dos Munduruku]
Carta ao Povo Munduruku – [direito de resposta concedido a Daniel Belik]
Coletivo ANARQ: Nota de esclarecimento ao Povo Munduruku e à comunidade da UFOPA*
Perfeito, Florêncio!
E saudemos este novo momento, totalmente construído por esses povos, comunidades e movimentos, com o qual muit@s de nós estamos tendo visível dificuldade de interagir.
Amigos(as), este debate está longe de ser algo menor e localizado numa universidade no longínquo interior da Amazônia. O que está em discussão tem a ver com o novo momento em que vivemos, quando milhares de negr@s, quilombolas, indígenas, Sem Terra e populações tradicionais entraram e estão se fazendo notar no interior das universidades, inclusive dos cursos de Ciências Sociais, onde estes coletivos até então apareciam apenas como “objeto”. Agora, eles exigem ser tratados como sujeitos num diálogo entre iguais. Estamos preparados para isso?
Para um entendimento do contexto geral desta Nota abaixo, da lavra da Profa. Luciana França (PAA/UFOPA), sugiro que leiam o “roteiro” dos varios documentos já divulgados dentro deste debate que, ao meu ver, é uma verdadeira aula de antropologia, da prática dos antropólogos(as), de ética (ou da sua falta)… Vejam: https://www.facebook.com/mecoloniza/posts/731622753614307