Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer
(Dorival Caimmy, Suíte do Pescador)
Uma das profissões mais belas, dignas e antigas do mundo, a de pescador, está ameaçada no Brasil. O decreto 8425, publicado em abril pela presidência da República, modifica o critério pelo qual um trabalhador é reconhecido como pescador artesanal e as exigências para tirar o Registro Geral da Pesca (RGP), documento que garante acesso a políticas públicas e sociais, principalmente direitos trabalhistas e previdenciários, como o seguro-defeso.
Com o decreto, só será considerado pescador artesanal quem faz a captura do pescado, excluindo a produção familiar tradicional, que inclui a maioria das mulheres das comunidades. Além disso, diz que só é pescador artesanal aquele que depende exclusivamente da pescaria, desconsiderando atividades como a agricultura e o artesanato.
Na semana passada, depois de mais de 24 horas ocupando nas sedes do INSS e das superintendências do Ministério da Pesca e Aquicultura em diversos Estados, e a própria sede do ministério em Brasília, o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) conseguiu que o governo adiasse em um mês a vigência do decreto.
O decreto 8425 é um baque nos pescadores e pescadoras artesanais, que acreditavam que o governo do PT iria finalmente atender às reivindicações históricas da categoria. Em 2003, em seu primeiro ano de governo, Lula foi aplaudidíssimo pelos pescadores ao sancionar a lei que criava o seguro-defeso, que paga um salário mínimo a eles durante os meses em que os peixes estão se reproduzindo. Doze anos depois, em vez de estarem com a vida ainda melhor, o modelo desenvolvimentista adotado pelo PT ameaça os direitos de quase um milhão de famílias que vivem da pesca artesanal no País.
Na quarta-feira 17, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a MP (medida provisória) que manteve a exigência de um ano de registro para que o pescador possa ter direito ao seguro-defeso, mas a intenção do governo era modificar este prazo para três anos, sob a justificativa de evitar fraudes. “De fato as fraudes existem, mas isso não é culpa dos pescadores. As medidas deveriam ser administrativas, e não diminuir os direitos de todos os pescadores”, diz a secretária geral do Conselho Pastoral de Pescadores, Maria José Pacheco.
Maria José acusa o governo Dilma de tentar driblar a crise econômica atingindo as parcelas mais sofridas da população, como os pescadores artesanais, a maioria pobres, com renda média de um a dois salários mínimos mensais. “Achamos que o ajuste fiscal é imoral, que o governo pretende fazer economia às custas dos pobres. Queriam cortar até o bolsa-família do pescador que estivesse recebendo seguro-defeso, um absurdo. Não acreditamos que é isso que vai combater a crise.”
Infelizmente, o modelo adotado pelo governo do PT tem priorizado a pesca industrial em detrimento da pesca artesanal. Grandes obras portuárias, como o complexo de Suape, em Pernambuco, podem ter aumentado as exportações brasileiras, mas foram dramáticas para os pescadores. A documentarista Patricia Antunes retrata bem esta realidade no filme Vento Forte, ainda inédito nos cinemas. O documentário mostra as dificuldades enfrentadas pela pesca artesanal hoje, desde a poluição causada por empresas de carcinicultura (criação de camarão), até pescadores no programa de proteção de testemunhas, vítimas de ameaças de morte.
Uma das denúncias mais surpreendentes do filme diz respeito ao parque de energia eólica da praia do Xavier, no Ceará, um dos maiores do país. Durante a obra, concluída em 2009, trabalhadores que haviam se deslocado até lá assediaram meninas menores de idade da região e foram embora deixando filhos, apelidados de “filhos do vento”. Não bastasse este problema humano, a energia, vendida como “limpa”, na verdade é um transtorno para os pescadores da região.
“Eu até defendia a energia eólica, parecia bacana, mas não é. A primeira coisa é o barulho. No filme, a gente botou um pouco de som, mas não é a mesma coisa. Uma senhora disse: ‘parece que estou dentro de uma caixa de abelhas’”, conta Patricia. “É o tempo todo ommmmmmmmmmm. Fiquei uma semana na praia de Xavier, uma comunidade onde vivem 40 famílias que estão lá há 300 anos e estas árvores de lata foram chegando. Você fica dois dias e sua cabeça já começa a doer. Imagina morar lá.”
Outro problema, diz Patricia, é que o parque eólico dificultou o acesso dos pescadores à sede do município. No documentário, ela conta a história de uma pessoa que morreu por não ter chegado a tempo para receber socorro. E este é só um exemplo dos problemas enfrentados pelos pescadores brasileiros graças ao tão propalado “crescimento” econômico. A maior crítica da documentarista é em relação à tentativa do governo de modificar a maneira como estas pessoas ganham a vida.
“Em Suape, tem uma família que está num lugar do qual já tentaram tirá-los de todas as maneiras. E eles dizem: ‘não vamos sair daqui, vamos continuar aqui’. Construíram um bairro e querem tirar a pessoa de lá, tirar aquele pescador e levar para morar num bairro urbanizado. Ele vai receber uma cesta básica, mas não vai viver disso, ele é pescador”, critica. “O governo não percebe o pescador artesanal como uma comunidade tradicional. Se percebe, não está nem aí.”
Após as manifestações da semana passada, os representantes dos pescadores e pescadoras conseguiram dialogar com o ministro da Pesca, Helder Barbalho, que se comprometeu, junto com a Secretaria Geral da Presidência, a debater as reivindicações para possíveis alterações no decreto.
Se você quiser assinar a petição dos pescadores para que Dilma revogue o decreto 8425, clique aqui.
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Imagem: Cena do documentário Vento Forte.